Luanda - A última edição do “Top dos Mais Queridos” (36ª), sob a égide da Rádio Nacional de Angola, homenageou a Kizomba, nas vertentes música e dança. Eduardo Paim é um nome incontornável deste estilo e por isso mesmo a emissora estatal prestou o devido tributo ao “Marechal Kambwengo”. Porém, ele mostrou-se indignado pela forma como a história sobre este ritmo foi apresentada naquela gala, tendo, no entanto, revelado, em exclusivo a OPAÍS, que a “Kizomba não surgiu sob influência do Zouk dos Kassav”.

Fonte: Opais

“Mateus Pelé, Joana Pernabumbo dançavam ‘Passada’, não era Kizomba”

O “Top” homenageou a Kizomba e através de uma encenação teatral contou a história deste género, ao que constou, o Eduardo Paim não terá gostado do que viu. A história foi mal contada?

Começo por dizer que tenho o maior respeito por todas as pessoas que elaboraram aquele historial. Notei uma forte preocupação no sentido de se acomodar os vários intervenientes desse processo. Um processo que, se me for dada a possibilidade de franqueza total, é algo que não se imaginaria que com o andar do tempo ganharia a expressão que tem hoje. Portanto, há muitas coisas que esse processo implica hoje, que são consequências de várias fases pelas quais ela passou, e é óbvio que ao longo deste tempo vários são os intervenientes que compõem o historial desse processo. Daí ter notado, de facto, essa preocupação, mas muitas vozes estão em silêncio, não porque estejam acomodadas, mas porque, se calhar, não foram devidamente reconhecidas nesse percurso.

 

Quando foi chamado ao palco fez uma correcção relativa ao historial. O que se passou de facto?

A correcção que fiz foi óbvia, porque, como disse há instantes, antes de todo esse processo começar a dar esses efeitos, houve uma série de coisas que aconteceram. Repare que para muitas gerações a Kizomba é algo que veio do Zouk dos Kassav, coisa que nego categoricamente.

 

Isso não corresponde à verdade?

O Zouk é consequência de um caminho que muitos já vinham seguindo. No entanto, é preciso não confundir o sucesso que o Zouk teve com o início desse processo da Kizomba, que foi bem antes, obedecendo, naturalmente, a influências de vários países, quer da América Central, em que incluo as Ilhas (Guadalupe, Martinica) e toda a zona caribenha. Daí afirmar que esse processo (Kizomba) começa antes, sendo que o Zouk foi apenas um momento mais espontâneo de um processo que já havia começado. Pessoas da minha geração compreendem perfeitamente que a Kizomba não vem do Zouk dos Kassav. Tem influências do Zouk na sequência, mas não parte dali. É um movimento que partiu antes, sob influências de estilos como “Kompa”, “Kadance”, “Calipso”, “Bjinerres”, que são estilos que naquela época eram consumidos. E ainda as salsas, as misturas de estilos dos Congos etc…

 

Estamos a falar de um processo que começa quando em concreto?

Falo por volta de 1975/76. Já havia correntes a fundir várias vertentes. Eu mesmo começo nesse processo em 1976. E é óbvio que também estou na sequência de algo. Portanto, é preciso, a determinada altura, fazer-se correcções. A história que foi contada em algum momento misturou todos no mesmo “barco”, e não é bem assim… Deve haver esta atenção. Comecei, particularmente, a minha carreira musical muito cedo (11 anos) e publicamente a minha notoriedade expressiva surge em 1979, logo após a morte de Agostinho Neto, que foi o motivo pelo qual reuni um grupo de jovens e formamos primeiro os “Puros” e só depois é que surge o “SOS”.

 

Quer dizer que quer os “Puros” como os “SOS” não eram os únicos nesse processo?

