Washington - No final de Abril de 1979, ainda no Chissombo, apanhei malária. Como não tínhamos quaisquer medicamentos na base, fiquei muito doente. A deterioração do meu estado de saúde coincidiu com o aumento da escassez de comida. Doente e faminta, estava acamada e demasiado fraca para me levantar. Via o meu fim chegar enquanto me revirava naquela cama dia após dia. O senhor Mukinda, um amigo do meu pai, que era enfermeiro, acampou ali por um dia, com um grupo que ia a caminho de outra base. Quando soube da minha situação, visitou-me e deu-me medicamentos para a malária. Contudo, sem comida, estes não ajudaram muito. À medida que o tempo ia passando, o meu corpo ia ficando cada vez mais débil e eu mal conseguia falar. Cheguei a um ponto em que literalmente rezava para que Deus me poupasse.

Fonte: Rede Angola

Na sombra da morte

Então, num desses dias frio de Maio, aconteceu um “milagre” na minha vida. Eram cerca das seis horas da tarde, já começava a ficar escuro e eu estava deitada na cama, coberta dos pés à cabeça. De súbito, ouvi uma voz desconhecida do lado de fora da nossa casinha de capim; uma senhora procurava uma amiga chamada Tidinha Sapalalo. A senhora entrou e encontrou a Tidinha. Após a habitual troca de cumprimentos, disse-lhe para arrumar as suas coisas e se preparar para partir para Delta [base da UNITA na Namíbia, antes da criação da Jamba] no dia seguinte com o major Ben Ben. Depois aproximou-se da minha cama e perguntou à Tidinha: “Quem é esta menina?”. Ela explicou-lhe quem eu era. A senhora destapou-me a cara e lembro-me claramente de a ouvir: “Oh! Olha para a cara dela tão engraçadinha. Qual é o problema?”, perguntou-me. Olhei para aquela senhora, ali perto da minha cama, e, apesar do meu estado, não pude deixar de reparar no seu esplendor. Tinha uma silhueta elegante, um sorriso radiante e uns olhos cheios de carinho. Numa voz fraca, disse-lhe que estava doente havia algumas semanas e que o tratamento parecia não estar a ajudar. De seguida, devagarinho, virei a cara para o outro lado querendo cobrir de novo a cabeça. Estava com frio e pensei que a senhora só queria meter conversa. Ela segurou o cobertor antes que eu pudesse voltar a cobrir a cabeça e, depois, num tom dor firme, disse: “Ouve. Eu sou Ana Savimbi. Levanta-te imediatamente, prepara-te e vai com a Tidinha falar com o major Ben Ben. Diz-lhe que foste enviada por mim de forma a poderes ser adicionada à lista. Eu irei falar com o Dr. Savimbi mais tarde sobre ti, porque agora temos de ir.”

 

Não sei aonde fui buscar forças, apenas sei que fomos falar com o então major Ben, que nos disse que nos deveríamos preparar para nos juntarmos ao seu grupo às seis da manhã do dia seguinte. A Tidinha e eu arrumámos os nossos poucos haveres e reunimo-nos ao grupo às cinco e meia da manhã. Limitara-me a seguir as ordens da senhora Ana sem me aperceber do impacto que aquele encontro teria na minha vida. Não a conhecia nem tão-pouco conhecia o major Ben. No meu estado de debilidade física, o contacto inesperado, naquelas circunstâncias, com a esposa do Dr. Savimbi e com o lendário major Ben Ben parecia mais forte do que qualquer medicamento. Para mim, tratou-se de uma experiência com valor histórico. Naquele dia apercebi-me de que o major Ben Ben era uma pessoa simpática, prática, simples e muito bem-disposta. Aconselhou-nos a procurar um sítio para nos sentarmos e esperarmos pela partida. Ficámos assim sentadas aguardando novas ordens.


Só mais tarde me apercebi de que o líder da UNITA estava de passagem pela base onde nos encontrávamos, recém-chegado do interior de Angola e a caminho de Delta. Quando soou a altura de partirmos, o major Ben mandou chamar-nos. Os soldados carregaram as nossas mochilas até ao local onde os veículos nos esperavam. Entrámos neles e partimos rumo ao rio Cubango. Atravessámos para a Namíbia, onde outros carros nos aguardavam e depois partimos para Delta, deixando Chissombo para trás.

No dia seguinte, fui para o hospital, onde recebi tratamento médico imediato. Tiraram-me sangue para análises e deram-me ferro e medicamentos para a malária. De acordo com a enfermeira, eu estava extremamente anémica. Com tratamento médico e uma dieta apropriada, três semanas mais tarde, recuperei daquele estado crítico, salva pela senhora Ana Isabel. Até hoje, tenho calafrios só de pensar no que me teria acontecido caso tivesse passado mais uma semana de cama naquela base de Chissombo.

Em Novembro de 2001, mais de duas décadas depois, senti uma profunda tristeza e dor, quando soube que a senhora Ana Savimbi tinha falecido nos últimos dias de guerra. Ela era uma pessoa linda, amável e gentil com uma profunda empatia por aqueles que sofrem. O meu único consolo foi o facto de ter tido muitas oportunidades de falar com ela em Washington e lhe agradecer aquele “milagre” inesperado.


A AUTORA

Anabela Muekalia nasceu a 8 de outubro de 1960, no Cuma, em Angola. Quando eclodiu a guerra civil que se seguiu à proclamação da independência em 1975, viu-se obrigada a separar-se dos pais e abandonar o seu país procurando refúgio na Namíbia. Em 1977, ingressou nas bases da guerrilha da UNITA na província do Cuando Cubango, e mais tarde foi selecionada para integrar um grupo de jovens enviado para o Senegal a fim de prosseguir os seus estudos. De regresso ao mundo da guerrilha, trabalhou com os Médicos Sem Fronteiras (MSF), em vários hospitais das áreas libertadas da UNITA, dando cursos de formação de enfermeiros, técnicos de laboratório e parteiras. Não só ajudou a coordenar esses programas como também desempenhou funções de tradutora intérprete – francês para português, e vice-versa – durante os cursos e no atendimento dos feridos de guerra na retaguarda das frentes de combate, ou da população em geral, em zonas mais seguras. Depois deste período, partiu para os Estados Unidos, apoiando o marido na sua missão diplomática.

 

Em Washington, trabalhou no setor administrativo e de recursos humanos de várias companhias aéreas norte-americanas assim como de outras empresas. Formou-se nos Estados Unidos, tendo concluído um curso de Informática, uma licenciatura em Gestão e o Mestrado em Business Administration (MBA). Participa frequentemente em conferências e seminários relacionados com a economia global, a política interna e externa e temas do fórum académico organizados pela Brookings Institution, American Entreprise Institute e o Institute of World Politics.

 

É professora universitária desde 2007, fez parte do comité académico da universidade e, por alguns meses, chefiou interinamente o Departamento de General Education, tendo assim adquirido experiência no setor da educação. Lecionou cadeiras de Gestão e Business e, em inúmeras ocasiões, foi convidada a proferir discursos. Considera a educação o pilar mais importante para a edificação de um país economicamente autossuficiente e dinâmico, capaz de se posicionar no mercado global. Anabela Muekalia é também cofundadora da MKL International, LLC, uma empresa de consultoria que existe desde 2003.

 

 *Trecho do livro “Angola – Quando o impossível se torna possível”.