Luanda - Em entrevista concedida ao jornalista Amilcar Xavier da  TV Zimbo,  o jurista Carlos Feijó defende um sistema presidencialista de governo próximo ao da África do Sul.


Fonte: TV Zimbo

 "A eleição será indirecta se, para além da eleição universal
tivermos a ratificação ou formalização parlamentar"


A final que implicações jurídicas é que há caso as eleições tenham lugar agora com o actual texto constitucional?
Bom, vamos começar com esta questão, talvez não responder directamente a questão que me foi colocada em primeiro lugar, mas começar por situar o problema; é que nós estamos num processo de transição constitucional, um processo de conclusão de processo constituinte ou de processo constitucional e neste quadro uma série de matérias, questões vão ser suscitadas e haverá seguramente muitas discussões até a aprovação do texto final. Respondendo directamente a sua questão e de forma tanto possível clara, eu diria que o facto de as eleições, hoje, na hipótese que coloca, serem realizadas ao abrigo da actual Constituição, a principal implicação, o principal exercício jurídico-constitucional que haveria de se fazer é o seguinte: é que há uma disposição da Lei Constitucional actual que diz que a eleição de um novo Presidente da República dá lugar a demissão do Governo; significa que, se ao abrigo da actual Constituição for eleito um Presidente da República, automaticamente com a tomada de posse deste Presidente cai o Governo que saído das eleições de 2008 e aqui outros sub-problemas podem ser colocados.


Mas caso seja vencedor destas eleições um candidato apoiado por um partido que esteja na oposição, na mesma cai o Governo?
É por isso é que eu dizia que há aqui uma série de sub-problemas que ainda se podem colocar. O primeiro é: imaginemos a hipótese de ser um vencedor apoiado pelo MPLA, partido que ganhou as eleições em 2008, neste caso haveria sim também uma espécie de demissão do Governo. Eu diria, uma demissão automática, porque ela decorre da própria Constituição, só que nesta hipótese o Presidente apoiado pelo MPLA que eventualmente ganhasse as eleições teria o poder de nomear o Primeiro-ministro, digamos assim, de formar Governo, ainda que reconduzisse o actual Governo em funções. Mas o que a Constituição estabelece é que este Governo demitese, ou é uma espécie de demissão automática, não é necessário, digamos assim, um acto mediador; é a própria Constituição que diz que a eleição de um Presidente da República dá lugar à demissão do Governo e ela opera directamente da Constituição e não de um outro tipo de vontade. Logo, nesta primeira hipótese, ainda que de um candidato apoiado pelo MPLA se tratasse, haveria sempre necessidade de se nomear novo Governo. Segundo problema: na hipótese de não ser um candidato proveniente do MPLA, um candidato hoje da oposição a ganhar as eleições, a mesma norma constitucional seria aplicada, isto é, haveria demissão do Governo e o novo Presidente teria que formar Governo. E a questão que se coloca é se este Presidente estaria vinculado as eleições de 2008 ou não, se ele podia discricionariamente formar seu Governo não tendo em conta a maioria parlamentar de 2008 ou se o contrário.


A Lei Constitucional diz que não…
O que a Lei Constitucional diz, por exemplo, a disposição constitucional similar, próxima a portuguesa, diz mais ou menos assim: o Primeiroministro é nomeado pelo Presidente da República, tendo em conta os resultados eleitorais. A nossa constituição não tem esta última parte, tendo em conta os resultados eleitorais, mas é certo que toda a lógica de funcionamento do Governo, toda a lógica de funcionamento constitucional, todo o sistema de Governo está montado para que o Presidente da República, ainda que seja da oposição, tenha que ter em conta os resultados eleitorais, porque fica-lhe muito difícil governar contra um parlamento dominado por uma maioria que lhe é oposição; teria dificuldades em fazer aprovar o Orçamento Geral do Estado etc., para além de que, como sabe, o Presidente da República é também o chefe do Governo em Angola, e aqui aparecem outros problemas; é que ele seria o chefe de um Governo constituído por uma maioria parlamentar por um partido que não é aquele que é o seu.


Mas professor, de qualquer modo tudo isso pode cair em saco roto, porque o Presidente da República fez uma proposta aquando da visita do Presidente sul-africano Jacob Zuma, sugerindo que o Presidente da República poderia ser eleito por via indirecta …
Vamos tentar situar o problema; começou bem com a pergunta se quais são as implicações se as eleições fossem realizadas ao abrigo da actual Constituição e já tratamos desse problema; a intervenção que o Presidente da República faz, e já veremos o seu conteúdo, coloca-nos outro tipo de problema que é em oposição ao primeiro; quais as consequências da entrada em vigor de uma nova Constituição? Porque o modelo de eleição sugerido será tratado no quadro de uma nova Constituição. Então, para responder a sua pergunta, o melhor é vermos quais as implicações da entrada em vigor de uma nova Constituição e, mais do que isso, de a eleição presidencial ser feita ao abrigo de uma nova Constituição, e depois então poderemos ver em concreto o modelo, porque, e aqui gostaria de abrir um parêntesis, é que talvez infelizmente a discussão constitucional está sendo polarizada, hoje focalizada apenas no sistema de governo, mas uma Constituição tem outras partes e para se apreciar a democraticidade ou não de uma Constituição, seu carácter democrático ou não, não é só olhar apenas pelo sistema de governo que este país tem; temos que olhar para a Constituição como parte, como estatuto jurídico de um determinado regime político, onde para além do sistema de governo há a questão da forma de Estado, há a questão dos direitos de liberdades e garantias, que este sim é que nos vão dar qual o sentido mais democrático ou não de uma constituição. Mas há uma polarização na eleição presidencial, no sistema de governo, uma polarização, digamos, até uma perspectiva mais restrita de tratamento do problema.


O Professor está a fugir a minha questão em relação à proposta do Presidente…
Ainda não respondi; era apenas o enquadramento. Mas vamos então responder a questão: quais são as implicações de uma nova Constituição, antes de falarmos de um modelo concreto de eleição; a entrada em vigor de uma nova Constituição e a eleição presidencial ao abrigo desta nova Constituição tem também outros tantos tipos de implicações jurídicas que eu catalogaria do seguinte modo: implicações jurídico-orgânicas, digamos assim, implicações quanto a compatibilização do mandato parlamentar e o mandato presidencial, falemos apenas nestes dois; poderíamos falar ainda de implicações em relação ao Presidente da República em funções. Mas a questão de fundo que aqui se coloca, a entrada em vigor de uma nova Constituição e esta relação é sobretudo: qual a relação entre o Presidente da República a eleger, ao abrigo da nova Constituição, e as eleições legislativas parlamentares realizadas em 2008? E como é que o problema aqui se colocará? Se com a entrada em vigor, ou melhor, como dissemos, se a realização das eleições fossem realizadas ao abrigo da actual Constituição, já vimos os problemas jurídicos que suscitaria; com uma nova Constituição os problemas ainda são maiores…


O Presidente eleito cessa as suas funções Governo eleito em 2008…
Esta é que é a questão de fundo; qualquer que seja até o modelo de eleição e qualquer que seja o sistema de governo parlamentarista, presidencial ou semi-presidencial, os problemas se vão colocar na mesma; que tipo de problemas? E o problema centra-se sobretudo sempre na relação entre a eleição de 2008 e os órgãos, os poderes, as funções que saem da nova Constituição. Vou lhe dar um exemplo: se olharmos aos projectos, aponta-se praticamente por um presidencialismo e aponta-se para um reforço de poderes do Presidente, embora algum equilíbrio com o parlamento nacional, mas há como que uma transição, uma transferência de poderes de determinado órgão para outro; aqui são as chamadas implicações orgânico-constitucionais.

Neste caso, imaginemos a seguinte hipótese: hoje o Governo saído das eleições de 2008 tem determinado tipo de competências, competências que com a entrada em vigor de uma nova Constituição as perderá, só para dar um exemplo. Neste caso haverá que compatibilizar como é que se sai das eleições de 2008, a legitimidade decorrente de 2008 e a legitimidade decorrente da eleição ao abrigo de uma nova Constituição.

 

Então, professor, vamos as funções que um próximo Governo iria perder caso houvesse uma nova Constituição…
Desde logo a matriz seria um sistema presidencialista puro, que é este que MPLA e UNITA propõem. Um presidencialismo puro significaria, por exemplo, e desde logo, do ponto de vista formal, que deixaria de existir um Primeiro-ministro, passaríamos a ter um Presidente da República e um vice-presidente e colocam-se ai os problemas: o vice-presidente não seria um substituto em termos funcionais do actual Primeiro-ministro, desde logo colocaria-se as questões: então o Primeiro-ministro que foi nomeado decorrente das eleições de 2008 e o Governo de que ele faz parte, vê assim alguns dos seus poderes transferidos por causa dessa transmutação orgânica constitucional para um outro órgão; e só nos estamos a centrar nesta questão central orgânica, mas o problema maior não é este.


Mas o professor fala do sistema presidencial caso seja adoptado na nova Constituição; e se for adoptado um sistema de governo parlamentar?
O problema jurídico é o mesmo; o que eu acabei de dizer em termos de efeitos, o problema jurídico é o mesmo. Eu diria que o problema central que hoje a entrada em vigor de uma nova Constituição coloca e que os partidos políticos vão ter que discutir e encontrar uma forma, uma solução é a seguinte: qual é a relação entre a eleição ao abrigo da nova Constituição e as eleições de 2008; esta é, digamos assim, a questão central, e a meu ver, o que talvez seja necessário é, entrando em vigor uma nova Constituição, tenhamos que resolver, ao nível das disposições finais e transitórias dessa mesma Constituição, como é que se opera a passagem de um sistema para outro, o sistema previsto na Constituição actual para o sistema a prever e que vier a ser aprovada.


Esta é a questão central. Então professor, vamos olhar para as duas propostas, a do MPLA e a da UNITA: onde é que estão as diferenças, afinal?
Talvez aqui a resposta deve ser dada começando por dizer o seguinte: são várias as diferenças entre o projecto da UNITA e do MPLA, mesmo ao nível da organização do poder político, ao nível do poder judicial etc.; não vale a pena enumerar todas as diferenças aqui, mas o que é certo é que tem uma matriz comum.


 Mas o que a UNITA defende é a clara separação de poderes…
Mas o projecto do MPLA também defende a separação de poderes, claramente a separação e interdependência de poderes. Mas a grande diferença, digamos assim, ou melhor, o que eu procuro encontrar é a matriz comum que têm é um regime presidencialista, com diferentes “Chek and Balances”, com diferentes meios e mecanismos de controlo recíprocos, mas há uma matriz: o regime é presidencialista; logo, os problemas e as implicações jurídicas que acabamos aqui de enunciar se vão colocar a mesma. Há uma questão que de certo modo está também na ordem do dia, tem a ver com a eleição de 2008 e a eleição a realizar ao abrigo da nova Constituição; se, por exemplo, o modelo de eleição for sugerido pelo Presidente da República – aqui vamos então a questão que me colocou; o Presidente da República….


Para já, concorda com essa posição assumida pelo Presidente da República?
Deixa-me primeiro explicar antes de tomar, digamos assim, posição; e a explicação aqui é a seguinte: o que o Presidente da República sugeriu foi que o Presidente da República é o número um para o parlamento, ou se quisermos, o cabeça de lista, isto é, é apresentada uma lista para as eleições que passariam a ser gerais e em que o número um dessa lista seria candidato a Presidente da República. Em termos práticos, como é que isso se operaria, para depois eu dar a minha opinião; em termos práticos, nós teríamos um boletim de voto em que teríamos a cara do cabeça de lista e teríamos a bandeira, e o eleitor iria votar simultaneamente, aquilo que um professor catedrático de Direito Constitucional há dias disse-me que teoricamente seria chamado como uma votação conjunta obrigatória, um voto conjunto obrigatório; o que quer dizer voto conjunto obrigatório? Através de uma só eleição elege-se simultaneamente um parlamento e o Presidente da República, é, em termos práticos, como funciona o sistema; e a questão que se coloca para responder se concordo ou não com o acórdão tem a ver com o seguinte: é que a grande questão que se está agora a discutir é se o modelo é directo, se o sufrágio com esta proposta é directo ou indirecto e aqui vou dar a minha opinião; o sufrágio continua a ser directo, ou melhor, dizse que o sufrágio é directo quando não tem entre o eleitor e o candidato uma intermediação, isto é, há uma relação directa entre o eleitor e o candidato. Ora se o boletim de voto tiver a cara…


