Luanda - 1. GENERALIDADES: Nos últimos dias fez notícia é suscitou acesos debates, a decisão da Direcção da Rádio Nacional de Angola (RNA), de desvinculação do Quadro de Pessoal, do insigne jornalista Amílcar Xavier, pelo facto deste estar vinculado a Direcção de Informação da TV Zimbo.

Fonte: Club-k.net

Tentando ajudar no entendimento das motivações jurídicas que animaram a decisão, não pretendendo assumir o monopólio quanto ao posicionamento do Direito e da Lei, gostava de convidá-los a meditar em torno do Dever de Lealdade, previsto na alínea g) do artigo 44.° da Lei n.° 7/15, de 15 de Junho - Lei Geral do Trabalho (LGT), que dispõe:

"São deveres do trabalhador: guardar sigilo profissional, não divulgando informações sobre a organização, métodos e técnicas de produção, negócios do empregador, e guardar lealdade, não negociando ou trabalhando por conta própria ou por conta alheia em concorrência com a empresa".

Antes de me debruçar sobre enunciado, gostava de trazer ao debate pequenas noções sobre Direito do Trabalho, Contrato de Trabalho e finalmente recuperar o tema de partida sobre Deveres do Trabalhador, de onde deriva o Dever de Lealdade.

2. DIREITO DO TRABALHO

2.1. Noção de Direito

Existem variadíssimos conceitos de Direito. Alguns autores definem o Direito como um sistema de normas de conduta social, que regula as relações que se estabelecem entre os homens. Para outros, o Direito é um conjunto de normas jurídicas estabelecidas por uma autoridade pública, para regular o comportamento das pessoas numa determinada sociedade, impondo sanções coactivas aos incumpridores. É ainda a ordenação da convivência humana em sociedade através de normas jurídicas de acordo com a justiça. Esta última noção exprime a ideia de que Direito e Justiça existe uma relação essencial e necessária.

O termo Direito assume várias significados e tem sido usado com ambiguidade, em várias acepções.

Das várias acepções, podemos concluir que no sentido normativo, o Direito é o conjunto ou sistema de normas e princípios jurídicos, é no fundo o ordenamento jurídico que regula a vida em sociedade e determina o seu modo de ser e funcionar. Neste sentido, fala-se do Código Civil, da Constituição, da Lei Geral do Trabalho, etc.

2.2. Relação Jurídica

De acordo com o professor Carlos Alberto da Mota Pinto, a expressão relação jurídica, pode ser tomada i) num sentido amplo e ii) num sentido restrito ou técnico.

2.2.1. Sentido amplo

No sentido amplo, relação jurídica é toda a relação da vida social relevante para o Direito, produtiva de efeitos jurídicos e, portanto, disciplinada pelo Direito.

2.2.2. Sentido restrito

Em sentido restrito, ou técnico, relação jurídica é a relação da vida social disciplinada pelo Direito, mediante a atribuição a uma pessoa de um direito subjectivo (faculdade atribuída por lei de alguém - pessoa física ou jurídica - exigir um determinado comportamento positivo a outrem) e a imposição a outra pessoa de um dever jurídico ou de uma sujeição.

Para o nosso estudo, interessa o sentido restrito ou técnico da relação jurídica, em homenagem ao Dever de Lealdade.

2.3. Definição de Direito do Trabalho

O trabalho está intrinsecamente ligado ao Direito, uma vez que de acordo com a teoria socialista, o Estado e o Direito surgiram por ocasião dos conflitos que se registaram entre as forças produtivas e outros elementos da sociedade de natureza, dando então lugar a criação do Estado e o Direito, que visou regular e limitar os comportamentos nas relações de produção.

O Direito do Trabalho consiste no ramo da enciclopédia jurídica que tem por objecto o trabalho subordinado, o qual constitui a prestação característica do contrato de trabalho definido no artigo 1152.° CC, como aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade intelectual ou manual a outra pessoa (natural ou jurídica), sob a autoridade e direcção desta. Em sentido próximo o n.° 3 do artigo 3.° da LGT define o contrato de trabalho como "aquele pelo qual um trabalhador se obrigada a colocar a sua actividade profissional à disposição dum empregador, dentro do âmbito da organização e sob a direcção e autoridade deste, tendo como contrapartida uma remuneração".

O objecto do Direito do Trabalho não é assim todo o trabalho humano, mas apenas o trabalho subordinado. Desenvolve-se, por isso, em torno de um contrato nominado e típico, o contrato de trabalho, o qual disciplina as relações de trabalho exercidas em subordinação jurídica.

3. CONTRATO DE TRABALHO

3.1. Noção de contrato

Em linhas gerais, trata-se do acordo de vontade entre duas ou mais pessoas, em relação a um objecto lícito e possível, a fim de adquirir, resguardar, modificar ou extinguir direitos. Ocorre quando ambas as partes assumem, reciprocamente, uma obrigação.

3.2. Definição de Contrato de Trabalho

É, o acordo, tácito ou expresso, correspondente à relação de emprego. Representa um pacto de actividade, onde uma pessoa física se obriga, mediante remuneração, a prestar serviços a outra pessoa ou entidade, subordinada e sob a direção desta.

O contrato de trabalho é definido no artigo 1152.° CC, como aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade intelectual ou manual a outra pessoa (natural ou jurídica), sob a autoridade e direcção desta. Em sentido próximo o n.° 3 do artigo 3.° da LGT define o contrato de trabalho como "aquele pelo qual um trabalhador se obrigada a colocar a sua actividade profissional à disposição dum empregador, dentro do âmbito da organização e sob a direcção e autoridade deste, tendo como contrapartida uma remuneração".

3.3. Elementos constitutivos do contrato de trabalho

Da definição do artigo 1152.° CC e do n.° 3 do artigo 3.° da LGT, podemos identificar três elementos essenciais do contrato de trabalho:

3.3.1. Prestação de uma actividade

O contrato de trabalho pressupõe a existência da prestação de uma actividade humana (prestação de um facto positivo), seja ela intelectual ou manual, a qual constitui assim o objecto principal do contrato.

3.3.2. Retribuição

Outro elemento essencial do contrato de trabalho é a retribuição que, consiste na contrapartida da prestação de trabalho subordinado, existindo assim um nexo sinalagmático entre ambas.

3.3.3. Subordinação jurídica

O contrato de trabalho, por se tratar de uma relação jurídica, implica a existência de subordinação jurídica, resultante de o trabalhador se colocar sob a autoridade e direcção do empregador. Existe assim um poder de direcção do empregador, o qual tem em vista individualizar a prestação do trabalhador, concretizando a actividade a desenvolver e um dever de obediência do trabalhador às ordens do empregador.

3.4. Contrato de trabalho como contrato obrigacional, oneroso e sinalagmático

3.4.1. O contrato de trabalho como contrato obrigacional

O contrato de trabalho é um contrato obrigacional uma vez que é fonte de obrigações para as partes. Faz surgir na esfera do trabalhador a obrigação de prestar a sua actividade e na esfera do empregador a obrigação de pagar a correspondente retribuição.

Além destas obrigações principais, há diversas outras situações obrigacionais, como deveres secundários de prestação e deveres acessórios de conduta. Entre os deveres secundários de prestação encontra-se, por parte do empregador, o dever de ocupação efectiva (al. b), art 43.° LGT) e o dever de proporcionar formação profissional ao trabalhador (art 42.°, al. f), art 43.° LGT).

Em relação aos deveres acessórios de conduta, impostos pelo princípio da boa fé (n.° 2, art 762.° CC) há por parte do empregador, o dever de tratar e respeitar o trabalhador como seu colaborador e com respeito pela sua integridade e dignidade (al. a), art 41.° e al. a), art 43.° LGT), o dever de proporcionar boas condições de trabalho ao trabalhador (al. b), art 41.° LGT), etc.

Por parte do trabalhador, constituem deveres acessórios o de respeitar e tratar com urbanidade e lealdade o empregador, os responsáveis os companheiros do trabalho, etc., (al. d), art 44.° LGT), o dever de cumprir as ordens e instruções dos responsáveis, relativas à execução, disciplina e segurança no trabalho, nos termos da lei (al. b), art 44.° LGT), o dever de guardar sigilo profissional e de guardar lealdade ao empregador, não negociando ou trabalhando por conta própria ou por conta alheia em concorrência com a empresa (al. g), art 44.° LGT), o dever de cumprir as demais obrigações impostas por lei ou convenção de trabalho, ou estabelecidas pelo empregador dentro dos seus poderes de direcção e organização (al. i), art 44.° LGT).

3.4.2. Contrato de trabalho como contrato oneroso

O contrato de trabalho é um contrato oneroso, uma vez que gera sacrifícios económicos para as partes. O empregador tem que pagar a retribuição, enquanto que o trabalhador tem o sacrifício do valor da sua força de trabalho.

