Lisboa - A ministra da Justiça de Portugal, Francisca Van-Dúnem, chega hoje a Angola para reforçar a cooperação no domínio judicial. Ao Jornal de Angola, a angolana, que deixou o país depois da independência, fala do 27 de Maio de 1977 e da perda de seus ente-queridos: “Tenho esperança de que seja possível devolver algumas pessoas a dignidade que merecem na História de Angola”

*Víctor Silva
Fonte: JA

Como chega a ministra da Justiça em Portugal?

O senhor Primeiro-Ministro, António Costa, decidiu convidar-me porque conhece o meu percurso profissional, porque tive a oportunidade de trabalhar com ele em várias ocasiões. Recordo-me da questão do Bairro Alto, em Lisboa, que era muito complexa e que era preciso a integração de múltiplas valências, para que se pudesse tornar num espaço habitável e aprazível. Foi preciso equilibrar os vários interesses que estavam ali presentes, os interesses dos moradores, por um lado, e dos proprietários das casas, por outro, e depois as questões de segurança que estavam associadas a isso, problemas do tráfico, do vandalismo, porque na altura havia o processo de reabilitação, num dia reabilitava-se um prédio e no dia seguinte aparecia grafitado, e na altura presidente da Câmara de Lisboa, António Costa, juntou à sua volta um conjunto de pessoas de várias áreas que podiam ter competências específicas nas matérias aí envolvidas. A minha tinha a ver com o Ministério Público (MP) e com a resposta a dar aos problemas dos grafites naquela zona. Portanto, trabalhei com ele nessa ocasião e havia uma relação de respeito mútuo que o levou a apoiar a carreira que fiz, que levou a convidar-me a ser ministra. Não se esqueça que fui magistrada do MP durante muitos anos, estive como assessora de um procurador-geral da República durante anos, que foi a pessoa que fez o desenho actual do MP e, depois, dirigiu o maior Departamento de Investigação e Acção Penal português, o DIAP de Lisboa. Organizei o DIAP de Lisboa. Na sequência desta organização, fui nomeada para dirigir o maior distrito judicial - o de Lisboa. Portanto, diria que tenho um currículo suficiente para ser convidada a ser ministra da Justiça.

 

A senhora ministra admite que haja focos de racismo encapotado em Portugal?

Há. Não só encapotado como declarado. Não tenho a pretensão de que a minha nomeação pelo Dr. António Costa significa que não haja fenómeno de racismo na sociedade portuguesa tal como existe noutras. Sempre afirmei que este é, de facto, um problema do presente e do futuro, com determinação.

 

Em Angola, sabe que se comenta o facto de a primeira ministra negra em Portugal ser logo uma Van-Dúnem?

Ai é?! Uma Van-Dúnem por várias razões, porque de alguma forma, como sabe, a minha família em Angola teve uma situação que se pode dizer privilegiada, que permitiu que os meus pais me pusessem a estudar e incutisse um conjunto de princípios que hoje integram a minha personalidade e que acho que são relevantes quando se pretende escolher alguém para o exercício de um cargo político: a probidade e a integridade. São princípios que aprendi em casa e pratiquei, e que são reconhecidos pelas pessoas que me rodeiam. Portanto, é verdade que de facto tive mais possibilidades que muitos angolanos. Depois, em Portugal, tenho uma carreira na magistratura, mas que foi sempre de uma dimensão pública, porque sempre tive o cuidado de ser transparente, explicar o que fazia e, sobretudo, em falar em público com alguma reserva sobre o que entendia serem os problemas da Justiça. Sempre falei da Justiça e sempre fui chamada a falar da Justiça. Então, por que não eu ser ministra da Justiça?

 

Certamente que sabe que a sua família é das mais influentes e poderosas de Angola…

E acha que estes tentáculos chegariam a Portugal…?

 

Pois, a pergunta que espanta é exactamente essa. Será que os tentáculos já chegaram a Portugal?

Se assim fosse, provavelmente não viveria em Portugal. Viveria em Angola. Não acha (risos)?