Isto nas eleições directas….
Nas eleições directas; por isso é que eu digo que a eleição é directa quando no boletim de voto o cidadão sabe que o que está a eleger para Presidente da República aquela fotografia, aquela cara que ali está, e que não haverá uma intermediação qualquer para depois formalizar ou ratificar. Ora, respondendo a questão se concordo ou não, se o modelo de eleição for nos termos que diz o Presidente, se, repito, o cabeça de lista é o candidato a Presidente da República, consta do boletim de voto e o cidadão sabe que aquele número um da lista é o candidato a Presidente, tem duas opções: se não quer aquele candidato como Presidente não vota, e se quiser aquele candidato como Presidente vota. Neste caso continuo a considerar que o sufrágio é universal directo; deixaria de ser directo se houvesse a formalização ou ratificação parlamentar e aqui então gostaria de dizer que, tanto quanto ouvi do Presidente, ele admitia que pode possivelmente, ou melhor, pode, digamos, este candidato ser ratificado parlamentarmente; o que nós defendemos é que para que o sufrágio seja directo não é necessário, é dispensável essa formalização, porque esta formalização implicaria que haveria entre o cidadão eleitor e o candidato uma entidade, o parlamento, que formalizaria a eleição; assim deixaria de ser directo e passaria a ser indirecto…


Mas professor, estamos aqui no campo das ideias históricas, mas a UNITA diz que se houver um modelo de eleição indirecta do Presidente da República, teria de haver necessidade de se repetir as eleições legislativas realizadas em 2008…
Com o modelo de eleição sugerido, e como eu defendo, sufrágio ainda directo, em que não é necessário a intervenção parlamentar, ou sistema indirecto, se houver intervenção parlamentar, em qualquer destes casos teria de haver eleições gerais. Colocando o assunto em termos mais práticos, será que uma eleição, nos moldes que se está aqui a discutir, daria lugar a uma espécie de invalidação das eleições das eleições de 2008? Esta é a questão central. A minha resposta é, haveria sim eleições gerais. Eu não utilizaria o termo eleições antecipadas porque elas têm um contexto jurídico.


Mas este Governo tem legitimidade até 2012…
Esta questão é mais política que jurídica. No fundo, quero dizer, para nós juristas e técnicos que estamos a trabalhar no plano constitucional, vai ser necessário que os partidos políticos, eu não diria negoceiem ou uma palavra forte, mas vai ser necessário que os partidos políticos cheguem a um acordo quanto a um calendário de transição entre a actual e a futura Constituição. Também já ouvi alguns responsáveis da UNITA a falar em um calendário de transição, e isso é necessário. Concordo com este calendário que nós, tecnicamente, depois vamos plasmar nas disposições finais transitórias. Se olhar para a estrutura de qualquer constituição e sobretudo quando uma está em elaboração e a outra já está em vigor, nós temos sempre necessidade de disposições finais transitórias que é para fazer a ponte entre a actual e a futura realidade que vai decorrer da nova Constituição. A intervenção que o Presidente da República deve fazer é apenas antecipar um debate que necessariamente teria lugar se seguíssemos a seguinte a metodologia: discutir os princípios gerias, direitos de liberdades e garantias, organização de poder político, constituição económica, organização judicial e depois teríamos que discutir as disposições finais de transitória. Vai ser necessário que os partidos com assento parlamentar cheguem a acordo, para nós depois, ao nível das disposições finais e transitórias, plasmarmos aquilo que será o resultado desse acordo.


Mas há aqui um problema que se levanta em relação às implicações na compatibilização entre a duração do mandato parlamentar e a duração do mandato presidencial, que ao que parece não vai casar…
Esta é uma das implicações. Não vai. É uma outra questão que tem de ser acordada previamente entre os partidos políticos, porque é uma questão de transitoriedade, saindo de um sistema para o outro. É claro que uma das normas constitucionais transitórias há-de ser esta.


Isto no regime semi-presidencialista não teria implicações nenhumas, porque cada um tem o seu mandato…
Mesmo num regime presidencialista ou num regime parlamentar, tudo que estamos aqui a discutir, todas as questões jurídicas aqui levantadas teriam que ser previamente discutidas entre os partidos políticos e encontrar uma solução.


Como é que os partidos políticos vão organizar este calendário, sendo que é preciso definir timings, porque se não a aprovação da Constituição não vai acontecer em 2010?
Não acho que seja coisa difícil de se fazer. O que vai acontecer, seria uma sugestão pública, é que há uma metodologia que a Comissão Constitucional já aprovou. O que pode acontecer é uma antecipação da discussão das disposições finais e transitórias ou, ao mesmo tempo que se está a redigir a Constituição, como os grupos técnicos constituídos estão a fazer, os partidos políticos se ocupariam de encontrar a solução a plasmar nas disposições finais e transitórias.


Como é que o professor olha para os dois principais partidos políticos: MPLA é o partido que forma o Governo e a UNITA, principal força da oposição?
Estamos a debater a questão da eleição presidencial, a regularidade da eleição do Presidente da República, mas teria sempre implicações no funcionamento interno dos partidos – dentro do MPLA que tem congresso em Dezembro, e mesmo dentro da UNITA…

Eu acredito que sim, mas o que podemos, por enquanto, dizer é que as direcções dos respectivos partidos darão aos seus respectivos representantes na Comissão Constitucional para defender as suas teses. Tanto quanto sei e estou informado, pelos menos no que se diz publicamente do lado da UNITA, é que defende um modelo de Constituição que foi já apresentado a Comissão Constitucional e, também em relação ao MPLA, por aquilo que se vai lendo e ouvindo, diz-se também que há uma contradição entre o projecto apresentado pelo MPLA, quanto ao modelo de eleição, e o apresentado pelo Presidente, enquanto presidente do MPLA, sugeriu há bem pouco tempo.

A minha resposta quanto a este problema é a seguinte: talvez não tenha sido suficientemente divulgado. Mas eu estive na reunião do Comité Central que aprovou as opções constitucionais, e sem querer fazer um “discloser” ou violar as regras internas, nesta reunião, se fizer uma investigação ou se tiver acesso aos documentos que se chama resoluções internas, está claramente que o MPLA adopta o sistema presidencialista e iria apresentar um projecto de constituição e estava aberto que o sistema que o MPLA estava a defender poderia evoluir no quadro do debate constitucional. Como esta que estamos a ter agora.
Seguramente, posso dizer que esta decisão do Comité Central do MPLA parece-me estar em consonância com o processo orgânico de preparação do congresso, no qual, seguramente os militantes do MPLA vão debruçar-se sobre o melhor sistema para o país. Agora, uma nota que eu queria deixar aqui, a nível da comissão técnica constitucional, é a seguinte: que se concordou que havia de se elaborar três projectos de constituição que depois seriam submetidos à consulta pública. O que é certo é que, estando num processo de discussão, cada partido político há-de ver as suas opções consagradas, algumas, outras não. Haverá cedências, porque o processo de elaboração da constituição é sempre um processo de negociação política, e acredito que as posições iniciais que os partidos têm não serão aquelas que finalmente verão plasmadas na Constituição. É neste quadro que eu vejo que todos partidos poderão evoluir.


Olhando para a actual Lei Constitucional, a eleição de um novo Presidente da República agora daria lugar a demissão do Governo que foi eleito em 2008?
Sim, daria. É por isso que insisto nesta questão: será legítimo uma eleição presidencial interromper ou beliscar a legitimidade decorrente da eleição de 2008 e de um Governo que tinha mandato até 2012?Juridicamente o Governo que saiu das eleições de 2008 constitucionalmente deveria terminar o seu mandato terminar o seu mandato em 2012. Entretanto é este elemento novo na Constituição. Também falamos que, ainda que fosse à luz da actual Constituição, a realidade seria a mesma.


O professor recorreu-se da Constituição portuguesa que diz que eleito o Presidente da República pode mandar formar Governo tendo em conta os resultados das eleições legislativas obtidas por este partido…
Eu recordei porque a nossa norma constitucional que diz que o Presidente da República nomeia o primeiro-ministro é uma norma próxima à Constituição portuguesa. Só que a norma da Constituição portuguesa diz que nomeia o primeiro-ministro tendo em conta os resultados eleitorais, mas a nossa norma constitucional não tem esta última parte. Isto significa dizer que talvez aparentemente o Presidente da República, para formar Governo, não está vinculado aos resultados eleitorais. Até por esta interpretação literal e sistemática também. Mas se formos a fazer uma interpretação mais profunda da Constituição, para que o sistema funcione, é necessário que, ao abrigo da actual Constituição, o Presidente da República forme Governo pelo menos respeitando a lógica parlamentar, sob pena de não ver o seu Orçamento Geral aprovado, porque ele é o Presidente e o Chefe do Governo. Imaginemos que ele ocupa esta função e não tem a maioria parlamentar. Como seria a governabilidade?


Em relação a aprovação de uma nova Constituição, vamos ter aqui novos poderes, quer para o Presidente da República, quer para o Governo?
Quer para o Governo, quer para a Assembleia Nacional, tendo em conta que o regime para que se está agora a propender para os dois maiores partidos é claramente para o presidencialismo.


