Luanda - Acusações de burla, incumprimento de prazos, ocupação ilegal e abuso de poder. Este o cenário que simboliza a dura relação entre clientes, "moradores invasores", uma imobiliária e um suposto revendedor de terreno no projecto habitacional Jardim do Éden, bairro Camama. O condomínio, que se iniciou em força, perdeu "pujança" a partir de 2010, deixou 169 clientes com o sonho da casa própria "suspenso no papel" e uma quase interminável batalha judicial.

Fonte: Angop

A briga na justiça já leva nove anos, marcados por impaciência e revolta de quem investiu as poupanças de uma vida para conhecer o conforto, mas viu o "azar" bater-lhe à porta.

São anos de luta, espera, fé, indagações, temores, incertezas, lamentos, choros (...), que já resultaram em crises profundas de saúde em alguns clientes com esperanças moribundas. O litígio já leva tempo, mas nunca conheceu solução. As vítimas clamam por justiça.

No centro da "trama" está a disputa da titularidade de 140 hectares de terra, entre o promotor imobiliário (Ridge Solutions Angola) e a antiga gestão da Administração Municipal do Kilamba Kiaxi.

A gestão da Administração Municipal, à época dos factos, é acusada, pela imobiliária, de ter "revendido" várias parcelas de terreno do projecto habitacional a ocupantes "ilegais", o que condicionou a conclusão das obras.

Com esse diferendo, os lesados vêem-se impossibilitados de receber as casas que deveriam ser construídas no então espaço nobre onde nasceu, hoje, um bairro desordenado.

A área total visada para a implementação do "condomínio" era de 300 hectares, mas até aqui foram explorados apenas 160 e erguidas mil e 681 residências de tipologias T2, T3, T4 (de 1 e 2 pisos), além de 242 edifícios de quatro e seis andares, de forma gradual.

Segundo a imobiliária, o litígio remonta ao ano de 2005, altura em que a Administração do Kilamba Kiaxi teria decidido lotear e revender todo o perímetro do antigo "campo agrícola" (parcelas de 20/15), posse da Ridge Solutions Angola, a populares.

A venda dos terrenos, sustenta a imobiliária, teria ocorrido numa fase em que três milhões de metros quadrados se encontravam já delimitados e parcialmente desbravados, através de uma operação que consumiu mais de USD 20 milhões.

Essa operação contemplou, também, a expropriação de lavras e "casebres". Hoje, passados praticamente 12 anos desde o arranque efectivo da implementação do projecto, mais de mil famílias habitam no projecto, sem contrato da imobiliária.

Enquanto isso, os legítimos clientes, afectados pela paralisação forçada das obras, procuram, na justiça, fazer valer os seus direitos. O grito de revolta é geral e a reclamação vai em duas direcções: ou chaves na mão ou devolução do dinheiro.

Um relatório da imobiliária indica que, entre os lesados, estão proprietários de nove casas pagas na totalidade (valores não revelados), 34 compradas a 75 porcento, 77 lotes com infra-estruturas pagas, 49 casas com sinal pago e 169 não executadas. A conclusão da primeira fase do projecto estava prevista para finais de Dezembro de 2010.

Clientes exigem justiça

Entre esses lesados, que viram o sonho cair por terra, está a cidadã Florinda João.

Segundo a mesma, há pessoas que pagaram mais de USD 150 mil pelas moradias, mas passados 10 anos continuam à espera e sem uma data definida para as receber. "Isso está a gerar frustração e desespero", desabafa.

De acordo com Carlos Pinho, membro da "Comissão de Lesados", aquando da celebração do contrato (em 2007) com o Empreendimento Jardim do Éden, ficou estabelecido que as casas seriam entregues 14 meses depois.

"Já passam mais de 10 anos desde que os cidadãos lesados vêm procurando contacto com o imobiliário, o que tem sido difícil, porque este muda constantemente os números de telefones do escritório, dos advogados e de instalações", denuncia.

Na condição de vítimas, narra, encontram-se cidadãos que pagaram a totalidade do preço do imóvel e outros que desembolsaram parte do montante, em busca do sonho. Assim foi com o técnico petrolífero Carlos Santos, que diz ter acabado de pagar a casa com a indemnização da sua ex-empresa, a fim de livrar-se da dívida e receber o imóvel.

De igual modo, a cidadã Carla Marina Pacheco explica que assinou o contrato em 2006, pagou USD 73 mil e 445 dólares e, desde então, passou a sofrer desconto (via banco) no valor de AKZ 120 mil/mês, estando já no décimo segundo. "Já recorri e o advogado pede para aguardar, porque o processo está no Tribunal Supremo. Não percebo as leis do país, e o lamentável é que todos os meses sou descontada", desabafa Carla Pacheco, que apela celeridade do tribunal.

Por sua vez, Maria da Conceição Rosário explica ter pago a residência em 2009, mas, como as demais, lamenta o facto de, até ao momento, não ter a casa. "Continuo a ser descontada pelo banco e sem nenhum tecto erguido. Pago 200 mil kwanzas mensalmente e ainda faltam 10 anos para terminar o desconto", desabafa.

Sócio-gerente defende-se

A propósito do caso e após longos anos de litígio, o sócio-gerente do Empreendimento Jardim do Éden (Desenvolvimento e Gestão Imobiliária, Limitada), José Ferreira Ramos, falou pela primeira sobre o caso. Segundo o empresário, a não conclusão do projecto deve-se à venda de parcelas de terreno, numa operação a mando da Administração de Kilamba Kiaxi.

