Luanda - Esta carta é a manifestação de repúdio da Rede Terra pelo silêncio e a forma despreocupada e de indiferença dos Senhores Deputados com a injustiça económica, cultural, política e ambiental e o empobrecimento crónico das famílias em comunidades tradicionais do Domínio Útil Consuetudinário. Os territórios, politicamente, organizados e geridos segundo o costume pelo poder das autoridades tradicionais transformaram-se em áreas de sacrifícios e humilhação.

Fonte: Club-k.net

A administração colonial e a actual, mas esta, por crise de identidade de matriz civilizacional e de desenvolvimento, impuseram nesses territórios um clima de permanente insegurança de posse das suas terras e fragmentação das relações identitárias comunais. Hoje, o país prepara-se para a institucionalização do poder local, mais concretamente, das autarquias locais que são, por essência, o reconhecimento de que o Estado de per si, não é capaz de atender aos mais diversos, mas também, complexos significados e expressões de interesses próprios das diferentes comunidades politico-culturais existentes em Angola __ mas o silêncio dos Senhores Deputados, que se deduz ser sua posição de indiferença, sobre o diálogo ou articulação, não sujeição, entre os três entes territoriais (poder das autoridades tradicionais, o poder estadual e autárquico), é preocupante. Estes três poderes reclamam, por definição, um território, cuja administração é conflituosa e historicamente não exemplar. A questão é: que tratamento terão os territórios politicamente organizados e governados segundo o costume no contexto da institucionalização do poder local? Na história da administração, sobretudo, colonial não houve diálogo, em grande medida, entre território e poder das autoridades tradicionais e/ território e poder estadual. Apenas, sujeição. Continuarão as autoridades do poder tradicional, com população e território sob a sujeição e dominação do poder estadual e/ou do poder autárquico no quadro da institucionalização do poder local à semelhança do tempo colonial?

 

Há que convir, primeiro, que grande parte dos conflitos fundiários que se conhecem resultam de um elevado défice de governação estratégica atenta ao risco e vulnerabilidade, em sede da administração da justiça fundiária. O que é mais grave é o facto do Executivo reconhecer que muitas queixas apresentadas em tribunais são silenciadas, mas apesar disso, não existir uma ferramenta de gestão de conflitos fundiários que sempre existiram, existem e existirão. Segundo, a pobreza em comunidades tradicionais é imputável à administração estadual que foi adoptando desde a administração colonial uma política de gestão territorial que não permitiu o diálogo entre o rural e o urbano, ou ainda, entre a tradição e a modernidade. É, exactamente, isso, que deu lugar à segregação sócio-espacial e permanente clima de conflitos entre os territórios de expansão urbana e rurais. Esta matriz dual de paradigma de desenvolvimento, marcadamente, antagónico só pode alimentar a exclusão e sujeição movidas por grupos de interesses económicos e não só, num contexto científico que começa a dar maior suporte a um novo paradigma «rurbanismo» do qual se pode aprender que urbanizar um determinado espaço não é destruir o rural e desterrar as suas gentes, ou ainda, que o rural não é sinónimo de nã-civilizado, enfim, que a modernidade não deve sacrificar o tradicional. Terceiro, é o poder do Estado que fragilizou e submeteu a si, como fantoches, as autoridades do poder tradicional. Hoje, sabemos que muitos representantes das autoridades do poder tradicional não têm nem território próprio, população nem exercem o poder tradicional. Estão como simples administradores ao serviço da máquina do Estado? O fardamento e patentes que lhes são atribuídos não têm nenhum significado histórico-cultural. Aliás, nem o significado da cor do fardamento sabem. Muitos andam, por aí, sob ameaças ou intimidados por alguns administradores municipais ou comunais como se fossem seus subordinados. A Rede Terra sabe disso. Um dia, um deputado perguntou a algumas autoridades de poder tradicional se eram, na verdade, autoridades tradicionais segundo o costume ou a administração.

 

Senhores Deputados, os sentimentos de pertença e de identidade territorial das famílias que integram as terras do Domínio Costumeiro não podem estar a reboque, meramente, dos interesses económicos ou da geopolítica dos recursos naturais que alimenta em áreas de exploração de recursos naturais o sentimento de incerteza, de não-pertença e de insegurança. Em Angola a terra é critério de cidadania, sim, mas em que se expressa essa cidadania fundiária e, por conseguinte, económica e cultural para a população nesses territórios? A luta por terras em Angola deu lugar a mortes e continua a dar um pouco por todo o país, contudo, não se conhece nenhuma tomada de posição ou questionamento ao nível da Assembleia Nacional sobre os conflitos fundiários no país ou governação fundiária. O Seminário Nacional Sobre a Problemática de Ocupação de Terrenos (2014) produziu algumas recomendações que deveriam preocupar ou despertar o interesse dos Senhores Deputados. O país tem um Cadastro Fundiário que precisa de uma lei específica que o regulamente. As Terras são vendidas sem um diploma legal que estabeleça o preço da terra. É urgente que se defina qual o órgão legalmente competente para a titulação das terras do Domínio Útil Consuetudinário. A seca em Angola é recorrente e no continente representa as mais altas taxas de mortalidade, mas não existem iniciativas legislativas, políticas ou debates que apontem para a produção de instrumentos políticos ou normativos vigilantes ao risco climático. O uso de agrotóxicos é recorrente, mas não há nenhum diploma ou política que regulamente o seu uso num contexto em que o continente africano perdeu desde 1950 por degradação do solo 65% da sua superfície agrícola (PNUMA, 2014). Angola precisa de Guia de Adaptação Climática na Agricultura e em outros sectores produtivos. A gestão fundiária no país não é vigilante ao risco climático e a vulnerabilidades. A erosão, a seca, as inundações constituem, em muitas partes do território, um grande perigo que pode pôr em causa a vida e o património de muitas famílias. O país não tem uma política nacional de terras. Não se conhecem de onde começam e terminam as terras Domínio Privado do Estado o que tem estado a criar enormes conflitos com as terras que integram o Domínio Útil Consuetudinário. O acesso a algumas terras é determinado, ainda, em casos de fazendas agrícolas ou pecuárias pelos marcos coloniais que foram impostos a sangue sobre os territórios das comunidades tradicionais que integram, hoje, o Domínio Útil Consuetudinário.

 

A insegurança de posse é cada vez mais crescente no seio das famílias em comunidades rurais. A Rede Terra submeteu em 2012 depois de uma audiência concedida pelo, então, Presidente da Assembleia Nacional, Engenheiro Paulo Cassoma, uma proposta de resolução de conflitos e titulação das comunidades, mas nada mais ressonou. Vários encontros com a então, Secretaria de Estado Para os Direitos Humanos, apelando para a necessidade de protecção e valorização das terras rurais comunitárias, enquanto, expressão expressão das identidades e repositório da história e memórias colectivas, através da titulação, mas nada. Senhores Deputados, que fiscalização pretendem? Porventura, sabem, Senhores Deputados, quantas reservas fundiárias do Estado, constituídas, em muitos casos, sem o direito à informação e participação, sobretudo, de comunidades-alvo, foram instaladas em terras que integram o Domínio Útil Consuetudinário, terras das comunidades tradicionais, privando as suas gentes dos seus cemitérios, lavras e outros serviços costumeiros? Não houve indenização, em muitos casos que a Rede Terra conhece. Os Senhores Deputados sabem disso? Sabem quantos caminhos tradicionais e atravessadouros foram fechados por fazendeiros criando enormes dificuldades de uso ou acesso aos centros urbanos, escolas, fontes de água ou pastos? Porventura, os Senhores Deputados, que dizem representar os interesses legítimos da população, sabem quantas famílias foram privadas de acesso a certas lagoas, ribeiras ou outros serviços costumeiros como apanha da lenha ou acarretar água ou pescar? Senhores Deputados, alguma vez trouxeram à liça e de forma comprometida essas injustiças à Assembleia Nacional?

 

A iniciativa presidencial que cria a Comissão Interministerial para o Registo dos Terrenos Rurais a Favor das Comunidades Locais através do Despacho Presidencial no 14/18 está a alimentar boas esperanças no quadro do programa «Minha Terra» e a Rede Terra agradece. A iniciativa não foi dos Senhores Deputados, mas do Senhor Presidente da República, sim. Quanta sensibilidade! A Rede Terra sabe que o processo está a andar e dele faz parte. Contudo, para a Rede Terra o fim último do programa «Minha Terra» não pode ser a titulação das comunidades, mas o seu desenvolvimento. As populações cujas terras integram o Domínio Útil Consuetudinário têm o direito ao desenvolvimento, mas este não é possível num permanente clima de insegurança de posse, conflitos e sujeição. Por isso, era bom, em sede da ética para a sustentabilidade económica, social, cultural e ambiental nesses territórios, que se discutam com a maior profundidade, antes das autarquias, as formas de gestão de conflitos fundiários, os mecanismos de promoção e valorização das identidades locais que se expressam no património natural e cultural fundiários, bem como, a matriz de desenvolvimento local. O paradigma de desenvolvimento que se herdou da colonização é de segregação, de desvalorização das identidades, memórias e significados locais, enfim, do epistemicídio da história e civilização das populações locais. A Rede Terra apela para que se produzam instrumentos normativos e políticos mais vigilantes aos factores do risco climático que vai desencadeando pequenos fluxos migratórios internos responsáveis por pequenos conflitos em razão da escassez de acesso a determinados recursos. Promover acções de gestão e uso da terra com os olhos no futuro é o compromisso da Rede Terra. Senhores Deputados, o acesso e uso da terra gerou, historicamente, conflitos e, isso, continuará a existir, sobretudo, no actual contexto em que as estratégias da geopolítica dos recursos naturais acabam por ferir algumas margens da soberania dos Estados. Em tudo isso, olham para trás, Senhores Deputados, que as famílias em comunidades tradicionais, não podem reviver o passado colonial da indiferença, injustiças e traição.

*Director Executivo da Rede Terra