Professor, até que ponto é que a UNITA tem razão quando diz que se o Presidente da República for eleito pela actual Assembleia está-se a dar um golpe constitucional?
Coloca uma boa questão que também me parece não estar suficientemente clarificada. Em nenhum momento…


Estamos a falar caso a proposta do presidente seja válida para as eleições indirectas…
Caso haja necessidade, estamos a admitir esta hipótese de ser o parlamento a eleger o presidente, e a UNITA diz que seria um golpe de estado constitucional. Como é que eu responderia…


Qual é a sua opinião como Jurista?
Dou-lhe a minha opinião: e lá voltamos ao velho problema; é a relação entre a eleição de 2008 e a eleição de 2010 ou de 2011, quando ela for, quando se acertar na data da realização das eleições. Mas é preciso aqui dizer… eu não utilizaria o termo golpe de estado constitucional, mas o que eu diria é o seguinte: é que a eleição de 2008 em nenhum momento se disse que se estava a legitimar o parlamento para se eleger o Presidente da República, de tal maneira que não ouvi declarações públicas ou mesmo internas no sentido de se dizer que se o sistema fosse indirecto, que é este o parlamento com a maioria que agora tem a iria eleger o Presidente da República. Eu acho que é preciso, a expressão talvez seja essa, acalmar, pelo menos eu estou calmo quanto a isso, que não é esta assembleia saída de 2008 que teria legitimidade para eleger o Presidente da República. Não sei se podia ser mais claro do que estou a ser. Gostaria de repetir que paira esta ideia, este receio de ser este parlamento a eleger o Presidente da República, que tem a maioria do MPLA.


Em relação a proposta do Presidente da República que praticamente domina agenda noticiosa nacional e não só, em relação ao sistema presidencial ou o modelo sul-africano. Quais são as implicações no nosso quadro político jurídico na introdução deste modelo?
Primeiro falou em modelo sulafricano, e aqui é preciso clarificar, nos termos que eu aqui estou a defender, não haveria intervenção parlamentar…
No modelo sul-africano o Presidente da República é o chefe de governo…

Nos termos deste modelo, para que o sufrágio seja directo, é necessário que não haja intervenção e formalização parlamentar como na África do Sul. Por isso é que na África do Sul, em Israel e Alemanha o sistema de eleição presidencial diz-se indirecto. O que é que há de diferente entre o modelo sul-africano e aquele que eu estou aqui a dizer, o que há de diferente e o que de comum? O que há de diferente é que não haja intervenção parlamentar, mas na África do Sul há intervenção parlamentar. Logo o sistema é indirecto. Para que o sistema seja directo, aqui vamos pôr um elemento comum, já não um elemento diferenciador, é que o número da lista é que é o Presidente da República. Em termos factuais, na África do Sul, o presidente do ANC é, digamos assim, sempre o candidato presidencial. Em termos práticos, para ver como é que aquele sistema funciona, o líder é candidato; todos lutam para ocupar o maior número de assentos no parlamento, para então depois ter lugar a eleição. Mas se reparar, mesmo antes da eleição parlamentar o actual presidente Zuma já estava sendo felicitado como Presidente, mas não tinha ainda ocorrido a eleição, aliás, mesmo internamente não ouvi ter sido noticiado que a eleição do Presidente da Republica será feita no dia tal, ou não se deu esse desenvolvimento. E quando se publicaram os resultados que o ANC tem X, começou-se a felicitar o Presidente.


O presidente seria apenas legitimado no parlamento…
Seria apenas legitimado, ratificado, formalizado. O que eu estou a defender para que o sistema seja directo é que não haja esta formalização ou ratificação… No caso concreto de Angola, temos estatura política e jurídica para adoptar o modelo sul-africano? Por isso é que eu digo, não adoptarmos o modelo sul-africano no sentido da formalização, ratificação parlamentar, mas pelo menos se a aproximação ao modelo sul-africano de o candidato presidencial ser o número um ou o cabeça de lista do partido mais votado no parlamento. É como dizia, é um voto conjunto obrigatório para o Presidente e para o parlamento. Adalberto da Costa Júnior, numa recente intervenção aqui mesmo no jornal de domingo, sublinhou também que não há efeitos retroactivos do voto. Quando os angolanos foram a votos elegeram uma nova Assembleia Nacional. O que é que Adalberto Júnior queria dizer com isso? Eu acho que ninguém ainda se pronunciou nesse sentido para dizer que não é defensável que a maioria de 2008 sirva para eleger hoje o Presidente da República, e é nesse sentido…


O MPLA tem uma maioria qualificada…
Mas o que eu digo é que, como em 2008, o cidadão eleitor não lhe foi informado que também estava a eleger um candidato a Presidente da República, não foi feita a campanha eleitoral para dizer que está-se a eleger o candidato a Presidente da República é que eu acho que não se pode hoje utilizar essa maioria para se eleger o Presidente da República. Este é o primeiro ponto. Mas temos também o outro lado do problema, daí que eu diga que vai ser necessário uma negociação política entre os partidos, porque há um outro problema que nós aqui já falamos: é que as implicações da entrada em vigor de uma nova Constituição vão passar necessariamente pela realização de eleições e estas eleições, qualquer que seja o modelo, e se for adoptado o modelo próximo ao sul-africano no sentido que eu referi, mesmo sem ratificação parlamentar, esta eleição vai ser uma eleição simultaneamente parlamentar e presidencial. Neste caso, quem teve legitimidade em 2008 deveria ir até 2012. Com todas essas implicações jurídicas é necessário discutir-se pelo menos o seguinte: vamos plasmar isso nas disposições transitórias e finais: se a legitimidade de 2008 deve mesmo continuar até 2012, como seguramente alguns defenderão, ou se essa legitimidade, em função dessas implicações, deve ser antecipada, digamos, deve beliscada pelo novo processo. E quando se realizar as eleições este é a questão politica mais seria que eu acho que é preciso debater agora.


Professor, há aqui também uma situação em relação às condições para se concorrer ao cargo de Presidente da Republica: vamos ter implicações de regime jurídico porque haverá todo um conjunto de implicações no que toca à realização da campanha e também se quisermos a própria lei eleitoral?
Claramente. Eu acho que, primeiro, as principais opções politicas têm de ser determinadas. Seguidamente, todo o edifício jurídico pode ser produzido, uma vez que a própria constituição há-de determinar qual é o direito eleitoral, facilmente aos ajustamentos a nível da legislação eleitoral pode ser feita. Mas deixe-me dizer-lhe que eu não vislumbro grandes alterações ao sistema eleitoral. O sistema eleitoral que nós hoje temos, e que é mais ou menos o que o MPLA defende, também a UNITA, assim como quase todos partidos, de representação proporcional, com uma variação ou outra. Mantendo-se a matriz do sistema eleitoral de representação proporcional, acredito que ainda que se adopte o modelo de o Presidente ser o cabeça de lista, não haverá grandes alterações quanto ao sistema eleitoral de representação proporcional.


Como é que fica as candidaturas independentes?
As candidaturas independentes, no quadro das hipóteses, imaginemos que se adopte o sistema em que o Presidente da República é o cabeça de lista do partido mais votado, isso significa que vamos discutir a natureza dos candidatos independentes, e quando se levanta essa discussão, temos de fazê-lo no seguinte sentido: que tipo de Presidente da República nós estamos a falar? Note-se que no sistema presidencialista, seja no modelo apresentado pela UNITA, seja no modelo apresentado pelo MPLA, temos um Presidente governante, temos um Presidente chefe do executivo, temos um chefe do Governo, este resulta sempre de opções político-partidárias. Normalmente diz-se que o Presidente da República é neutro, é uma pessoa que está aí como estabilizador e que não deve ter nenhuma filiação partidária. Isto está certo quando estamos perante um Presidente neutro. Mas nós vamos ter, em qualquer dos projectos constitucionais que aí estão, um Presidente da República executivo, que governa.


É assim na África do Sul mas não é assim em Israel, por exemplo…
Claro. Mas na África do Sul temos um Presidente eleito assim, mas é um Presidente executivo. É um verdadeiro presidencialismo. Mas em Israel é um Presidente que não governa. Mas vamos a questão: eu fiz esta introdução, digamos assim, teórica, para dizer o seguinte: se formos por este modelo, a candidatura independente é aquela que é apoiada por partidos políticos. A meu ver, não significa que as candidaturas independentes desaparecerão. Eu posso não ter uma filiação orgânica partidária, mas recolher a simpatia de partidos políticos. Poderão ser candidatos independentes no quadro de partidos políticos que o suportam. Não será candidato independente no sentido de que é um movimento de cidadãos que o suporta, ou organizações não governamentais que o suportam. Será candidato independente, se este sistema vingar, note bem, e que isso fique claro, a candidatura independente vai se colocar no quadro da não filiação orgânica partidária de alguém.