Sempre deixei ficar bem claro que os “SOS” não surgiram primeiro que os “Afrasound Stars. Eu mesmo fui colaborador desse grupo. Assim sendo, é todo um processo que vem, e foi assumindo formas nessa sequência até que se consolida esse género de música (kizomba), por contestação das gerações mais antigas, embora os mais conservadores não tenham aceitado como sendo música de Angola. Então, não podíamos chamar “Semba”, daí que a nossa criatividade nos remeteu ao factor Kizomba. Porque era nos locais e ambientes de festa que a nossa música era consumida. O retorno da música angolana dá-se com grupos como “SOS”, “Afrasound Stars”, enfim, em que aparece uma música angolana com mais ares de modernidade e actualidade e começa a ser novamente consumida. Porque há aí a meio um “fosso”, causado pela música de intervenção política que matara um pouco o consumo da música popular.

 

Esses foram alguns dos motivos que o deixaram insatisfeito?

Mostrei essa indignação, ou descontentamento, foi mais na perspectiva de que na actualidade muitos são os erros cometidos, sobretudo por aqueles que por alguma razão não se predispõem a regressar ao passado para compreender melhor os acontecimentos. Às vezes é um bocado aquilo que se diz, está a “bater” hoje, é porque tenha começado aqui… não é bem assim. O máximo que se pode fazer é entender a história para melhor conhecer o percurso anterior.

 

Não se sentiu confortável ao ver aquelas cenas?

Não. Porque veja, como posso ser “pai” de uma revolução e começam a falar de mim nos momentos em que emigrei? A minha vida musical não começa fora, mas cá dentro. Portanto, é nessa perspectiva que, naturalmente, fiquei indignado.

 

O Eduardo Paim não foi consultado aquando da realização do historial?

Não fui. Fui apenas informado de que se estava a escrever a esse respeito, mas não fui consultado para que pudesse dar o meu testemunho. Até porque não sou a única pessoa que manifestou esse descontentamento, daí que digo que houve a preocupação de acomodar-se os vários elementos, mas a história tem de ser contada por partes. Se calhar, era preferível que se contasse de época em época. De um momento à próxima etapa e assim sucessivamente. Agora, quando se quer contar a história de uma só vez, as abordagens são superficiais e não transmitem a carga de informação necessária para que a história caminhe bem. E, por causa desses erros vai a Kizomba por direcções que nos assustam. Já se chama Kizomba ao que claramente não é Kizomba. Sendo nós os progenitores desse movimento que o mundo abraçou e muito bem, o cuidado deve ser um bocadinho maior. Estamos na era das chamadas Tics, e temos de informar com alguma precisão. Há gente ainda aí, consultem.

 

O “baptismo” do termo Kizomba foi dado por um percussionista dos “SOS”. Confirma?

Na entrevista em público, sim. Aliás, quem dá o título sou eu. Mas publicamente este termo foi usado pelo Bibi. Ele era o percussionista e chefe do grupo “SOS”. Eu fui sempre o director artístico. Nós sempre definimos a nossa música como Kizomba. Era a forma mais confortável de chamarmos o nosso estilo. E numa entrevista que foi dada ao programa “Manhã de Domingo”, conduzida pelo Ladislau Silva, é aí que se começou a chamar esse estilo por Kizomba. Portanto, confirmo que foi o Bibi quem tornou público esse “baptismo”.

 

Há instantes referiu-se sobre os contornos que a música está a ter hoje pelo mundo e pergunto-lhe: o que foi que projectou quando o vosso movimento idealizou a Kizomba?

Apenas fazer música. Falo de mim particularmente. Nunca pensei que pudesse andar tanto assim. É uma revolução que não se deve apenas ao estilo de música, mas como se propunha a dança para determinadas vertentes rítmicas. Porque essa dança a que hoje chamamos Kizomba, até onde sei, naquela altura chamava-se “Passada”. A dança já existia. Ela foi evoluindo. Aliás, é como o trajecto do “Kuduro”, que não começa por ser um estilo de música, mas começou por ser um estilo de dança, pois a dada altura, da música só ficava a percussão e a animação. Até que alguém resolveu chamar a essa animação música. Aí começa essa viragem que foi dando margem a outros acontecimentos. Na Kizomba foi a mesma coisa.

 

Nesse caso, tivemos primeiro a dança que era a “Passada” e só depois a Kizomba?