3.4.3. Contrato de trabalho como contrato sinalagmático

Em virtude do seu carácter oneroso, o contrato de trabalho é também um contrato sinalagmático, uma vez que faz surgir obrigações recíprocas para as partes, sendo a do trabalhador a de prestar a sua actividade intelectual ou manual e a do empregadora de pagar a correspondente retribuição. Estas duas obrigações surgem ligadas entre si em termos causais no momento da constituição do contrato (sinalagma genético), permanecendo essa ligação durante a sua execução (sinalagma funcional).

Como consequência da natureza sinalagmática do contrato de trabalho, são-lhe em princípio aplicáveis os institutos típicos dos contratos sinalagmáticos, como:

i) a excepção de não cumprimento do contrato (arts. 428.° e ss. CC);
ii) resolução por incumprimento (n.° 2, art. 801.° CC) e;
iii) caducidade do contrato por impossibilidade de uma das prestações (art. 795.° CC).

A aplicação desses institutos sofre, no entanto, alguns desvios, resultantes da especificidade da relação laboral, cuja abordagem não será feita, por não se considerar impreterivel.

3.5. Distinção entre o contrato de trabalho e o contrato de prestação de serviços

Considerando as especificidades da actividade jornalística, faz-se necessário e reveste-se de extrema importância a distinção entre o contrato de trabalho e o contrato de prestação de serviço, constituindo esta última, conforme se sabe, um contrato atípico, onde se inserem três modalidades típicas, o mandato, o depósito e a empreitada. Para a nossa abordagem, nos cingiremos a distinção entre o contrato de trabalho e a prestação de serviços atípica, deixando para ocasiões oportunas a distinção das modalidades típicas.

Como elementos distintivos principais entre o contrato de trabalho e o de prestação de serviços podem apontar-se os seguintes:

i) a prestação de serviços tem por objecto um certo resultado (art 1154.° CC), enquanto que no contrato de trabalho, está em causa a prestação da actividade do trabalhador (art 1152.° CC e n.° 3, art 3.° LGT);

ii) o contrato de trabalho é necessariamente oneroso (art 1152.° CC e n.° 3, art 3.° LGT). Paradoxalmente, o contrato de prestação de serviços pode ser oneroso ou gratuito (1154.° CC) e;

iii) no contrato de trabalho, a actividade é prestada sob autoridade e direcção do empregador (art 1152.° e n.° 3, art 3.° LGT).

Em resumo, no contrato de trabalho, o devedor (empregado) se vincula a uma prestação de actividade, enquanto que no contrato de prestação de serviços se vincula antes à obtenção de um resultado.

4. DEVERES DO TRABALHADOR

À semelhança do do que ocorre no comum dos contratos, também no âmbito da relação laboral, o princípio da boa fé (n.° 2, art 762.° CC) determina o surgimento em relação ao trabalhador de deveres acessórios, destinados a assegurar a plena realização do dever de prestação principal.

4.1. Dever de obediência

Segundo Rosário Ramalho, o primeiro dever do trabalhador é naturalmente o dever de obediência ao empregador, sem o qual este não poderá dispor da força de trabalho daquele.

Nesta conformidade, a al. b), art 44.° LGT, estabelece que o trabalhador deve "cumprir as ordens e instruções dos responsáveis, relativas à execução, disciplina (...) nos termos da lei" salvo se contrário aos seus direitos garantidos por lei.

O dever de obediência tanto se refere a ordens individualizadas do empregador como à parte normativa dos regulamentos internos da empresa, tendo assim o trabalhador que acatar ambas.

A violação do dever de obediência do trabalhador, em relação às ordens e instruções legítimas do empregador ou seus superiores hierárquicos, constitui infracção disciplinar, legitimando a aplicação das sanções correspondentes (al. b), art 44.° LGT), podendo mesmo constituir justa causa de despedimento (al. c), art 206.° LGT).

4.2. Dever de assiduidade e pontualidade

Outro dever integrante da prestação do trabalhador é o de assiduidade e pontualidade no seu local de trabalho (al. c), art 44.° LGT). O dever de assiduidade implica a presença física do trabalhador no local de trabalho em todos os dias em que deve realizar a sua actividade. Já o dever de pontualidade relaciona-se com o cumprimento rigoroso do horário de trabalho, devendo o trabalhador respeitar escrupulosamente os momentos em que deve iniciar e concluir a sua prestação de trabalho, não se apresentando ao serviço depois da hora de entrada, nem abandonando o mesmo antes da hora de saída.