Mas este candidato independente tem que ter mandato parlamentar?
Ele é o número um da lista, mas não vai tomar posse como parlamentar. Vai ser Presidente da República. Só que, como é que em termos práticos isso poderia acontecer? Estamos no campo das hipóteses: eu sou candidato independente; iria ver qual dos partidos políticos apoiariam a minha ideia, o meu projecto de país, o meu projecto político, e iria discutir com eles: serei vosso cabeça de lista porque defendo este projecto e vocês acreditam que eu vá vencer, etc. Mas em termos práticos eu coloco o problema no seguinte sentido: no actual estado de desenvolvimento da democracia representativa, eu não consigo vislumbrar um candidato que consiga governar um país sem apoio de partidos políticos; tenho dúvidas.


Quais são as dúvidas?
As minhas dúvidas são: não estou a ver que sejam movimentos sociais a governar e, por enquanto, no estado da democracia actual, no mundo não conheço nenhum exemplo de quem governa sem apoio de partidos políticos. Mesmo sendo independente, são partidos políticos que os apoiam.


Mas a nova constituição é que tem que estabelecer isso…
Terá que estabelecer. A constituição terá que ter uma norma que diga, se este for o modelo, se pode-se admitir candidaturas independentes, mas no quadro de partidos políticos. Quer dizer, eu não sou militante de determinado partido político mas vou pedir apoio aos partidos políticos. Já não me lembro se nas eleições de 1992 quais foram os candidatos independentes.


Mas professor, estamos aqui num cenário de transição…
Sim, claramente. E quando falo no cenário de transição estou a falar no cenário de sairmos de um sistema que é o actual para um sistema novo, cujo elemento essencial é, em função do modelo eleitoral que vai ser adoptado ou mesmo qualquer que ele seja, haverá lugar sempre a uma nova eleição. É isso, no fundo, que disse também o Adalberto, e com muita razão.


Como é que viu a proposta que o Presidente da República avançou aquando da visita de Jacob Zuma?
Acabei lhe respondendo; a eleição será indirecta se, para além da eleição universal tivermos a ratificação ou formalização parlamentar.


Mas como jurista, satisfaz-lhe está proposta?
Eu pessoalmente não concordo com a confirmação parlamentar, porque aí o sistema seria indirecto, não seria directo. Mas também quero dizer o seguinte: os sistemas indirectos não significam que não sejam sistemas democráticos. É bom que todos saibamos disso. Não há nos paradigmas e nos indicadores internacionais quem diga que a África do Sul não tem um sistema democrático. Não há quem diga que em Israel ou na Alemanha, que é um sistema de eleição directo, não haja democracia. É importante não avaliar a democracia em Angola pelo facto de irmos num sistema directo ou indirecto. Agora, respondendo a sua questão: o que eu defendo, com toda independência e liberdade intelectual que sempre me caracterizou, é dizer que aceitaria bem um sistema em que o Presidente é o cabeça de lista, mas sem necessidade de ratificação parlamentar.


O MPLA está preparado para isso?
Eu acho que o Presidente, na qualidade de presidente do partido, disse o seguinte: o Presidente será o cabeça de lista do partido vencedor e disse que poderá eventualmente ser ratificado ou formalizado. O que no fundo estou a defender em relação a esta proposta é que defendo e aceitaria bem, porque acho que ainda seria sufrágio directo, dizer-se na Constituição que o candidato é o cabeça de lista do partido mais votado, mas sem necessidade de mediação parlamentar, sem necessidade de formalização.


E seria um bom exercício para o MPLA que tem às portas um congresso…
Eu acho que disse isso aqui inicialmente. O próprio processo de discussão, isso já está na ordem do dia, digamos assim, ao nível do MPLA, a decisão que o comité central tomou provavelmente não tenha sido suficientemente explicada e divulgada – e eu estive directamente envolvido na preparação da decisão – foi justamente que este é o projecto que vai, mas que estávamos abertos a discussão para evoluirmos no sentido de qualquer outro modelo, desde que o partido, a seu tempo, considerasse serem estas as melhores opções para os seus objectivos e os objectivos do país.