É muito natural que esse movimento criado pela música moderna acabasse por confundirse com movimento que começou muito antes, que é a dança. Portanto, quando se fala em Kizomba fundindo música, contrario completamente aqueles que vêm dizer que já existia. Não é verdade, isso que fique claro, não existia. Antes de 78/79 não havia isso. Havia um movimento que estava a começar, o que é que era?, mal se sabia. Depois é que aparecemos com esse baptismo Kizomba e, graças a Deus, é um movimento em que era eu o líder. Portanto, definir-se Kizomba naquela altura… estávamo-nos a referir um ambiente de festa. Isto é o que significa, na tradução para o português. Kizomba é igual a festa, que não definia nem estilo de música muito menos de dança. Isso que fique claro. E foi a primeira coisa que me inquietou naquela peça de vídeo que passou. Não vou aqui citar nomes, mas digo categoricamente, não corresponde à realidade. Mateus Pelé, Joana Pernabumbo dançavam “Passada”, não era Kizomba. Não façam confusão.

 

Qual é então a verdade sobre a história da Kizomba que não é conhecida e muito menos dita na sua essência?

Primeiro é que não se diga, como certas pessoas, inclusive com certa posição nesse meio, que a Kizomba é o Zouk mal tocado. Isso começa por ser uma ofensa às pessoas envolvidas nesse processo e que se dedicaram à essa luta, sem qualquer interesse, se calhar, de fazer história, pois era uma forma de a gente se divertir. E, atenção: Ninguém nega as influências que o estilo Zouk acabou por criar em praticamente todo o mundo. Mas não foi aí que começou. Tenhamos respeito aos nomes anteriores. A presença das ilhas na nossa música é incontornável, mas não é aí que começa. Já se vinham seguindo estilos.

 

Os Kassav não foram a base para que houvesse Kizomba?

Já volto a explicar: ora veja, o aparecimento dos Kassav deu a mim, particularmente, como músico, um conforto grande, porque estávamos habituados que qualquer coisa que inovasse estava mal. Não é nosso, não é nossa cultura. Os Kassav são um projecto interessante, porque junta gente de vários lugares. Conheci o Jean Claude Naimro a primeira vez que esteve cá com o Mano Dibango, atenção que nem os Kassav existiam. Então, é um grupo que, por nele haver gente de vários pontos, essa miscigenação gerou formatos muito interessantes a que muitos de nós seguiram. Mas a nossa história da Kizomba não começa nos Kassav.

 

De onde parte essa influência na verdade?

Olha, é mais fácil admitirmos influências de grupos como “Les Aiglons”, “Tabo Combo”, “Super Combo”, “Selecta Matiníca”, “La Perfecta”, nomes esses desconhecidos por muitos. E como só se conhece Kassav acham que a história parte daí, até porque no país os Kassav cá estiveram pela primeira vez em 1985 e nós já tínhamos a Kizomba. E isso é o reproduzir de uma história com erros, que não poderei aceitar enquanto respirar. Posso é calar-me, mas não posso concordar.

 

Não gostou da homenagem que lhe foi prestada?

São duas situações diferentes. Porque também posso dizer-lhe o seguinte: seria possível falar-se desse movimento sem implicar o meu contributo? Fica a pergunta no ar e concluam o que quiserem. Se se quer falar de Kizomba é quase incontornável falar-se de Eduardo Paim, e de uma série de referências além de Eduardo Paim.

 

Quais são às outras referências além de Eduardo Paim?

É preciso que se diga que naquela altura as possibilidades eram escassas e tive eu a sorte de conhecer a RNA de uma ponta a outra, a CT1, desbravar, mexer nas máquinas. Era praticamente a única pessoa que tinha essa possibilidade com o tempo que quisesse ter, enquanto os outros era no tempo que lhes era permitido. Alguns gravavam e era só aquilo. Já no meu caso, fiz jingles para emissão, pré-sintonias e muito mais, portanto, o meu acesso era privilegiado. Tinha tempo de estudar as máquinas e havia casos que às levava à casa. Mas é um processo que envolve muita gente que merece respeito. Há uma cronologia, e não podemos pensar que o que fez mais sucesso é o melhor de todos. Isso não corresponde à realidade.