 

Um à parte: nas conversas com os seus falecidos pai e tio e com a sua mãe, em algum momento se falou que o ex-Presidente José Eduardo dos Santos também é um Van-Dúnem, como se comenta em Angola?

Confesso que não. Devo dizer que tenho dificuldades em perceber o alcance da sua pergunta. O que devo dizer é, seguramente, que, se acompanhou a vida dos meus pais, sabe que muito cedo o meu pai teve um AVC e foi morrendo de tristeza, como costumo dizer. A minha mãe não é Van-Dúnem. E este não é um tipo de conversa que normalmente tivéssemos em família sobre quem é quem. Não é de facto este tipo de conversa. Mas se as pessoas dissessem que eram da família, a primeira coisa seria identificar através de antepassados. Mas não havia este tipo de conversa. Essa indicação foi aparecendo posteriormente de outros familiares que faziam referências de que o pai de José Eduardo dos Santos teria dito, em determinado momento, que se tinha apresentado como sendo parte da família, o que significa que o filho também era. Mas não tiro daí nenhuma consequência familiar.

 

Sabemos que, tal como outras famílias angolanas, carrega a dor da perda de um irmão e de uma cunhada no 27 de Maio de 1977 e de ainda ter criado um sobrinho filho deles. Passados estes anos, a dor permanece?

Queria fazer uma nota prévia antes de responder: Não vou a Angola tratar obviamente desta matéria. Haverá, no futuro seguramente, oportunidade de o fazer. Agora, quanto à questão da perda - não sei se já perdeu um irmão - é única e irreversível. O que podemos fazer é conviver com ela de forma diferente, porque o ser humano tem essa capacidade. Foram perdas de vidas, sobretudo, de pessoas muito jovens, e acho que o João (Van-Dúnem) era uma pessoa notável. Muita gente acomodou-se à sua própria condição/situação. Ele podia tê-lo feito, para ser aquilo que, na altura, chamávamos de “alienados”. Não foi isso que ele fez. Ele escolheu, muito novo, lutar pela independência do país e, obviamente, o sentimento de perda nesta dimensão é para mim ainda maior.

 

Como vê o anúncio recente do Governo angolano de que vai haver um processo de reparação das vítimas da repressão política?”

O que digo é que todos os processos que tenham por objectivo reduzir a soma de dor, de incompreensão e o sentimento de exclusão que existe relativamente a quaisquer grupos sociais, sobretudo, em virtude de acontecimentos traumáticos, é importante. Os processos de reconciliação são importantes nas Nações saídas de guerra, até porque é preciso que haja uma maior inclusão também neste domínio, das feridas que foram abertas por razões que tenham que ver com as escolhas políticas. Costumo dizer que tive um enorme privilégio de ter assistido ao nascimento de um país, ter acompanhado o processo que conduziu à Independência do país. Isto é das coisas que me enche de orgulho. Agora, também devo dizer que considero que o mais importante agora é que sejamos capazes, que Angola seja capaz de encontrar os meios, métodos e caminhos, formas de abordagem das pessoas que as possam conduzir à reconciliação. Não devemos é ter uma sociedade dividida em função de factores deste tipo.

 

Acha que este anúncio do Governo angolano pode ser a catarse destes acontecimentos traumáticos?

O anúncio é, necessariamente, virtuoso, é sempre bem-vindo. Não conheço os desenvolvimentos, o método que se pretende seguir nesta abordagem de reconciliação. É um princípio mais do que correcto e justo. Vamos ver como é que as coisas evoluem. Tenho esperança de que seja possível devolver a algumas pessoas a dignidade que merecem na História de Angola.

 

Como angolana, que também é, qual é a leitura que faz do actual momento que o país vive?

Vou a Angola como ministra da Justiça de Portugal. Sou angolana e faço, também, a minha observação pessoal, aquilo que posso dizer é que tudo o que pretendo é que Angola, nesta nova etapa que está a construir, consiga efectivamente concretizar aquilo que foram os valores, princípios e as razões profundas que levaram à luta pela independência e que custaram tantas vidas. É importante que os angolanos sejam capazes de unir as mãos, de reduzir a soma das suas incompreensões e encontrar formas que lhes permitam romper com um passado de menor inclusão, de grande diferença a nível social e que, de facto, se venha a tornar numa sociedade feliz com pessoas realizadas, sentindo-se incluídas, envolvidas com o Estado de Direito a funcionar em pleno. É esse, de facto, o meu grande desiderato.

