Luanda - Apraz-me tecer algumas considerações sobre o fenómeno racial no mundo contemporâneo, em função dos últimos episódios que se seguiram ao mediático “caso Jamaica” quer em Angola como em Portugal. Como ser humano, africano e angolano em particular, não devo deixar de fazer um juízo de valor, sobre este facto, não só pela situação mediática que atingiu, mas essencialmente pela brutalidade e desumanismo injustificado perpetrados e que por sua vez suscitaram fortes emoções e reacções quer do lado de cá, como do lado de lá.

Fonte: Club-k.net


Considero o racismo como um processo de subalternização racial. Esta subalternização é, por um lado, um estado psicológico resultante de um processo de educação e doutrinação, por outro, como uma ideologia política, filosófica, sociológica e científica baseada no logocentrismo ocidental.

 

A construção sistemática desta ideologia, contou com sofisticadas teorias que advogam a supremacia racial branca, onde, entre as mais renomadas, podemos citar a de Kant, de Hegel, de Lévi-Bruhl e de Spencer.


Para Kant, era mais do que evidente que os negros não se comparavam aos brancos, pois a natureza não lhes havia dotado de certas aptidões artísticas, científicas e filosóficas que são comuns em homens de raça branca, pois entre os milhões de pretos deportados de seus países, não obstante muitos deles terem sido postos em liberdade, não se encontrou um único sequer que demonstrasse aptidão grandiosa na arte ou na ciência. Já entre os brancos, segundo Kant, arrogam-se constantemente aqueles que mesmo saindo da plebe mais baixa, exibem aptidões grandiosas e ganham prestígio.


Na mesma linhagem de Kant aparece Hegel, que destitui os africanos de toda e qualquer forma de racionalidade. Para este filósofo, os africanos eram totalmente inocentes e inconscientes de si mesmos e do mundo à sua volta. A principal característica do negro para Hegel, é a subjectividade, pois este ainda não havia alcançado a noção plena de Deus, de lei, de si e do outro. Ora, sendo a razão a fonte da moralidade, da cultura e da história, a África era a- histórica, pois nela não se encontravam quaisquer vestígios de razão.


Por seu lado, Lévi-Bruhl, considerou a mentalidade africana como sendo primitiva e pré-lógica, aceitando e associando contradições de vária ordem. A mentalidade africana aceita ideias que a mentalidade ocidental considera absurdas, pois o negro não reflecte com base na causalidade material dos fenómenos e no racionalismo lógico. Daí que era legítimo, segundo Lévi-Bruhl que os africanos abandonassem a sua mentalidade pré- lógica para seguir modelos de pensamentos europeus que são mais evoluídos e desenvolvidos.


Já o sociólogo Spencer, à luz do evolucionismo de Darwin defendeu o evolucionismo social, onde ideias difundidas acreditam que as sociedades evoluem naturalmente de um estágio inferior para os estágios superiores e mais complexos de organização social. Assim, povos civilizados (particularmente os europeus) têm o dever de ocupar, dominar e explorar as culturas “mais atrasadas”, a fim de levar-lhes desenvolvimento, progresso moral e cultural e permitir-lhes que alcancem os estágios superiores de civilização.

A construção e proliferação destas e outras teorias de pensadores renomados no ocidente criaram a memoria colectiva do racismo, legitimando-o, cujas consequências directas que se seguiram foram a zoomorfização, o afro- pessimismo e a vitimização.


A zoomorfizição é a ideia difundida de que os africanos representam uma fase atrasada no processo de evolução através da sua estrutura somática, identificando homens africanos com certos animais como macacos e chimpanzés, que são considerados seus parentes mais próximos. Esta zoomorfização legitima uma série de barbaridades, de violência e de práticas desumanas, contra o “homem preto”, por este ser mais próximo da animalidade do que da humanidade. Um dos mais tristes exemplos desta animalização foi Ota Benga, congolês que durante 10 anos foi enjaulado com macacos no zoológico de Bronx (Nova York) e servia de amostra para provar que o negro era uma espécie de animal menos evoluída na hierarquia do longo processo de hominização. Isto em pleno século XX.


A par da zoomorfização está o Afro-pessimismo. É o ideal amplamente difundido pela indústria cultural ocidental que legitima a imagem negativa de África como um lugar natural da violência, da pobreza e do subdesenvolvimento que resultam da incapacidade racional e inferioridade natural dos africanos. O Afro-pessimismo subalterniza a África, pois considera que nela não há exemplos ou modelos a seguir, resultando daí que tudo o que há em África deve ser abandonado para seguir modelos mais evoluídos de pensamento, de ser e estar provenientes do ocidente. O afro-pessimismo legitima, assim, o epistemicídio que nas palavras da filósofa brasileira Suely Carneiro, consiste na anulação, silenciamento e desqualificação do conhecimento dos povos não hegemónicos, um processo persistente de
produção da indigência cultural.

A zoomorfização e o afro-pessimismo instauraram, deste modo, uma teia de relações interpessoais, sociais, económicas e políticas em que o africano é tratado como inferior. Ora, como o ser social, em muitos casos determina a consciência social, o africano move-se em torno deste complexo de inferioridade: vitimiza-se. Aliena o seu ser através da assimilação destas teorias. Esta vitimização reforça-se continuamente através da mortificação da racionalidade e do rebaixamento da capacidade cognitiva dos povos africanos, levando o próprio africano mais duvidar do que acreditar em sua própria capacidade de triunfo ou sucesso criando um vazio existencial que só se preenche através da assimilação de modelos eurocêntricos.

Entre as soluções para a saída desta crise existencial resultantes da vitimização e a busca da igualdade racial humana alguns defendem a solução de olho por olho, dente por dente, isto é, responder violência com violência, discriminação com discriminação.


A meu ver esta é uma solução que legitima ainda mais a zoomorfização e o afro-pessimismo, ocupando a mente com ódio e vingança.

O racismo é um sistema político, científico, filosófico e sociológico de carácter ideológico como já realçamos, a sua destruição implica uma componente de factores e acções com a mesma dimensão:

1 - O racismo é uma ideologia, a luta deve ser dirigida ao combate desta ideologia e não às pessoas como muitos compatriotas têm defendido. A desconstrução ideológica pelo próprio africano é condição necessária.

2 - A necessidade de entre nós combatermos e acabarmos com o racismo institucional, que ainda impera na nossa sociedade, que dá um tratamento desigual e diferenciado a pessoas em função da cor da sua pele. Tomo como exemplo do racismo institucional, aquele praticado pelo Ministério da Justiça e da Educação, que impõem o corte do cabelo ao “homem preto” e nunca ao “homem branco”, que concede privilégios no trabalho, na direção e chefia a pessoas cuja cor da pele é mais clara.


3- A necessidade de construir a personalidade africana. Em nada adianta a reivindicação antirracista enquanto não formos capazes de mostrar o que realmente somos: a nossa cultura, a nossa história e a nossa identidade. Esta personalidade africana deve assumir-se como uma luta constante contra o epistemicídio que silencia a consciência histórica da África e dos africanos.


4 - Os movimentos sociais antirracistas quer na África como na diáspora, devem exercer maior pressão sobre o processo educativo que é mudo em relação ao racismo. A educação é uma chave indispensável neste processo. Embora haja legislação contra o racismo, o problema deve ser atacado na sua génese: no âmago da nossa alma. Como disse Nelson Mandela, “ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor da sua pele ou por sua origem... Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar.


5 – Os movimentos negros na diáspora devem lutar para a conquista do poder político, visto ser este responsável pela perpetuação do racismo através de privilégios ao homem branco e o empobrecimento de milhares de negros que concomitante vivem a carência material e a privação de recursos.


6 – Finalmente há uma necessidade de acabar com a hipocrisia de Estado. O racismo permeia as relações diplomáticas, económicas e políticas entre os Estados africanos e seus confrades ocidentais. Mas os estadistas africanos fingem não ver isto, submetem-se vergonhosamente e sub-repticiamente à lógica da dominação, perpetuando o racismo. Urge inverter este quadro de relações através da construção de uma nova solidariedade africana que tenha como base a defesa dos genuínos interesses dos africanos e permita o alargamento da influência geopolítica do continente.


Geraldo Dala, filósofo e professor.