Luanda - Governador provincial ao longo de dezasseis anos na era de José Eduardo dos Santos, Boavida Neto é, hoje, um homem de confiança de João Lourenço no MPLA, partido no poder. Nesta sua primeira grande entrevista, o antigo governador do Bié analisa o actual momento do País.

*Nelson Francisco Sul
Fonte: Expansão

É secretário-geral do MPLA. Em que circunstância foi escolhido pelo Presidente João Lourenço?
As circunstâncias são as mais naturais possíveis: houve um congresso, foi eleito o camarada presidente e, portanto, somos mais de 300 membros do Comité Central e o camarada presidente teve escolher alguém.


Ao aceitar o cargo, teve a noção de que estava perante um desafio que se pode revelar espinhoso?
A vida em si é um desafio, é um somatório de luta, vitórias e derrotas, mas o mais importante é sabermos o que pretendemos e como fazer as coisas. O partido rege-se por princípios e valores, e é dentro desta baliza que vamos dirigir a nossa acção.


Estamos, entretanto, perante uma encruzilhada contra a corrupção, sobretudo de actos praticados no passado, que podem comprometer a coesão interna do MPLA e até mesmo do País...

Quando se refere que estamos numa encruzilhada, é uma percepção que devemos respeitar, feita dentro e fora do partido, mas o importante é continuarmos a trabalhar para que haja unidade e não perdemos o foco fundamental daquilo que é a nossa principal ideologia, que está na profecia de Agostinho Neto, que “o mais importante é resolver os problemas do povo”. É o que estamos a fazer. Os momentos parecem cinzentos, mas não há nada que não se concerta na vida, mediante um bom diálogo ou aproximação.

 

Falar em corrupção e em má gestão, de forma directa ou indirecta, atinge dirigentes do MPLA, porque é o partido que tomou o poder e administra o País há 43 anos. Aliás, o novo Presidente é produto desse MPLA. Que garantias transmitem de competência para salvar o País do caos?
Não é bom que estejamos à procura de culpados. Na construção da nação tivemos um momento fraco para sobreviver. O ideal agora é termos todos consciência de que o caminho que estávamos a seguir não era o melhor. Prejudicou-se muito o povo, a nação e a economia. As prisões não vão resolver o problema. O que estamos a fazer é dar sinais de que a moral e a ética não podem ser perversos à lei. Não podemos ser nós a aprovar as leis e, concomitantemente, sermos nós a violá- las. Não é que cada um de nós seja impoluto, nós fizemos parte do sistema, mas é um desafio que temos que vencer.


Como é que se pretende mudar a imagem de um MPLA maculado de corrupção, quando, ao olharmos para a composição do Governo, vimos as mesmas pessoas que levaram o País à situação actual?

Isso é um processo de transformação. Você, quando tem alguém doente em casa, não pega num frasco de xarope ou em quinze ampolas e dá de uma só vez ao doente. Você faz a medicação de forma gradual. Portanto, aqui não estamos à procura de uma revolução, estamos a procura de uma transformação social. E não é correcto pensar que os corruptos só são aqueles que estiveram ligados ao Governo...

 

Se estamos perante o fim de um ciclo e o começo de outro, como se pode aceitar que em vez das críticas, não são os primeiros a afastar em definitivo, esses membros, com a imagem envolta numa carga extremamente negativa?
Eu tenho dito que falta de aviso não está a deixar de haver para os nossos militantes e para população no geral. Aqueles que insistirem no erro vão ver-se com a justiça. Agora, eu não estou de acordo, não acho justo que prendam pessoas por causa de factos que ocorreram em 2010, 2012. Temos que encontrar um denominador comum, que satisfaça as pessoas, porque é importante que o espírito das pessoas tem que estar em harmonia, têm que ir para a unidade, porque, caso contrário, vamos ter depois muitas dificuldades... vamos lutar para que as mudanças que têm sido operadas sejam efectivas, ou seja, para não serem apenas um ‘fogo-de-artifício’.


Ou seja, não concorda que se levantem casos que tenham ocorrido até 2012?
Para perceber isto temos que ver a coisa em dois momentos: o momento de guerra, que tem os crimes militares, que para bem da unidade e reconciliação nacional foram amnistiados e, também, temos agora os crimes económicos. Há que pensar numa solução que seja boa para o País...


Uma Comissão Nacional da Verdade como a que foi criada por Nelson Mandela, na África do Sul, exemplo depois seguido pelo Brasil, seria o ideal? Aqueles que comprovadamente tenham desviado dinheiros públicos deverão, pelo menos, ser obrigados a devolver metade dos dinheiros roubados, ao invés de mandar as pessoas para prisão?
É um caminho... os caminhos constroem-se caminhando, então, estamos a construir. É uma situação nova, a sociedade e os partidos estão preocupados, mas todos nós queremos que façamos isso em harmonia. Aprovaram-se algumas leis, que acomodam mais ou menos o pensamento, acho que precisamos passar por outros caminhos.


Até que ponto o MPLA está preparado para ir às últimas consequências neste combate contra a corrupção, impunidade e nepotismo?
Isso é irreversível. Estamos a estudar as várias soluções, no fim temos que ter um resultado que seja a favor da unidade, da reconciliação, do perdão, e avançarmos para aquilo que constitui a base do progresso e da justiça que nós queremos para o desenvolvimento de Angola.

 

O último discurso de João Lourenço, na reunião do Comité Central do vosso partido, demonstra um profundo agastamento com a anterior direcção.

Não é tão verdade assim, é interpretação. Ela pode ser extensiva e cada um que vê a mensagem em razão do ângulo em que está posicionado. O que pensamos é que a corrupção é um mal que tem que ser combatido. Tem que ser combatida a partir de dentro. E o Presidente está dar sinais do combate à corrupção e sobre isto não haverá recuo. Agora, na construção desse caminho, certamente que há altos e baixos, são coisas novas que temos gerir, e até poderá haver alguns mártires em razão dessa nova situação. Temos que apoiar o presidente, mas respeitando a constituição e as demais normas.

 

Como é que o MPLA está preparar-se para as autarquias?
Com a prudência necessária, é preciso que não se ponha a carroça à frente dos bois. Há perspectivas em serem realizadas em 2020, portanto estamos focados no pacote legislativo que vai ser aprovado brevemente, aí teremos os indicadores de como serão as eleições autárquicas e cada partido vai preparar-se nesta base.

 

Quando é que o MPLA vai debater cara a cara com as vítimas do 27 de Maio e seus familiares?
Isto é um problema da história. Debater agora vai trazer mais-valia para a sociedade? Acredito que não?! O que tem que se fazer, penso, no tempo, é dialogar com as pessoas e dar-se resposta alguns problemas que existem.


Quando é que isto será feito?
Gostaria de ser vidente. Nós também já encontrámos o problema, vamos passando por ele, e a direcção tomará a decisão de quando é o momento.


Teve familiares directos que foram mortos no 27 de Maio. Tal como o senhor, muitos merecem uma explicação sobre o assassinato dos seus parentes?
É um processo, um processo de luta...


Nas funções que exerce pode influenciar a discussão...
Não, não acho pertinente.

Passaram 41 anos. Não acha que o MPLA está arrastar demasiado este assunto?
Qual é a pressa?


Não é tempo suficiente?
Há estados que consolidaram a sua República, depois de 100, 200 anos. Portanto, é um processo, se cada um de nós cobrar o que é que você perdeu, o que que você não perdeu, não vamos a lado nenhum. Eu, por exemplo, só numa casa tive três irmãos que perderam a vida.


Apesar das suas origens humildes, o senhor hoje não é um homem pobre. Aliás, o volume de investimentos de que detém, fazendas, clínica e outros empreendimentos, também podem servir como meio para conotá-lo com a prática de enriquecimento ilícito. Também fez acumulação primitiva de capital?
Não sei o que isso! Acumulação primitiva de capital o que é?

 

Na entrevista ao jornal semanário português Expresso, o Presidente da República, João Lourenço, disse que houve um “banquete”, em que, sem o menor controlo e fiscalização, os governantes se serviram como bem entenderam...
Eu não penso assim. Os angolanos têm que pensar que apesar de tudo ainda há angolanos honestos. Mesmo nas dificuldades puderam fazer alguma coisa. Agora, justificar o que está no vosso imaginário, eu não posso fazer isto. O que é que para si ter uma grande fazenda? É o quê? Tenho que compreender para poder responder... Uma grande casa é o quê?


O que o senhor tem hoje foi adquirido por meios lícitos?
À Procuradoria-Geral da República (PGR) e aos órgãos de inspecção do Estado caberá fazer o julgamento final. O que eu sei é que tenho as coisas declaradas, estão na Procuradoria, quando for necessário eles vão abrir. Agora, eu não sou extraterrestre. Eu vivi numa Angola conturbada, de guerra, de muitos sacrifícios, de muitas colunas, de muitos tiros. Eu vivi nesta Angola em que há angolanos que fizeram muito esforço, portanto, não precisamos de favorecimento absolutamente nenhuns. Não tive a felicidade de ter “a galinha de ouro”, mas fomos trabalhando na medida do possível. Portanto, não vou expor agora a minha vida publicamente, mas quando nos chamarem a gente vai responder tintim por tintim.



