Luanda - Numa sociedade moderna, bem estruturada, a autonomia local é a forma mais eficiente de desenvolver as comunidades locais, combater a pobreza e erradicar as assimetrias regionais e socioculturais. Pois, a subsidiaridade e a auto-governação, a partilha de poderes e a tomada de decisão conjunta são valores fundamentais do sistema democrático representativo e participativo. Observando, neste respeito, um conjunto de princípios fundamentais, dentre as quais: o sufrágio universal; a presença e a participação política das comunidades locais; a discriminação positiva; a representatividade; a legitimidade jurídica; a igualdade perante a lei; a justiça social; e a livre circulação de pessoas e bens.

Fonte: Club-k.net


Importa notar que, a democracia plural, como sistema político, assenta na liberdade; na economia do mercado; na livre iniciativa; nas eleições livres, transparentes e justas; na separação dos poderes; na autonomia local; e na descentralização. Logo, as autarquias locais estão intrinsecamente ligadas a um conjunto de princípios básicos acima referidos. Sem os quais elas ficarão asfixiadas pelo poder central, altamente poderoso, centralizado, partidarizado e unipessoal.


Importa saber que, desde 1975, na independência nacional, Angola sujeitou-se ao sistema político mono-partidário, centralizado e de economia planificada. Implantou-se na mente das pessoas a cultura monolítica, centralizadora e sectária. Por isso, exige muito esforço para alterar este quadro psicológico da maioria parte dos Quadros Dirigentes do Partido no Poder. A transformação de consciência é um processo gradual e moroso, que pendura no tempo e no espaço. Haverá gente, tão dogmáticos, dificilmente poderão alterar a sua estrutura mental. Por isso, exigirá uma revisão profunda e substancial da Constituição para que seja possível redistribuir equitativamente os poderes e alterar a maquina pesada e centralizada do partido-estado.
Interessa-me realçar que, as várias formas da autonomia local (autarquias) obedecem às Doutrinas de cada sistema político. Por exemplo, a Ideologia Marxista teve várias formas de interpretação e de aplicação, de acordo com a realidade sociológica e histórica do país.


Neste caso específico, a Revolução Russa baseou-se no Proletariado Urbano. Ao passo que, a Revolução Chinesa assentou-se no Campesinato. Por isso, o Marxismo-leninismo da Rússia defendia a luta urbana, do proletário, como instrumento da conquista do poder político. Na base desta teoria, a irradiação do poder político e económico deve partir das cidades para integrar as populações rurais. Este «preceito urbano», de considerar os centros urbanos como «factor principal» do exercício do poder político, mantém-se inalterável até hoje. São notáveis na Rússia as assimetrias profundas entre as cidades e o campo, num estado profundo de pobreza e de atraso.


Ao passo que, o Marxismo-Maoismo da China defendia a luta rural, do camponês, para libertar o campo, sitiar as cidades e conquistá-las de assalto, com vista a implantar o socialismo científico, sob a tutela de uma elite intelectual. Este preceito rural, do campo para as cidades, mantém-se intacto até aos dias de hoje. Por isso, num curto espaço de tempo, a China tornou-se a segunda maior economia do Mundo, com níveis elevados do
avanço económico em todo o país. Libertando da penúria centenas de milhões de chineses, que se encontravam no estado profundo de atraso e do subdesenvolvimento.

 

Este fenómeno sociopolítico, de luta de classes, teve impacto enorme sobre as rivalidades ideológicas e socioculturais entre MPLA e UNITA. Pois, MPLA, na sua fundação, adoptara a Doutrina Russa, que correspondia à origem sociocultural do seu núcleo dirigente que, na sua maioria, era composto por assimilados urbanos. A UNITA, por sua vez, abraçara a Doutrina Chinesa, que correspondia igualmente à origem sociocultural do seu núcleo dirigente, que era da origem rural, e menos afetado pela assimilação colonial portuguesa.