4.3. Dever de zelo e diligência na realização do trabalho

Outro dever acessório que recai sobre o trabalhador é o de realizar o seu trabalho com diligência e zelo (al. a), art 44.° LGT). Segundo Romano Martinez, desta disposição resulta o dever de o trabalhador executar a prestação de trabalho com brio profissional, adoptando a diligência a que contratualmente está obrigado. Essa diligência corresponde à diligência do bom pai de família nas circunstâncias do caso (n.° 2, art 487.° CC e n.° 2, art 799.° CC).

4.4. Dever de promover a melhoria da produtividade na empresa

Outro dever que recai sobre o trabalhador é o de promover o aumento da produtividade da empresa (última parte da al. a), art 44.° LGT).

O trabalhador deve adoptar as medidas que sejam necessárias para melhoria da produtividade, por outro lado, deve abster-se de qualquer comportamento que possa lesar a produtividade empresarial, como, por exemplo, os de incentivar os colegas a abandonar ou desleixar a realização das suas tarefas.

4.5. Dever de informação

Em relação ao dever de informação, deve-se considerar que o trabalhador tem o dever de dar conhecimento ao empregador de tudo o que se relacione com a prestação de trabalho, ou questões que possam interferir no normal cumprimento da relação contratual.

4.6. Dever de lealdade

Na al. g), art 44.° LGT faz referência ao dever de lealdade ao empregador, que compete ao trabalhador guardar, segundo José Andrade Mesquita. Entre os deveres acessórios de lealdade, a lei indica exemplificativamente os deveres de sigilo e de não concorrência, mas os deveres de lealdade são bastante mais amplos do do que estes. Efectivamente, por força do princípio da boa fé, e do intuitus personae que caracteriza o contrato de trabalho deve entender-se que ele institui uma relação de confiança entre as partes, que tem que ser mantida pelo trabalhador através do dever de lealdade. O conteúdo deste dever será tanto mais intenso, quanto maior for a posição hierárquica do trabalhador na empresa, ou for o nível de especialização da função.

 

Concretizando o dever de lealdade, a lei estabelece um dever de sigilo que recai sobre o trabalhador implica a proibição de informação referentes à organização do empregador, métodos e técnicas de produção ou negócios (al. g), art 44.° LGT). É assim vedada ao trabalhador a divulgação de quaisquer informações relacionadas com a esfera empresarial, que o empregador, com base num legítimo interesse económico, queira ver reservadas. Entre estas inclui-se o know-how técnico, da empresa e quaisquer outras informações reservadas.

5. CONCLUSÃO

De tudo quanto se demonstrou, ficou claro que o contrato de trabalho tal como qualquer outro, impõe as partes, em homenagem ao princípio da boa fé, o dever do cumprimento escrupuloso do sinalagma a ele inerente.

 

A estabilidade da relação jurídica, assenta no cumprimento recíproco dos deveres principais e acessórios, decorrentes do vínculo empregático.

 

Amílcar Xavier ao assumir o cargo de Director de Informação da TV Zimbo, enquanto mantinha vínculo laboral com a RNA, violou o dever acessório de lealdade previsto na al. g), art 44.° LGT, porque embora a TV Zimbo seja empresa do segmento áudiovisual, não deixa de pertencer ao mesmo ramo de negócio que a RNA, pois são ambas empresas do ramo da Comunicação Social.

 

Como supra demonstrado, Amílcar Xavier violou o dever acessório de lealdade, que corresponde a proibição de concorrência, sendo vedado ao trabalhador negociar por conta própria ou alheia em concorrência com o empregador (al. g), segunda parte art 44.° LGT). O fundamento da proibição de concorrência é o facto de a mesma potenciar o desvio da clientela do empregador, que o trabalhador poderia obter, aproveitando-se da especial posição que possuía. Consequentemente, a realização de negócios pelo trabalhador no mesmo âmbito em que se exerce a actividade empresarial, seja por conta própria ou alheia, apenas pode ser realizada com o consentimento do empregador, o qual pode ser concedido expressa ou tacitamente. Não sendo concedido este consentimento, a realização de actividade concorrente pelo trabalhador constitui uma violação grosseira do contrato de trabalho, que lesa gravemente a confiança do empregador no trabalhador, constituindo justa causa para despedimento disciplinar, nos termos da alínea h) do artigo 206.° LGT.

 

Salientamos que no caso em apreço, só é proibida a realização de actividade concorrente, não sendo vedado o pluri-emprego ao trabalhador, salvo se tiver sido estabelecida a obrigações de exclusividade.