Luanda - A escassez de informações a respeito da figura que, há 30 anos, conduz o destino dos angolanos penaliza, em grande medida, qualquer tentativa de compreensão do seu carácter. Há, entretanto, sinais, a ele característicos, que saltam à vista. José Eduardo dos Santos é uma pessoa reservada, disso não parece haver dúvidas. Estas existem, sim, em relação à sua filosofia política e o futuro que, em função dela, reserva para Angola.


Fonte: A Capital

JES um líder distante das massas

A frequência com que faz declarações públicas não decorre, apenas, de uma política de gestão de imagem. Afigura-se, afinal, um claro sinal da opção pelo retraimento feita por alguém cujo cargo que desempenha contrasta com a timidez demonstrada. Mas isso, também, tem alguma justificação. A 21 de Setembro de 1979, quando foi empossado como Presidente da República Popular de Angola (RPA), José Eduardo dos Santos deu a primeira indicação desse traço da sua personalidade. «Não é uma substituição fácil», disse, a respeito das responsabilidades ora assumidas por conta do falecimento do seu antecessor. «Nem tão pouco uma substituição possível», acrescentou para, em seguida, fechar com a frase: «é apenas uma substituição necessária».


Como interpretar essas palavras? Estaria, aqui, José Eduardo dos Santos a revelar-se, de certo modo, forçado a assumir a Presidência da República? Seria, apenas, a manifestação da humildade de um rapaz de 37 anos, perante uma assistência de mais velhos politicamente forjados no exílio, nas cadeias do colonialismo e, ainda, durante largos anos de clandestinidade? Ou tratou-se, afinal, do primeiro sinal, passado à nação, da forma como ele passaria a gerir a vida do país?


Passaram-se os anos, e essa característica para o isolamento foi se evidenciado mais e mais. Contam-se, por exemplo, pelos dedos de uma só mão, as entrevistas cedidas, pelo Presidente, a órgãos de comunicação social angolanos, apesar de todo o controlo que os seus serviços de apoio têm sobre a media pública. As suas intervenções são, de resto, raras. Estão, até hoje, limitadas ao estritamente necessário, da mesma forma que são escassos os momentos de convívio com a população de quem depende, afinal, a força do MPLA, partido presidido por José Eduardo dos Santos.


Apresenta-se, digamos, como um líder distante das massas. Talvez essa condição justifique a curiosidade que se tem a seu respeito a ponto das suas intervenções públicas suscitarem, quando assim se permite, um verdadeiro banho de multidões, ainda que os cidadãos esbarrem, depois, em muros de soldados fortemente armados como uma metáfora viva das dificuldades que enfrenta quem procura chegar próximo do líder dos angolanos. Não espanta, por isso, que sejam praticamente inexistentes as obras a respeito do seu percurso, além, como é óbvio, de biografias editadas por gente inteiramente a seu serviço.


Esta abordagem, dada à estampa nesta edição especial, esbarrou, justamente, na falta de informações, na falta de documentos. Mas, claro, há sempre como contornar um imperativo de tal natureza. Recatada ou não, a figura de um líder desperta a atenção dos seus súbditos que, sobre ele, desenvolvem opiniões baseadas nos factos que lhes chegam ao conhecimento. Todos os textos publicados nesta edição representam, pois, a opinião dos seus autores, alicerçada na vivência e conhecimentos académicos ou profissionais de cada personagem cujo texto é aqui revelado.
Já que falamos em opinião, atrevemo-nos a sugerir um segundo traço publicamente reconhecido do carácter do Presidente José Eduardo dos Santos, a inteligência. Vezes sem conta, analistas aparecem a público a enaltecer as suas características enquanto político, debitando largos elogios e, às vezes, até mesmo duras críticas à forma como gere os recursos humanos ao seu redor. Há quem o tenha, por exemplo, como leitor regular de «O Príncipe», o célebre tratado político escrito pelo não menos célebre Nicolau Maquiavel e publicado em 1513.


Mas essas palavras, simpáticas ou não, dirigidas ao Presidente Angola não vêm ao acaso. É preciso, de facto, não apenas bastante jogo de cintura como, sobretudo, elevado grau de inteligência para se manter ininterruptamente por 30 anos no poder, liderando, sem adversários a altura, a nação e o seu maior partido político.