 

Como descreveria essa cronologia no quadro desse movimento em Angola?

Ocorrem-me muitos nomes, não sei se devo “mexer” neles, mas preferia numa outra situação, num próximo caso. Poderia fazer uma cronologia mais pessoal, porque faço parte desta história desde o início até aos dias que correm, no activo. Portanto, há que rever essa história e disponibilizar informação através das redes e outras plataformas de divulgação, para que a história não seja distorcida.

 

Tem interesse em fazer essa compilação da história da Kizomba?

Não tenho só interesse, como estou a fazer já. E no momento certo essa informação será disponibilizada para quem queira vir a ter acesso.

 

Como é que avalia o “estado” da Kizomba feita hoje?

Há um aspecto que é preciso terse presente: A vida é dinâmica e o dia de hoje não há de ser igual ao de amanhã e vice-versa. Hoje temos possibilidades que antigamente eram impensáveis, fruto da revolução tecnológica. Podemos hoje gravar com um individuo que esteja no Brasil e você aqui, coisa que naquele tempo não era possível, pois a possibilidade era ou você lá, ou ele cá. Todas essas facilidades, de alguma forma acabam por tornar-nos um bodinho parecidos, fora o aspecto do imediatismo. Imagine que tenhas uma linha que atrai a maior popularidade, já eu começo a alinhar o meu trabalho a ficar parecido ao teu para atrair também, e é claro que nesse processo perdemos alguma originalidade.

 

Acha que há mais preocupação com o imediatismo?

Em muitas medidas o domínio de alguns instrumentos por parte do músico ajuda. Porque se for para fazer música comercial sem ter a preocupação da minha própria identidade, que já é proporcionada pela modernidade, pode-se fazer música a qualquer momento. Mas para quem já tenha uma personalidade, existem aspectos que têm de saber conversar, senão, corremos o risco de nos distanciarmos do que é a base e ficamos irreconhecíveis. Embora os objectivos variem de pessoa para pessoa.

 

Nesse andar, não se corre o risco de perder-se a base identitária da Kizomba?

Com toda a certeza. É preciso haver uma margem para inovação, mas é necessário que essa inovação não transfigure a nossa essência. A Kizomba tem também a sua essência na forma como os instrumentos devem ser tocados, e hoje temos ainda a intervenção de instrumentos de sopro, que nada têm a ver com a nossa identidade, mas há que saber fazer esse enquadramento. Daí que se admite a inovação, mas sem descaracterizar a sua base. E isso é como bolo feito com ovos e o sem ovos, não deixam de ser bolos, mas diferem nos sabores. Há que ter cuidado com as inovações porque uns vão à busca do mediatismo imediato, não olhando a meios para atingir o fim, e o resultado é a descaracterização.

 

Que projectos tem em curso para os próximos tempos?

Particularmente e falando muito “terra a terra”, primeiro, que o mercado se estabilize para que possa continuar com edições discográficas. É um processo que deva ser visto ao nível superior, uma vez que não afecta apenas a mim, mas a uma classe inteira de artistas. Não podemos continuar sempre como os parentes “pobres” da cultura, que têm de ter sempre um patrocinador. A música é uma actividade que tem pernas para andar por si, desde que haja mecanismos que regulem todo esse implemento. Voltei a sair das “prateleiras” por vontade própria e do público, de que já estava, de certa forma, distanciado, e, provavelmente,sairá um próximo produto que já leva dois anos de produção. Tão logo as condições estiverem criadas será conhecido.

 

Um Best-of não está entre às cogitações?

Está e já há bastante tempo. Assumo essa responsabilidade, achava que era muito cedo ainda para um Best-of, mas já começo a entender que está na hora de brindar as gerações actuais com um bocado daquilo que elas não puderam experimentar, mas ao ouvirem sintem-na e apreciem. Tenho a bênção de Deus de ter possibilitado no passado criar referências até aos dias de hoje nos que não enchendo de orgulho.