Detalha ter pago pelo espaço o equivalente a USD três milhões e que chegou a assinar, em 2005, um protocolo com o Governo Provincial de Luanda (GPL) para a concessão do direito de superfície da área e a aprovação do seu plano de urbanização. De acordo com José Ramos, isso aconteceu sem emendas.

O sócio-gerente afirma estar disposto a discutir o caso em tribunal e sublinha reunir documentos que atestam a titularidade da sua empresa sobre o terreno. O empresário dá a conhecer que em 2006 oficializou já uma queixa à extinta Direcção Nacional de Investigação Criminal (DINIC), actualmente Serviço de Investigação Criminal (SIC) e ao Departamento de Instrução e Acção Penal (DIAP). "Não me queixei anteriormente porque não convinha", expressa.

Histórico de casos em Angola

O caso à volta do Jardim do Éden é mais um que se associa à lista de denúncias contra empresas imobiliárias no país que não cumprem com as obrigações contratuais. Práticas do género já começam a ser frequentes em Angola, com realce para as denúncias de burla contra a imobiliária brasileira Build Angola e a angolana Jefran.

Efusivamente publicitada pelo "rei" do futebol, Edson Arantes do Nascimento "Pelé", o Build Angola foi, há 10 anos, dos mais atraentes, luxuosos e mediáticos projectos habitacionais em Angola. Mas, infelizmente, falhou e causou avultados prejuízos. Tal como o Jardim do Éden, este assunto acabou em litígio.

À testa do projecto estavam os empreendedores brasileiros António Paulo de Azevedo Sodré, Paulo Henriques de Freitas Marinho, João Gualberto Ribeiro Conrado Júnior, Ricardo Boer Nemeth, Rodrigo Antoniazi e Manuel Salinas Júnior, que rubricaram mais de 400 contratos-promessa de compra e venda.

A venda das vivendas, dos lofts (espaços sem repartições) e apartamentos para condomínios de classe média e média-alta foi feita em maquete, por via desses seis empresários, alguns deles com ficha criminal no Brasil.

Para acautelar situação semelhante, em Março de 2018, o Instituto Nacional de Defesa do Consumidor (Inadec) viu-se obrigado a intermediar a relação entre o Grupo Jefran e clientes, após a recepção de 70 reclamações de cidadãos. Estes exigiam a devolução dos seus valores, com juros de mora.

Entre 2012 e 2015, mais de mil cidadãos pagaram habitações de tipologias T3 e T4 a esta imobiliária, mas até ao ano passado não receberam as chaves. Neste processo, a maioria dos clientes celebrou contrato, na modalidade de pronto pagamento e renda resolúvel (adiantamento de 10 por cento do valor total da casa), tendo desembolsado valores que variam entre quatro e nove milhões de kwanzas.

Segundo os clientes, muitos pagaram 50 porcento do valor e outros 100 porcento, mas nem assim a empresa Jefran fez a entrega das casas nos prazos acordados. À luz do contrato, a entrega seria feita nove meses depois da entrega de 10 porcento do valor.

Na altura, para ter acesso a uma residência, os clientes pagavam na fase inicial 10 porcento do valor total, para nos nove anos seguintes pagar, por amortização, AKZ 60 a 75 mil/mês. Os preços variavam segundo a área e o valor da compra do terreno.

Enquadramento legal

Em qualquer um dos três casos, a palavra que mais soa é burla por defraudação. Mas, no quadro do direito, uma dúvida se levanta: está-se diante de burla ou incumprimento?

De acordo com o Código Penal angolano, no seu artigo 450, é burlador quem, fingindo-se de dono de algo, alhear (vender), arrendar, agravar ou empenhar, assim como o que vende um mobiliário ou imobiliário duas vezes a diferentes pessoas. Também é considerado burlador quem hipoteca algo a duas pessoas sem desobrigar do primeiro credor.

A propósito, o jurista Albano Pedro considerou estar-se diante de um cenário de incumprimento de prazo, por entender que o crime de burla tem uma característica muito específica, sendo necessário haver uma intenção contrária à manifestada inicialmente pela pessoa que a pratica.

Neste contexto, esclarece que, para o Caso do Jardim do Éden, o promotor imobiliário não pode ser considerado burlador, caso fique provado que o seu espaço legalmente obtido foi cedido a terceiros à margem da Lei.

"O promotor imobiliário terá de fazer tudo para o pessoal abandonar o espaço, movendo uma acção junto do tribunal. Em relação aos clientes, estes podem sim exigir a devolução dos valores ou aguardarem pela continuidade do projecto", argumenta.

Refere que o Jardim do Éden só não terá a obrigação de pagar aos clientes caso venha a declarar falência, pois a insolvência e a falência são as únicas formas que retiram as responsabilidades às pessoas e às empresas de pagarem as suas dívidas.

"E se os valores foram pagos em dólar ou em kwanzas a indexação é sempre necessária, para que a pessoa tenha o mesmo valor aquisitivo do momento. Mas uma indexação nesses termos costuma ser feita no custo actual dos imóveis daquele tipo e não do cambio (….)", sublinha.

Adianta que, se forem "contratos promessa" com sinal ou com pagamento na totalidade, o promotor imobiliário deverá devolver o dobro do dinheiro pago. Caso contrário, adverte, recorre-se a um processo civil de danos, que vai apurar em concreto o valor do bem perdido.

Albano Pedro entende que o responsável da administração do Kilamba Kiaxi que vendeu o terreno a terceiros tinha consciência de que o mesmo já tinha sido vendido e, como tal, "é ele que praticou burla contra os populares". "Mas, em relação ao produtor imobiliário, não há burla", remata o também professor de Direito, apelando ao diálogo para um desfecho saudável.