Luanda - DA (IM) POSSIBILIDADE DE UM DEPUTADO À ASSEMBLEIA NACIONAL SER CONSTITUÍDO ARGUIDO, À REPERCUSSÃO DAS SUAS IMUNIDADES E REGALIAS NO PROCEDIMENTO CRIMINAL NO DIREITO ANGOLANO. Breve comentário.

Fonte: Club-k.net

No dia 29 de Janeiro de 2019, alguns meios de comunicação social nacionais e estrangeiros, informavam que “a Assembleia Nacional confirma que Manuel Rabelais foi constituído arguido. Lia-se e ouvia-se nuns e outros que “a I.a Comissão da Assembleia Nacional que responde pelos Assuntos Constitucionais e Jurídicos confirmou hoje ter recebido uma notificação da Procuradoria-Geral da República (PGR), em que este órgão solicita a presença do deputado Manuel António Rabelais para responder a algumas questões, relacionadas com o inquérito instaurado contra si. O deputado vai responder sob o processo n.o 68/2018, que decorre na Direcção Nacional de Investigação e Acção Penal (DNIAP) da PGR, em que "é participante o Ministério Público e denunciado Manuel António Rabelais, por factos praticados na qualidade de Director do extinto Gabinete de Revitalização e Execução da Comunicação Institucional e Marketing da Administração (GRECIMA)”, ficou assim formada a opinião pública.


Ora, este facto provocou no seio de juristas e não juristas, acessos e profícuos debates relativamente a (im) possibilidade constitucional e/ou legal deste acto, em função das imunidades e regalias de que gozam os Deputados e que se reflectem directamente no procedimento criminal.


Neste breve artigo de opinião, procuraremos, “juntando-se ao debate” responder se é ou não possível do ponto de vista constitucional e/ou legal constituir-se arguido um Deputado à Assembleia Nacional sem necessidade de requerer-se prévia ou posteriormente uma autorização da Assembleia Nacional para o efeito.


CONCEITO DE DEPUTADO


No Estado Contemporâneo, primeiro sob a veste do governo representativo clássico, depois sob a feição democrática, Deputado é o nome constitucional ou convencional atribuído a cada um dos membros do Parlamento (cá entre nós a Assembleia Nacional é o Parlamento da República de Angola, cfr. artigo 141.o, n.o 1 da Constituição da República de Angola em vigor desde o dia 5 de Fevereiro de 2010, doravante designada apenas por CRA) ou, no caso de se adoptar o bicameralismo, o nome atribuído a cada um dos membros da primeira câmara ou câmara baixa (dita, por isso, câmara dos Deputados).


A designação parece ser de origem francesa. A primeira Constituição que a consagrou expressamente foi a de 1793, jacobina, e que, inspirando-se em ROUSSEAU, procura criar uma democracia radical, em que os Deputados ou titulares do órgão chamado Corpo Legislativo não são senão mandatários das assembleias primárias dos cidadãos.


O conceito de Deputado veio ligar-se, entretanto, às concepções de Direito Público que triunfaram com o Constitucionalismo. A sua figura vem a ser recortada de harmonia com a moderna doutrina da representação política. Em vez de representante de grupos autónomos perante o Estado, ele é o representante da nação, do povo todo (cfr. artigo 147.o da CRA), eleito pelos cidadãos considerados como tais; daí tira a sua legitimidade, contudo os seus poderes provêm da Constituição, não obstante sua investidura fazer-se por eleição (cá entre nós mediante sufrágio universal, livre, igual, directo, secreto e periódico... cfr. artigo 143.o da CRA), todavia, dotado de um mandato político em nome do povo, não estando todavia, adstrito a instruções ou ordens dos seus eleitores.

O ESTATUTO DOS DEPUTADOS. IMUNIDADES E REGALIAS - ENQUADRAMENTO JURÍDICO-CONSTITUCIONAL E LEGAL


O “Estatuto dos Deputados” consagrado no artigo 147.o e seguintes da CRA, comporta dentre outras situações, imunidades e regalias (vide outrossim os artigos 15.o e 18.o da Lei n.o 17/12, de 16 de Maio - Lei Orgânica que aprova o Estatuto do Deputado).
Artigo 150.o da Constituição da República de Angola (CRA) dispõe que:


1. Os Deputados não respondem civil, criminal nem disciplinarmente pelos votos ou opiniões que emitam em reuniões, comissões ou grupos de trabalho da Assembleia Nacional, no exercício das suas funções.


2. Os Deputados não podem ser detidos ou presos sem autorização a conceder pela Assembleia Nacional ou, fora do período normal de funcionamento desta, pela Comissão Permanente, excepto em flagrante delito por crime doloso punível com pena de prisão superior a dois anos.