 

A cooperação registou um irritante, com acusação de que Portugal não estaria a respeitar um acordo assinado no âmbito da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) no domínio judicial. Acha normal que os países rubriquem acordos e, depois, não os respeitem?

Isso não é normal. Mas o que posso dizer é que não foi isso que aconteceu. Temos de separar a dimensão política da judiciária. Celebramos acordos e, obviamente, os acordos são instrumentos políticos que funcionam como lei interna. Temos uma separação muito clara entre o poder judicial e o Executivo. Os poderes executivos e legislativos têm a capacidade para celebrar acordos e, depois, acontece a aplicação no poder judiciário. E neste caso, o judiciário tem que ver com o momento em que toma as suas decisões, e permitiu que o processo fosse transferido para Angola. Mas gostaria de deixar claro que a independência do poder judicial é um valor adquirido e a autonomia do MP é também um valor adquirido. Portanto, a autoridade central relativamente à cooperação judiciária em matéria penal no quadro dos acordos de cooperação judiciária e jurídica com Angola é a PGR. A PGR e o MP fizeram uma avaliação, do seu ponto de vista, correcta da possibilidade de transferência do processo. Houve recurso das decisões. O que posso dizer é que as instituições funcionaram.

 

Esta sua visita a Angola vai dar outra dimensão à cooperação bilateral no aspecto judicial?

Espero que sim. Sempre tivemos uma cooperação, independentemente da existência ou não de protocolos, muito próxima em matéria do judiciário, quer a nível das procuradorias-gerais quer a nível das escolas de formação, sempre houve uma cooperação que nunca parou. Penso que, neste momento, é necessário dar um novo impulso, tal como tivemos de dar aqui em Portugal. Sabe que houve nos últimos anos limitações nas perspectivas financeiras que condicionaram a capacidade em termos de cooperação. De qualquer das formas, a minha visita tem por objectivo essencial melhorar a cooperação em vários segmentos. Por um lado, os Registos e Notariados, que Angola entende que precisa de uma “segunda vida”, que tem a ver com as questões de tecnologia, circuitos internos ligados a esses serviços, redes, sistemas de tramitação electrónica… Em Portugal, na Justiça, as conservatórias registaram um grande avanço a nível do digital e da aglutinação de serviços. Temos um portal onde, de forma electrónica, é possível obter cerca de 90 serviços, mas temos também modelos que vão ao encontro daquilo que são as necessidades dos cidadãos, e não ficar à espera que o cidadão venha pedir. E o que vamos fazer é partilhar isso com Angola.

 

E a investigação criminal?

Temos um protocolo no domínio bilateral e da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Como sabe, não há coincidência integral entre as competências dos ministérios da Justiça dos dois países. Há competências que, em Portugal, são do Ministério da Justiça e, em Angola, são do Ministério do Interior, sobretudo no que diz respeito, por exemplo, à Polícia Judiciária, Serviços Prisionais ou até da Medicina Legal e Ciências Forenses. Mas a Polícia Judiciária de Portugal sempre trabalhou com as suas congéneres angolanas sobre a investigação criminal, e vamos prosseguir com esta co-operação bilateral. Tenho agendada uma reunião com o ministro do Interior de Angola durante a minha visita, para saber como estão a funcionar as coisas em termos dos acordos que temos assinados. Já temos um protocolo e vamos apenas fazer o balanço da sua implementação.

 

O facto de algumas fortunas angolanas estarem domiciliadas em Portugal, numa altura em que em Angola há um combate à corrupção e o processo de repatriamento coercivo de capitais e activos, pode ser um obstáculo na cooperação? Portugal já manifestou a disponibilidade em colaborar com Angola na recuperação destes activos.