“Estive em todas as decisões tomadas no MPLA, se houve erros ao longo desses anos, eu também me sinto culpado”, disse Dino Matrosse. Também se sente culpado da situação que vivemos?
Vivemos num contexto, defendemos o País daquilo que tivemos que defender, e fomos caminhando, uns para direita, outros para esquerda. É possível que, a parte final, até as últimas eleições, não tenha sido das melhores. Estamos a procurar redimir-nos do erro e ver o que é preciso fazer. Não sou apologista de culpar A, B ou C. Culpados somos todos nós. A corrupção não deixa de ser um crime, mas a outra parte foi pior. A guerra foi pior para todos nós.


Desde a tomada de posse de João Lourenço vários dirigentes do MPLA e membros do Governo têm lançado duras críticas à forma como o País foi governado até Setembro de 2017. Será politicamente correcto ver os que ontem participaram do “banquete” e hoje tecerem críticas ao anterior Presidente?
Cada cabeça uma sentença, por cada sentença cada um deve responder por ele, por aquilo que faz e diz. Como eu não disse, não vou responder pelos outros. Mas, eu, Boavida Neto, nunca em nenhuma circunstância vou estar contra o camarada José Eduardo dos Santos. Nunca.


Porquê?
São muitos os motivos positivos que ele deu à pátria. Provavelmente, nós que erámos o seus auxiliares directos, não fomos correctos com ele e criámos essa grande encruzilhada.

A ser ‘crucificado’ como tem sido, José Eduardo dos Santos corre o risco de passar de arquitecto da paz, como foi apelidado pelo MPLA no passado, a arquitecto da corrupção. É a história do MPLA que está a ser reescrita, onde Eduardo dos Santos será descrito como o culpado de todas as nossas desgraças?
Não é justo. Não é justo teres isto em pensamento, respeitando a tua liberdade.
Tendo em conta o relatório da ONG Transparência Internacional, referido a semana passada pela PGR, que coloca Angola como o mais corrupto da SADC, não acha que, pelos níveis tão altos de corrupção que o País atingiu, e havendo um combate a sério contra isso, a figura que dirigiu o País durante esses anos não terá como escapar?
Penso que a maior virtude que o ser humano deve ter na vida é a capacidade de perdoar, por isso, eu creio que deve prevalecer aqui, é o perdão, em razão do contra-peso. Portanto, aqui não se pode utilizar a figura mítica religiosa do (Pôncio) Pilatos: livrar-se se disser quem é Jesus. Não! Temos que assumir todos.


Como é que é trabalhar com o Presidente Lourenço?

O mais importante aqui é o dever de obediência e não de servir. Eu tenho uma postura um pouco diferente, sou verdadeiramente independente de pensamento e liberdade. Quando estiver com razão, independentemente de ser o presidente Eduardo dos Santos ou o presidente João Lourenço, eu ponho os meus problemas ali mesmo. Não sou uma pessoa de levar os problemas para casa. É interessante trabalhar com João Lourenço, cada pessoa é uma pessoa, o presidente tem características próprias, mas na relação directa é uma pessoa 100 estrelas. Mas é um homem, que também pode errar, se nós não o ajudarmos. Não nos esqueçamos disto, que ele também é um homem...


O próximo congresso do MPLA está aprazado, julgo, para daqui a dois ou três anos. Quando é que, finalmente, teremos múltiplas candidaturas à presidência do MPLA?
Isto é um problema do MPLA. Se você é do MPLA, tem que levantar essa questão na sua organização de base...

 

Os problemas do MPLA são transversais para o País.
Sim, mas tudo deve resolvido a seu tempo.


Não há sinal que no próximo congresso tenhámos múltiplas candidaturas ao cargo de presidente do partido.
Nós temos que nos preocupar com as tarefas do momento. Agora temos o problema das eleições autárquicas, que será em 2020, temos este ano renovação a nível das nossas estruturas de base, portanto, temos que nos preparar nesse sentido. Para já, os nossos estatutos não mais vão permitir que o presidente fique mais de 10 anos.

UM HOMEM INDEPENDENTE


Álvaro Manuel de Boavida Neto foi eleito secretário-geral do partido dos “camaradas”, sucedendo a António Paulo Kassoma no último Congresso Extraordinário do MPLA, que pôs termo à “bicefalia”, com Eduardo dos Santos a passar o seu longo reinado ao fim de quase quatro décadas a João Lourenço. O antigo governador do Bié e do Namibe obteve 257 votos contra 84 votos de Ernesto Muangala.


É oriundo de uma família tradicional do MPLA, que entretanto acabou perseguida na sequência da intentona de 27 de Maio de 1977, tendo mesmo assistido ao assassinato de três irmãos. Natural do Huambo, o dirigente de 59 anos afirma-se “verdadeiramente independente de pensamento e liberdade”, pelo que, quando estiver em causa a verdade, não hesitará “confrontar” o presidente do seu partido e da República, no sentido de se evitar os erros do passado.