3. Após instauração de processo criminal contra um Deputado e uma vez acusado por despacho de pronúncia ou equivalente, salvo em flagrante delito por crime doloso punível com pena de prisão superior a dois anos, o Plenário da Assembleia Nacional deve deliberar sobre a suspensão do Deputado e retirada de imunidades, para efeitos de prosseguimento do processo.

No mesmo sentido dispõe o artigo 46.o do Capítulo V - da Lei n.o 25/15, de 18 de Setembro – Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal, que versa sobre imunidades.


A hermenêutica constitucional in contextus, leva-nos a concluir que só se prescinde da autorização da Assembleia Nacional, para que um Deputado possa ser privado de sua liberdade (entenda-se detido ou preso preventivamente), quando se verifiquem cumulativamente duas condições

 Que o Deputado seja apanhado em flagrante delito (no entendimento processual penal adquirido deste conceito).


 E o facto por si perpetrado seja um crime doloso punível com pena de prisão superior a dois anos.


A verificação de apenas uma destas condições não dispensa, portanto, a autorização da Assembleia Nacional.

DISTINÇÃO ENTRE IMUNIDADES E REGALIAS

Apesar de umas e outras terem carácter instrumental, imunidades e regalias distinguem- se à vista desarmada pela sua estrutura e pela sua finalidade específica. As imunidades têm um sentido amplo e um sentido restrito.

Em sentido amplo abrange a inviolabilidade, a irresponsabilidade e a imunidade em sentido restrito. Em rigor, o conceito de imunidade é o privilégio de titulares de órgãos de soberania só poderem ser detidos, presos ou acusados criminalmente mediante autorização do órgão a que pertence ou de outros órgãos de soberania.


Trata-se de assegurar a liberdade de titulares de órgãos de soberania perante medidas ou procedimentos coactivos, designadamente de carácter criminal (de detenção, prisão e julgamento).


A imunidade tanto transporta uma dimensão objectiva (garantia de funcionalidade do órgão) como uma dimensão subjectiva (garantia de protecção pessoal). É por exemplo, com o sentido de garantia de protecção pessoal que a imunidade é garantida aos representantes diplomáticos e consulares de países estrangeiros, isto é, como imunidade de jurisdição penal (Cfr. Convenção de Viena sobre Protecção Diplomática, artigo 31.o; Estatuto de Roma, artigo 27.o, n.o 1 e 2).


As imunidades são garantias, existem para defender os Deputados de acções ou intromissões provindas do Exterior, descrevem-se negativamente através da subtracção dos actos que eles pratiquem ao Juízo ou aos procedimentos a que por ventura, estariam sujeitos se de quaisquer pessoas que não titulares de órgãos de soberania se tratasse.


As regalias (cfr. artigo 18.o da Lei n.o 17/12, de 16 de Maio) são situações de vantagens, descrevem-se positivamente; dir-se-iam semelhantes a direitos que acrescem aos direitos comuns dos cidadãos.


As imunidades visam, em última análise, preservar a independência do Parlamento perante os outros órgãos do Estado e quaisquer autoridades. Destinam-se a evitar que quem quer que seja possa ferir a imprescindível liberdade de actuação dos Deputados. As regalias visam simplesmente propiciar o desempenho do cargo em condições óptimas e contribuir para a dignificação da função, destinam-se a afastar dificuldades ao exercício dos poderes funcionais ou a tornar mais satisfatório esse exercício.


O espírito das normas que prevêem as imunidades e as regalias não é de criar privilégios em violação do princípio da igualdade de todos perante a lei. Não está em causa atributos ou interesses dos Deputados. O que está em causa é a instituição a que pertencem.


As imunidades e as regalias não são direitos subjectivos, são situações funcionais que se reportam a todo o mandato parlamentar.


Ora, porque as imunidades dos Deputados constituem um instrumento objectivo de defesa da própria Assembleia Nacional (AN), os Deputados não podem as renunciar, e a Assembleia Nacional não pode dispensá-las.


Contudo, as imunidades não têm um alcance geral e/ou absoluto se quisermos, pois, há casos em que o Deputado pode ser preso ou julgado sem qualquer autorização da AN, ou seja, sem como sói dizer-se que a Assembleia Nacional " retire ou levante as imunidades", cá entre nós as imunidades dos Deputados, salvo melhor opinião só valem em matéria criminal propriamente dita, não abrangendo qualquer outro domínio sancionatório (v.g., transgressões administrativas, processos disciplinares etc.).

CONCEITO DE ARGUIDO.