Como sabe, quer o Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciária entre Portugal e Angola, quer a Convenção de Auxílio Judiciário Mútuo no quadro da CPLP prevêem a possibilidade de qualquer dos Estados contratantes, tendo um processo-crime a decorrer em que surjam ou se coloque a questão da ocultação de bens provenientes do crime, pode requerer à outra parte, se tiver dúvida, se os bens provenientes do crime estiverem noutro Estado, não só a apreensão destes bens como as medidas de conservação dos mesmos que permitam que os bens possam, obviamente depois de decretada uma sentença, retornar ao país e ser declarada a perda a favor do Estado ou, no caso de privados, que possam ser entregues ao Estado. Estas situações têm cobertura nos instrumentos que temos em matéria de cooperação judiciária e penal.

 

 

Como vê a apresentação pelo antigo embaixador angolano Adriano Parreira, na PGR portuguesa, de uma queixa-crime sobre uma alegada conspurcação entre a Justiça dos dois países?

Não conheço a queixa. Não tenho conhecimento do conteúdo dessa queixa-crime. O que posso dizer é que a Justiça portuguesa não está conspurcada nem o judiciário angolano.

 

A ideia era de que havia um conluio ou pressão política que influenciavam decisões judiciárias tomadas aqui em Portugal.

Não, em Portugal não há pressão política que influencie decisões judiciais. É o que posso dizer.

 

Não aconteceu com o caso do engenheiro Manuel Vicente?

Não. Aliás, nesse caso, houve decisões diferentes, o que significa que houve inteira liberdade do judiciário para decidir sobre aquela questão concreta.

 

Há, pelo menos nos países de expressão portuguesa, a tendência da judicialização da política…

Mas isso é um processo diferente. Ou seja, quando se fala em judicialização da política, o que se pretende dizer é que, eventualmente, haverá situações em que o judiciário intervém, bloqueando a decisão política ou pronunciando-se sobre matérias que são eminentemente políticas. O princípio que existe é da separação e interdependência dos vários poderes do Estado. A interdependência consente articulações e justifica que haja uma grande harmonia com cada um a agir do seu lado, de acordo com seus critérios e seus métodos. Da mesma forma que o poder político não deve interferir nas decisões judiciais. Essa é uma regra sagrada.

 

O seu esposo também aparece, aqui em Portugal, em círculos que, agora, associam relações familiares nos membros do Governo do Primeiro-Ministro, António Costa. Em Angola, olhamos para estes casos como nepotismo. Na Europa, não existe nepotismo?

Existe. Só que não existe no meu caso. Esta é uma espécie de história não universal, mas uma espécie da história local da infâmia. Meu marido é professor universitário, catedrático de uma Faculdade de Direito, é especializado em áreas que tem que ver com o Direito Público (Finanças Públicas, Contratação Pública…). Não é um membro do Governo.


A inclusão do meu marido nos comentários das redes sociais sobre estas ligações familiares no Governo é um engano. As redes sociais nem sempre são um espaço higiénico em que se possa frequentar. O meu marido é dos mais reputados na área em que sempre trabalhou. Não creio que isso tenha que ver com nepotismo. Se a competência dele antes sempre foi reconhecida, mesmo quando era jornalista, sempre teve uma grande actividade política e a nível da advocacia, é um advogado com grande notoriedade pública. Acho que seria um absurdo que deixasse de trabalhar porque a sua mulher é membro do Governo. Acho que esta história de nepotismo é melhor ficar por aqui, porque é uma história absurda e infamante.

 

Uma provocação, para terminar: Defendeu o aumento dos salários dos juízes aqui em Portugal, segundo os críticos, na perspectiva de que pode também beneficiar deste aumento quando deixar de ser ministra da Justiça?

Já disse que a aproximação da campanha eleitoral aqui em Portugal não eleva a infâmia à virtude nem desgradua o nível de decência e de elegância que devem presidir o debate político. Eu discuto há três anos o estatuto dos magistrados porque tive sempre presente a representação do interesse público. A questão do tecto salarial dos juízes em Portugal tem a seguinte explicação:  Não vão ganhar mais do que deviam ganhar, de acordo com o respectivo estatuto remuneratório.