Ao longo destes anos, Eduardo dos Santos travou várias batalhas para manter a sua dupla condição de líder, mas saiu-se vitorioso em todas elas. Se, ao nível nacional, afastou qualquer ameaça à sua liderança, no seu partido teve de enfrentar guerras não menos duras para consolidar essa condição. Hoje, ele é o líder absoluto, a tal ponto que os seus adversários, dos poucos que existem, tiram o chapéu ao seu passar e fazem vénia em sinal de respeito e de reconhecimento pelo trabalho de alguém que não deixou que a inexperiência juvenil sucumbisse face à matreirice da velha guarda. Sem grandes ondas, moldou um novo MPLA, trocando os quadros e criando uma estrutura de mando que funciona a seu bel-prazer. Pode-se hoje, à vontade, substituir o slogan «o MPLA é o povo e o povo é o MPLA», mudando, respectivamente, as siglas MPLA, pelo nome de José Eduardo dos Santos, e a palavra povo pela sigla MPLA. Eis o que se obteria: JES é o MPLA e o MPLA é JES.


A discussão que se segue não tem nada a ver com o que o homem fez para se manter na liderança. Tem, isso sim, com o que ele faz com a posição consolidada. E, face a isso, os factos não mentem. Não há como não se virar costas a indicadores que empurram Angola para a condição de um dos piores países do mundo. Fala-se, pois, dos indicadores que a atribuem um dos piores índices de desenvolvimento humano. Isso pressupõe um falhanço grotesco em políticas sociais que não impulsionariam, como deveriam, o acesso a serviços sociais básicos, como educação de qualidade e serviços de saúde dignos deste nome abertos à maioria da população. Além de uma taxa de analfabetismo elevada, Angola ainda tem um exército de crianças fora do sistema de ensino e uma das piores taxas de mortalidade infantil do mundo. E, claro, uma esperança média de vida deveras reduzida.


Tratam-se, de facto, de indicadores muito divulgados, entretanto contrapostos com o argumento de uma guerra que acompanhou, até aos últimos sete anos, grande parte da presidência eduardista. A guerra, de facto, destruiu infra-estruturas e levou para si investimentos que seriam canalizados para benfeitorias de amplo impacto social.


Mas há coisas que deveriam ser feitas, ainda em tempo da guerra que, se não concretizadas, acabaram simplesmente marginalizadas. Nem mesmo uma indústria de apoio à guerra o Governo de Eduardo dos Santos conseguiu desenvolver. O sinal mais próximo de industrialização militar foi a fábrica Macambira que durante um tempo foi projectada para a produção de fardamento destinado ao exército. Sol de pouca dura. O gigante adormeceu e, hoje, transformou-se num mero conjunto de armazéns de revenda de artigos importados. Ademais, a logística do exército angolano seguiu nesse diapasão, completamente dependente da importação, inclusive de produtos que, com pequenos investimentos, poderiam, muito bem, ser produzidos aqui, no país. Isso, claro, reverter-se-ia em milhões de divisas poupadas ou mantidas a circular em território angolano.


Fora esse acelerar do ritmo cardíaco dos últimos anos, a gestão do Governo angolano foi, sempre, apática no concernente à criação de infra-estruturas. O que existe, em grande medida, é ainda de herança colonial. Mesmo ao nível do poder político, ainda se mantêm os símbolos do colonialismo, não por uma questão cultural. Nada disso. Muitas vezes, isso decorreu de uma incapacidade do Governo produzir obras em honra da tão reclamada dignidade angolana. Vejamos, por exemplo, que o partido libertador, como é também conhecido o MPLA, continua hospedado (pelo menos a sua sede) num edifício construído pelos colonizadores. Assim como foi com o MPLA, os principais órgãos de soberania continuam a trabalhar em edifícios herdados do colonialismo. A Presidência da República esteve instalada em dois locais diferentes; primeiro no Futungo de Belas, um complexo criado para fins turísticos na época colonial e, depois, na Cidade Alta, onde se mantém, no mesmo Palácio que albergava os governadores enviados para Angola pelo colonialismo português. Muitos líderes de nações africanas, também submetidas ao colonialismo europeu, trataram de construir para si grandes palácios, onde funcionam, hoje, as respectivas presidências. José Eduardo dos Santos, porém, mandou erguer, no centro da cidade, uma residência particular, entretanto com dimensões inferiores às do antigo Palácio dos Governadores onde ainda está hospedado.


E o que dizer, então, da Assembleia da República, abrigada no antigo Cine Restauração, também de herança colonial, ou, ainda, do Tribunal Supremo? Em 30 anos, esse Governo não tratou, sequer, de construir edifícios para albergar os órgãos de soberania, com a mesma dignidade que as obras construídas pelos portugueses, e que pudessem marcar a ruptura definitiva com esse lado triste da história de Angola. No domínio das construções, não há apenas pontos negativos ao nível da instalação do poder político. Hoje por hoje, a propaganda governamental diz que o Governo trabalha em busca da melhoria da assistência sanitária. Só não explica como é que a maior unidade hospitalar do país continue o Hospital Josina Msachel. Antes deste nome, esta estrutura já foi Maria Pia e, bem antes, Dona Maria. Ora, esse hospital foi inaugurado em 1883, portanto, no final do século XIX, numa época com uma densidade populacional diametralmente diferente daquela que temos hoje. Para aqui, a guerra também é chamada como justificativa com todos os efeitos nefastos já referidos anteriormente. Mas mesmo quando teve a oportunidade de começar a construir, o Governo optou pela reabilitação, em todo o país, de estruturas antigas ou pela construção de novas em dimensões, inclusive ao nível material e humano, manifestamente incapazes de atender a enorme demanda por esses serviços. De resto, seja pela guerra, seja por falta de programas eficazes, a verdade é que a política social ao longo destes 30 anos revelou-se um desastre nas suas mais variadas esferas, com a população a ser amplamente penalizada.


Catastrófico, também, assume-se o fenómeno corrupção, amplamente desenvolvido desde a abertura do país, no início dos anos 90, para a economia de mercado. A nação socialista viu os seus dirigentes tornarem-se capitalistas, num processo de enriquecimento com critérios duvidosos e que aprofundam o fosso entre ricos e pobres. Embora tenha incrementado alguma transparência e criado instituições fiscalizadoras como o Tribunal de Contas, a verdade é que o fenómeno segue imparável, impulsionado por uma promiscuidade, entre empresários e políticos, sem travão à vista.
Sobre José Eduardo dos Santos já se disse, aqui, da sua invulgar inteligência e habilidade política. Isso pressupõe, claro, um acompanhamento permanente dos factos para que se possa tomar decisões em tempo oportuno no sentido de reverter, a seu favor, o curso das coisas. No seu percurso político, o Presidente angolano soube, sempre, adaptar-se aos sinais dos tempos. Quando a conjuntura internacional pareceu favorável, mostrou abertura para a vida negocial em busca de um fim para uma guerra que dividiu os angolanos durante largos anos. Apesar de acordos fracassados, empenhou-se em jogadas diplomáticas, sempre facilitadas pela conjuntura internacional. Fruto delas, recebeu, em nome do país, o mérito por importantes vitórias. Não deve-se, pois, esquecer do envolvimento de Angola, liderada por Eduardo dos Santos, no fim do regime racista sul-africano e, claro, na conquista da independência da Namíbia.


Mas foi mesmo em 2002, ao derrubar, fatalmente, o seu arqui-rival, Jonas Savimbi, então líder do braço armado do agora segundo maior partido político angolano, que todo o poder de José Eduardo dos Santos começou a ser posto à prova. Sem a sombra daquele, iniciou uma política de reconciliação nacional, abdicando do recurso à caça às bruxas aos adversários. Titubeou na hora da realização das eleições legislativas, mas acedeu, seis anos depois do alcance da paz naquele que se pretendia o regresso à normalidade constitucional, interrompida em 1992. Com recurso ao seu enorme poder, vai adiando a realização das eleições presidenciais, dando sinais, agora com a elaboração da Constituição definitiva em curso, de uma vontade de alteração das normas em vigor na República para adequá-las aos seus interesses pessoais. É uma nódoa, digamos, comparada ao percurso de um país irmão, no caso Moçambique, que iniciou um processo democrático, normalizado, logo depois que a guerra terminou naquele país do Índico.


Mas o presidente angolano tem, também, os seus pesadelos. Embora diga o contrário, o Governo confronta-se com focos de instabilidade no enclave de Cabinda, que não sendo propriamente uma guerra não deixa, porém, de incomodar as autoridades ao ponto de manterem, por lá, um forte efectivo militar. As soluções desenhadas não foram, por isso, as mais acertadas.


A crise internacional abrandou o desenvolvimento económico e atrasou o processo de reconstrução nacional, centrado na reabilitação e construção de estradas e demais infra-estruturas.


É o país, no fundo, a avançar em duas velocidades. Se, por um lado, procura acelerar a reconstrução e construção de mais infra-estruturas, por outro abranda no domínio das liberdades constitucionalmente consagradas para os cidadãos. As manobras constitucionais, o adiamento sucessivo das presidenciais levantam questionamentos sobre o curso da democracia angolana e deixa, no ar, as mesmas dúvidas subjacentes na abertura deste texto. Que homem, afinal, se esconde por detrás da aparente timidez do Presidente da República de Angola: o progressista, o democrata ou, como dizem uns, o ditador?