DA (IM) POSSIBILIDADE DE UM DEPUTADO À ASSEMBLEIA NACIONAL SER CONSTITUÍDO ARGUIDO SEM NECESSIDADE DE AUTORIZAÇÃO PRÉVIA DESTA E REPERCUSSÃO DAS SUAS IMUNIDADES NO PROCEDIMENTO CRIMINAL.


O conceito lato de arguido envolve o de réu, não obstante usar-se com mais frequência o termo arguido para designar o sujeito passivo durante a fase de instrução preparatória e o termo réu, após a pronúncia e, sobretudo na fase de julgamento.


O artigo 251.o do Código de Processo Penal (com a redacção introduzida pelo decreto- Lei n.o 185/72, de 31 de Maio), define o arguido como «aquele sobre quem recaia forte suspeita de ter perpetrado uma infracção, cuja existência esteja suficientemente comprovada».


À qualidade de arguido ligam-se importantes consequências jurídicas e processuais no que se refere aos interrogatórios, à constituição de advogado ou nomeação de defensor oficioso, à assistência destes interrogatórios e à aplicação por exemplo de uma medida de coacção pessoal em sede das mediadas cautelares possíveis em processo penal (como sejam a prisão preventiva, a prisão domiciliária, a interdição de saída do país etc.), essas são em síntese as consequências que definem o estatuto jurídico-processual do arguido.


A título de direito comparado, vale referir que diferente de Portugal que com a revisão constitucional de 1997, que acrescentou uma nova regra ao texto constitucional (cfr. o n.o 2 do artigo 157.o da Constituição da República Portuguesa), em Angola (rectius, no ordenamento jurídico angolano) os Deputados à Assembleia Nacional podem ser constituídos arguidos (com as consequências jurídico-legais e até materiais que tal facto acarreta, salvo as devidas limitações impostas pelas imunidades), sem necessidade de requerer-se prévia ou posteriormente autorização à Assembleia Nacional para o efeito, e isto resulta iniludivelmente do disposto nos números 2 e 3 do artigo 150.o da CRA.


Como vimos supra, a imunidade contra o procedimento criminal traduz-se apenas no facto de após a dedução da acusação, e consequente lavramento do despacho de pronúncia (se assim o Juiz entender), o processo-crime não prosseguir sem que o Deputado seja suspenso, competindo à Assembleia Nacional suspendê-lo ou não. A suspensão do Deputado é deliberada por resolução do Plenário da Assembleia Nacional (cfr. o n.o 3 do artigo 150.o da CRA conjugado com o n.o 4 do artigo 8.o Lei n.o 17/12, de 16 de Maio), devendo contudo a suspensão do mandato do Deputado ser requerida pelo Juiz Presidente do Tribunal Supremo ao Presidente da Assembleia Nacional havendo já como vimos despacho de pronúncia, todavia, transitado em julgado por crime doloso punível com pena de prisão superior a dois anos.
Sobre a possibilidade de o Deputado depor como testemunha ou prestar declarações vide o que dispõe o artigo 220.o do Código de Processo Penal.

Note que nos casos cobertos pela imunidade, o julgamento do Deputado pode nunca vir a ser efectuado, se ele for sucessivamente eleito e a Assembleia Nacional não retirar ou levantar a imunidade.

Portanto não obstante as imunidades dos Deputados refletirem-se no processo penal através da exigência de verificação de uma condição processual (diga-se conditio sine qua non) - a autorização do Parlamento, sendo esta autorização condição do prosseguimento do processo, portanto o processo não pode prosseguir enquanto não se verificar a condição imposta ou não cessarem os pressupostos que a determinaram, o certo é que os Deputados no Direito Angolano podem ser constituídos arguidos, sem necessidade de requerer-se autorização à Assembleia Nacional para o efeito, sujeitando- se o mesmo às consequências jurídicas e processuais que tal qualidade impõe.


Bibliografia
COSTA, José Faria, «Imunidades e Direito Penal», BFDC, 2000.
CRP anotada, Vol. II, J.J Gomes Canotilho e Vital Moreira.
CRP anotada, Tomo II, Jorge Miranda e Vital Moreira.
GOMES, Carla Amado «Das Imunidades Parlamentares no Direito Português - Algumas Considerações», in VVAA Estudos de Direito Parlamentar, Lisboa 1997.
RAMOS, Vasco A. Grandão, Direito Processual Penal, Noções Fundamentais, 6.o Edição – Colecção da Faculdade de Direito –UAN.
Legislação Consultada
Constituição da República de Angola
Código de Processo Penal
Lei n.o 17/12, de 16 de Maio - Lei Orgânica que aprova o Estatuto do Deputado Lei n.o 25/15, de 18 de Setembro – Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal