Luanda - Os pronunciamentos foram avançados, em entrevista exclusiva ao portal Club-K, pelo especialista em combate ao branqueamento de capitais, autor da recente obra literária intitulada “Acumulação Primitiva de Capital em Angola 1992-2017”. No entender de Avelino Frederico Capaco, não existe em Angola, uma classe empresarial, ou ricos, até 2017, capaz de movimentar milhões para alavancar a economia nacional, que não tenha sido privilegiado por “acumulação primitiva de capital”, por conveniência política do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). Avelino Capaco é licenciado em Direito pela Universidade Católica de Angola (UCAN), e em Relações Internacionais pelo Instituto Superior de Relações Internacionais (ISRI) e pós-graduado em Combate ao Branqueamento de Capitais pela Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto (FDUAN).

*Óscar Ganga
Fonte: Club-k.net

“JL também se beneficiou de acumulação primitiva de capital”

Club-k: o que se pode entender por acumulação primitiva de capital em Angola, 1992-2017?

Avelino Capaco: um tema de grande pertinência, na medida em que através deste processo podemos elaborar um estudo profundo e técnico para se saber de onde vêm as economias dos países em crescimento económicos, qual é o caminho que devem seguir e que perspectivas têm no futuro. Estamos a falar de países africanos que têm menos de 60 anos de existências, enquanto Estados independentes.

 

Como se devem estudar as economias nestes países de África, sendo Angola parte integrante?

Na perspectiva económica, só é possível estudar as economias destes países compreendendo a profundidade, no sentido filosófico, antropológico do processo de acumulação primitiva de capital. Uma vez compreendido este processo e o seu objectivo fundamental, os técnicos podem elaborar e traçar técnicas científicas para que as economias destes países tenham e consigam crescer com sustentabilidade.

 

Quando é que estamos diante de um processo de acumulação primitiva de capital?

Quando as pessoas que conduzem o processo das políticas de um país, num determinado período que se justifique e de forma natural, acumulam primitivamnete capital. Estes dirigentes procuram entregar a riqueza pública nacional a alguns pouquíssimos cidadãos privilegiados para que invistam no país. Esta cedência tem, evidentemente, um objecto que é o de dominarem os factores de produção económica. Estamos a falar, pois, de países cujo modelo de economia é de mercado.

 

No período de 1992-2017 em Angola, quem foram os privilegiados na distribuição das riquezas públicas e quem começou com este processo?

O processo de acumulação primitiva de capital que agora está a ser terminado com a governação de João Lourenço, começou com o MPLA, foi conduzido pelo MPLA, oficializado e institucionalizado pelo antigo Presidente da República e do partido, José Eduardo dos Santos, aquando do discurso sobre o estado da Nação em 2013.

 

Enquanto especialista em combate ao branqueamento de capitais, considera acumulação primitiva de capital um acto lícito do ponto de vista da gestão do bem público?

Sempre que me colocam essa questão, tenho chamado a atenção de que na abordagem sobre acumulação primitiva de capital, se quisermos compreender a profundada dela, não se deve chamar à colação matérias de justiça, moral e outros elementos que caraterizam a probidade, pois a acumulação primitiva de capital na sua profunda natureza política é um mal necessário, daí que deve ser transitório e justificável dentro do contexto histórico. Como sabemos, um dos pressupostos das economias de mercado é a iniciativa privada e consequentemente a concorrência que se verifica nos mercados. Entretanto, Angola tinha acabado de nascer, naquele período de 1992, com as reformas introdutórias e reveladoras de ruptura com o regime de partido único, para uma economia de mercado. Todavia, precisava-se dos agentes económicos privados para criar uma classe empresarial forte que pudesse sustentar o novo sistema económico mas sob domínio do poder político de quem governa.

 

Quais são os critérios adoptados nestes processos para a selecção das pessoas beneficiadas?

A acumulação primitiva de capital, compreendida na perspectiva antropológica e política, não se estabelece um critério na escolha das pessoas e a meritocracia não é um factor relevante. Implica ausência da democracia, de normas, de moral, de ética. Por mais que elas existam, mas não são eficazes. Portanto, numa primeira fase, o critério é o político – confiança política. O contrário, seria ingenuidade política, pois o factor económico na pirâmide do poder é estrategicamente fundamental.

 

Quer com isso dizer que em Angola não há ricos que tenham conseguido as suas fortunas de forma honesta, ou seja, sem influência política de quem dirige o país de 1992-2017?

Angola tem 43 anos de independência. Antes disso era uma província ultramarina portuguesa. Toda riqueza que o país tinha era exportada para Portugal. Depois da independência tivemos que adoptar uma economia revolucionária. De 1975 até 1992. De um modo geral é possível assegurar que ninguém tinha um avô, tio nem se quer um pai rico. Algumas pessoas eram latifundiárias, isso é normal, mas capaz de movimentar biliões para alavancar a economia nacional, ninguém. Todos beneficiaram da acumulação primitiva de capital.


João Lourenço assumiu-se rico durante uma entrevista concedida ao jornal português Expresso. Acredita que também beneficiou de “acumulação primitiva de capitais”?

Temos muitos empresários neste país, mas ninguém ficou rico por ter trabalhado para que pudesse fazer a acumulação derivada, aquela em que o cidadão trabalha com direito a um salário, investe e desenvolve o seu capital. Os nossos ricos beneficiaram sim deste processo. Por isso, no livro, chamei acumulação primitiva de capital como “riqueza originária” pois não havia outra forma de criar uma elite forte economicamente, ainda que alguns recorressem a credito externo, precisariam na mesma de uma garantia soberana o que no fundo, cairia no mesmo processo – “mutandi mutatis”.

 


Com estas influências de facilitação económica à classe empresarial. Acha que o Presidente da República não teria moral para exigir dos angolanos o repatriamento de capitais investido no estrangeiro, uma vez que também terá supostamente beneficiado destes privilégios?

Provavelmente alguns devem estar a questionar-se sobre o repatriamento coercivo de capital exigido para uns, quando o exemplo deveria partir do topo à base e não ao contrário. É uma questão de lógica. Por isso muita gente ao analisar este processo apresenta cepticismo da sua eficácia. João Lourenço nasceu no MPLA, cresceu no MPLA, reproduziu-se no MPLA e provavelmente venha a terminar a sua vida política dentro do MPLA. Neste momento o que parece relevante é que o capital que todos acumularam primitivamente seja investido ao beneficio da economia nacional, quer seja de João Lourenço assim como de outras figuras que tenham sido beneficiadas.

 


Quanto à moral em exigir o repatriamento coercivo?

Quanto à moral do Presidente em exigir dos angolanos o repatriamento; o Presidente da República havia remetido a sua declaração de bens e caberia, caso haja qualquer conflito de interesses, o pronunciamento dos órgãos judiciais competentes. Esta é a resposta técnico-jurídica. Não obstante a esta, politicamente seria bom para ele (PR) próprio dentro da sua postura assertiva que tem vindo a demostrar, fazer um pronunciamento público sobre o processo de acumulação primitiva de capital já que tinha sido assumido pelo seu antecessor.

 

Estas elites (ricos) podem estar indiciadas em crimes de branqueamento de capitais pela forma como acumularam as suas riquezas?

Sim. Mas, daí que eu concordo com a Lei 11/16 de Amnistia. Muitos beneficiaram destes privilégios económicos por confiança política, mas sem noção do processo como tal – talvez tenha havido uma fraca capacidade de comunicação entre os beneficiários e os condutores do processo. E, se ainda houver algum dinheiro devem trazer para o país e investir para gerar emprego. Porém, temos de apagar o passado negro para garantir a “unidade, paz e democracia que herdamos”.


Acredita no fim da impunidade em Angola com este novo paradigma de governação?

Vivemos durante muito tempo em Angola onde o mais importante era o egocentrismo por parte de algumas pessoas. Muitos não se importavam com o dever de cidadania. Mas, apesar de algumas detenções e medidas aparentemente populistas, fica-se com algumas dúvidas sobre este modelo de governação. Por conseguinte, há uma vantagem nisso, mudança. Há moralização da sociedade. Hoje quem for chamado a um cargo público já não vai vandalizar o mesmo como anteriormente ou seja, havia orgia na coisa pública, com as mediadas do actual presidente, há sinais de mudanças que precisam de ser reforçadas com algum pragmatismo.

 

Em que circunstâncias ocorrem estes interesses políticos em eleger grupos para dominarem o sector económico?

Na maior parte dos casos em países cujo regime político é ditatorial ou em situações de guerra. A título de exemplo, nos Estados Unidos de América criaram os “magnatas” como o homem dos Petróleos, John Davison Rockfeller, JPMorgan Chase, Carnegie entre outros, no tempo da guerra civil americana. Hugo Ferdinand Boss, na Alemanha, também ficou rico na fase do holocausto de Adolf Hitler, hoje dizem que é um dos maiores patrocinadores da formula 1 pela Mercedes, o Black Economic Empowerment na África do Sul que beneficiou maioritariamente as pessoas do ANC. Os próprios portugueses quando criaram os seus “burgueses”, entre os quais a família Espírito Santos que foi dar ao BES e BESA, a família Manuel de Melo, a família Champalimaud e outros. Todos esses “burgueses” foram forjados na época da ditadura de Salazar. Portanto, para dizer que o processo de acumulação primitiva de capital, aproveita-se da anomia ou nas democracias a emergirem – por isso, repito, é um processo transitório dentro de um quadro histórico justificável.


Qual é a diferença destes países com Angola na gestão e transparência?

A grande diferença é que os cidadãos beneficiados investiram nos seus próprios países. Já em Angola não. Os beneficiados exportaram os capitais para fora do país, daí a pertinência do actual discurso do Presidente da República, em dizer sobre repatriamento de capitais. Mas no meu livro chamei por “realização de simpósio” – o meu livro é anterior ao discurso de repatriamento - e sugiro ao executivo a reunir todos os beneficiários deste processo de acumulação primitiva de capital, no sentido de se direccionar as áreas de investimento onde se deveria priorizar com o dinheiro repatriado ou simposiado – o adjectivo é meu.


Por que razão as pessoas teriam transferido o dinheiro para o exterior em vez de investirem em Angola?

Como disse acima, muitos não tinham a noção do processo por iliteracia. Mas mais do que isso, alguns depositaram o dinheiro fora do país por uma questão de segurança. A nossa moeda nunca foi estável. Há muito dinheiro de angolanos a trabalhar em offshore, nos bancos estrangeiros justamente pela estabilidade da própria moeda nestes países. Outrossim, o período em que estávamos em eleições, poderia o MPLA perder o poder político, também é um dos motivos.


Que medidas o executivo deve tomar para o combate ao fenómeno sobre branqueamento de capitais?

É um problema da consciência do cidadão, porque as pessoas devem ter noção de que ao praticar estes actos dilacera a economia nacional. Para reduzir este fenómeno carece de instituições fortes, coadjuvados de um quadro jurídico muito eficiente. Temos por exemplo a Lei 34/11 sobre o combate ao branqueamento, Lei sobre a Probidade Administrativa entre outras.


A corrupção, o peculato, o nepotismo são, dentre outros, crimes subjacentes ao branqueamento de capitais. Acha que somente com instituições fortes pode se combater este fenómeno de branqueamento?

Não. É preciso melhorar as condições sociais das populações ao nível das necessidades básicas que a vida impõe. O nível de escolaridade acrescido de um acompanhamento qualidade junto das instituições é uma das formas mais correctas para reduzir a corrupção e branqueamento de capitais.

 

O que pode estar a acontecer para que algumas pessoas resistam às determinadas legislativas contra estes crimes?

Na verdade, o que está a acontecer é o processo de inserção no mercado formal e criar uma origem aparentemente licita ao longo prazo de capitais resultantes das desordens provocadas pelo processo de acumulação primitiva de capital. Só assim, se pode compreender por exemplo o surgimento repentino de algumas instituições bancárias e comerciais que nascem do dia para noite com fluxos financeiras incompreensíveis. Isso aconteceu também nas outras paragens do mundo, basta pensarmos em surgimento do banco HSBC – Hong Kong and Sharing Banking Corporation e outros.


Quanto tempo pode levar para que se reduza consideravelmente este fenómeno de branqueamento de capitais? Acreditas que serão as mesmas elites ligadas ao MPLA a dominarem o mercado económico em Angola?

Daqui a mais ou menos 10 anos ou um pouco mais, já não vai suscitar interesse em debater estes temas sobre as origens de grandes empresas e capitais porque até lá teremos já passado a primeira fase de branqueamento de capitais que é a colocação e os capitais estarão completamente integrados nas economias de várias formas – o tempo vai apagar este interesse e consequentemente os burgueses angolanos serão maioritariamente de origem partidária do MPLA – aqui gostaria de destacar uma análise que trago no livro, onde afirmou que se a UNITA não voltasse para as matas depois das primeiras eleições, provavelmente dentro do espírito do GURN, teria sido parte do processo de acumulação primitiva de capital possibilitando deste modo a diversificação da classe burguesa e naturalmente em termos de mercado de trabalho, seria de maior escala.


Acredita no retorno do dinheiro a Angola de forma coerciva?

Presidente João Lourenço acaba de ser mais sincero agora nesta última conferência que concedeu a imprensa. O último discurso relativamente ao repatriamento não combina com o primeiro. Agora ficamos a saber que o dinheiro pode ser coercivamente repatriado daqui a 20, 30 anos. Este processo pode ser um “fiasco” como aconteceu no repatriamento voluntário em seis meses. Não temos nada de concreto. Mas, mais do que apresentar cepticismos, penso que o discurso tem de ser de incentivo para que algum dinheiro volte.