Toronto - A entrevista que o Rui Monteiro deu ao Jornal de Angola em Novembro 2018, é um exercício de malabarismo político admirável, e ao mesmo tempo assombrosa porque demonstra a natureza camaleónica do individuo e a capacidade de mudar de cor consoante o galho da árvore em que se pendura. 


Fonte: Club-k.net

Reprimiram a consciência negra nascente em Angola

O 27 de Maio é uma nódoa gigantesca na história de Angola.  Ainda mais imperdoável porque ela foi cometida, deliberadamente, por um grupo de membros do MPLA, auto intitulados nacionalistas, que sentiam-se com o direito inalienável de decidir quem tinha o direito ou não de decidir o futuro de uma Angola.  Futuro esse, pelo qual uma grande maioria de Angolanos tinham derramado o seu sangue, e trabalhado para que fosse uma realidade.  Muitos de nós crescemos com pais ausentes porque estavam nas cadeias de São Nicolau, Missombo ou desterrados no Tarrafal para nunca mais serem vistos.  Muitos de nós, ainda nos bancos do liceu, desafiamos o poder colonial como membros de células militantes do MPLA disseminando a palavra de ordem de resistência de que a luta continuava e a vitória era certa.  Muitos de nós deixamos o conforto das nossas casas com água e luz e fomos para os maquis para juntar palavra a acção e lutar pela independência. 


O Senhor Rui Monteiro, tem o arrojo de qualificar a tragédia do vinte e sete de Maio como “coisas não tão graves como como o que se passou na Africa do Sul”.  É verdade que o caso de Angola não se assemelha ao da Africa do Sul.  Assim como o holocausto da Alemanha não se assemelha ao do Ruanda, mas isto não faz com que ambos sejam atos de barbaridade inconcebíveis e manchas profundas na nossa história comum da humanidade e memória coletiva.  Não vamos aqui comparar bananas com mangas, para utilizar uma exemplo mais adaptado a nossa realidade, mas dizer que o 27 de Maio não foi uma “coisa grave” é, não só uma aberração, mas também um revisionismo histórico de proporções épicas. No 27 de Maio de 1977 e nos dois anos subsequentes, foram mortos muitos dos melhores quadros Angolanos, combatentes experientes, mulheres combativas, jovens militantes, intelectuais e estudantes.  Agostinho Neto legitimou esse assassinato massivo e desmesurado com a afirmação “Não perderemos muito tempo com julgamentos”!  Em julho de 1979, Agostinho Neto, levando em consideração os atos dos dois últimos anos, decide dissolver a DISA pelos "excessos" que havia cometido, tentando assim distanciar-se de uma das páginas mais negras da história pós-colonial Africana.


De acordo com várias fontes, o número de militantes do MPLA, depois das depurações, baixou de 110.000 para 32.000. Estas ações de depuração do partido provocaram milhares de mortos não existindo um número oficial, oscilando segundo as fontes, entre os 30.000 e os 80.000. 


Ponhamos os acontecimentos do 27 de Maio no contexto histórico Angolano.  Quando Angola se tornou independente em 11 de Novembro de 1975, deixava para atrás uma história colonial de se iniciara em 1648.  Como todo regime colonial, o colonialismo português tinha como simples objetivo a anexação de determinada região geográfica e a dominação e subjugação total da população culturalmente, politica, económica, linguística, religiosa e socialmente.  A origem etimológica da palavra colónia vem do latim “colonus” o que quer dizer agricultor.  A origem da palavra recorda-nos a pratica do colonialismo de transferir a população do país colonizador para o novo território com o fim de criar colonatos que mantem fidelidade politica a seu país de origem. 


Lamentavelmente, a não existência de controle politico ou económico, não implica que é o fim da colonização cultural e social terminou em 11 de Novembro de 1975.  E é aqui que o 27 de Maio se interlaça com a historia colonial de Angola, embora seja perpetrado por um governo etnicamente considerado angolano. 


Diderot, filosofo iluminista francês, foi muito crítico sobre a barbaridade do colonialismo. Segundo ele, os impérios coloniais eram frequentemente sítios de extrema brutalidade porque, uma vez longe das instituições legais dos países de origem e das sanções que acompanhavam a não aderência as leis estabelecidas, os colonos sentiam-se desinibidos, e davam curso natural aos seus instintos mais baixos de extrema violência (Muthu 2003). 


Violência apresenta-se com várias fisionomias. E nas colonias portuguesas, violência exercida através do abuso e exploração sexual era a norma. Em Angola, rara foi a aldeia, cidade ou bairro aonde os portugueses não deixaram uma criança de raça mista. As relações entre os colonos e a mulheres indígenas foram na sua maioria determinadas a partir de uma posição de poder. 


As conversas dos retornados colonialistas que hoje pululam nas redes sociais tentando demonstrar que eram bons colonos, é tudo conversa para boi dormir.  Basta rever os álbuns de fotos da época para determinar quem tinha o poder e como a sociedade estava estratificada.  Na escala de valores dos portugueses, essas crianças de raça mista, tornaram-se de facto, os representantes por procuração do poder colonial. 


Criou-se uma estrutura, não oficial, raramente discutida, da hierarquia do poder colonial que até hoje está estratificada pela cor da pele.  Angola é o único país (com exceção da Africa do Sul e os coloridos) em que as pessoas orgulhosamente afirmam serem mulatos, cabritos e cafuzos.  Contrariamente a outros países como os Estados Unidos da América, a identidade negra não e baseada no colorismo da pele, mais sim na oposição ao poder opressor. Este nunca foi o case de Angola.  É neste contexto que o 27 de Maio acontece.  E é aqui que a tentativa do Rui Monteiro de reescrever a sua história, desaromatizada do odor pungente da chacina do 27 de Maio tem que ser desmascarada. 


Com exceção do Agostinho Neto, quem estava na cúpula do poder do MPLA? Lúcio Lara, Iko Carreira, Paulo Jorge, Onambwe, Ndumduma, Pepetela, Rui Monteiro (ele próprio afirma que se sentava no lado direito do Agostinho Neto), e isso não era por acaso. Contrastemos esse grupo com a lista de fraccionistas que o MPLA anunciou em cartazes de propaganda por todo lado: Nito Alves, José Van-Dunén, Bakalof, Pedro Fortunato, Betinho com o titulo “Amarem-nos onde forem encontrados”.


O Agostinho Neto era a bengala negra em que a ala colorista (como eu os chamo) do Lúcio Lara e comparsas necessitavam de apoiar-se para legitimar a caça ao negro intelectual.  O mesmo negro que na época colonial era chamado calcinhas.  O paternalismo da Ala Colorista do MPLA estava claramente imbuído na visão de supremacia racista que sempre dominou a politica interna do MPLA e que de uma maneira insidiosa perpetua a ideologia colonial que divide as populações indígenas e que culminou com a exterminação do negro intelectual do 27 de Maio. Como pode o Rui Monteiro assumir que um simples convite do José Van-Dunén era para o eliminar fisicamente?  Que provas tinha ele de que o José Van-Dunén tinha um passado macabro de eliminação física de outros seres humanos? Contrariamente ao Rui Monteiro, o José Van-Dunén nunca teve ninguém que o acusasse de maquinação política.


Desculpe Senhor Rui Monteiro se a sua historia esta mal contada, e os seus argumentos de que não esteve do lado dos carrascos na chacina do 27 de Maio não se mantem de pé.  Vários testemunhos comprovam a sua participação como um dos ideólogos da repressão do 27 de Maio.  Tal como os outros seus acólitos e representantes dum passado colonial no qual vocês auferiram-se o direito de controlar o poder herdado do sistema colonial, vocês reprimiram a consciência negra nascente em Angola.  Os fracionistas só queriam uma Angola mais justa, livre de uma alienação psicológica e colorista que havia roubado a nossa identidade.  Rui Monteiro, participou em interrogações.  Rui Monteiro esteve presente nos momentos de decisão sobre a quem outorgar a “bolsas de estudo para Cuba” como ele sadicamente faz referencia a quem era enviado para a matança.


Acha, Senhor Rui Monteiro que o problema de 27 de Maio não é tão importante?  Diga isso, as mães de mais de 30,000 e tantos que nunca tiveram uma campa para ir depor um ramo de flores.  Diga isso a viúvas que tiveram que explicar aos filhos e filhas porquê que não existe a assinatura do pai na cédula de nascimento.  Sobretudo explique-nos o que poderia ter sido para Angola se todo esse talento destroçado no 27 de Maio, de gente educada, brilhante e devotada estivesse hoje viva e pudesse contribuir para o desenvolvimento o país?


Já Nito Alves dizia "Os que fazem a História nem sempre podem escreve-la".  Os 30,000 e tantos heróis do 27 de Maio não poderão escrever a história, mas, os sobreviventes continuarão a relembrar aos Angolanos quando camaleões como o Rui Monteiro tentarem espezinhar e denigrir a memória deles. 

 

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