Este contraste sociocultural e ideológico existente entre MPLA e UNITA não somente foi um dos factores principais da discórdia e da ruptura no seio do nacionalismo angolano, mas sim, estabeleceu a linha divisória entre os dois Projectos de Sociedade. Por isso, vê-se claramente a diferença entre o modelo e a modalidade da institucionalização das autarquias de cada um dos dois Partidos. Enquanto o MPLA defende o gradualismo geográfico, que dá prioridade aos centros urbanos do litoral, a UNITA defende a institucionalização global, dando maior atenção aos municípios mais desfavorecidos, no sentido de criar certos equilíbrios e mitigar as assimetrias sociais e geográficas, bem acentuadas.


Este quadro, da desvalorização do interior do país, à luz da doutrina política do partido no poder, não será tão fácil invertê-lo, enquanto prevalecer o conceito da centralização e da hegemonia político-partidária. O paradoxo reside em pretender diversificar à economia sem implantar, em todo o país, as autarquias locais, que são fundamentais para desenvolver os recursos naturais e estabelecer o intercâmbio comercial entre as cidades e o campo, onde se encontram os minerais estratégicos.

 

A titulo de exemplo, o Mega Projecto Regional (Angola, Botsuana, Namíbia, Zambia e Zimbábue) do “Okavango/Zambeze”, para que seja rentável e sustentável, requer não somente a participação efectiva das comunidades locais, mas, sobretudo a existência de infraestruturas e a presença de autarquias locais, bem institucionalizadas, com capacidade interventiva de atrair investimentos, valorizarem a cultura local, fomentar o turismo, conservar o ecossistema e promover o comércio regional trans-fronteiriço.


Interessa dizer que, o Projecto Okavango/Zambeze, na parte de Angola, engloba as Províncias do Kuando-Kubango e Moxico, que figuram na lista das regiões abandonadas, esquecidas, recônditas, mais atrasadas e mais pobres. Portanto, na lógica do Governo do MPLA, do gradualismo geográfico, assente na discriminação negativa, a Região de Okavango/Zambeze será a última a receber as autarquias locais. Que paradoxo!


Sobre esta problemática, convinha rebuscar o passado histórico para elucidar este fenómeno das autarquias locais, que tem sido matéria de debates contraditórios em torno do conceito da discriminação negativa, que dá prioridade aos municípios urbanos, com mínimas condições de vida, em detrimento daqueles que sempre foram marginalizados.


No contexto da política colonial da assimilação e do estatuto do indigenato havia uma carga excessiva da discriminação racial e sociocultural. Apesar disso, o «estatuto do indigenato» mantinha núcleos de poderes locais, com autoridades suficientes para moldar a conduta humana, salvaguardar o património cultural e gerir as comunidades locais. A estrutura comunitária, acima referida, englobava a família (como núcleo de base), a comunidade, a autoridade tradicional, a escola e a igreja. Cada uma dessas esferas exercia influências enormes na sociedade e participava ativamente na vida comunitária.


Infelizmente, após independência, em 1975, o partido-estado, instalado no país, desmantelou toda estrutura local e comunitária, que funcionava como instituições autárquicas. Procedeu-se rapidamente ao processo da partidarização sistemática da sociedade angolana, de cima para baixo, instalando o regime centralizado e monolítico. Intensificando e acelerando o processo da assimilação da sociedade e a erradicação do património cultural afro-bantu.


Por isso, a institucionalização global das autarquias locais, num contexto amplo da descentralizaçaõ, não reveste apenas de uma necessidade, mas sim de um imperativo estratégico, no sentido de devolver a autodeterminação às comunidades locais, para que elas próprias estejam livres, possam tomar iniciativas e tenham o poder deliberativo e o poder de decisão. A capacidade fiscal, de arrecadação e de geração de receitas, não constitui o factor impeditivo para a institucionalização global das autarquias locais.


Pois, mesmo nos países mais avançados e ricos, como a República Federal de Alemanha, há Estados Federais e Municípios autárquicos com maior capacidade de geração de receitas, e há outros com poucos recursos. Mas o Governo Central, como pai da família, é que deve fazer equilíbrios na distribuição equitativa do rendimento nacional. Aqueles que produzam mais receitas têm o dever de contribuírem mais valores ao Cofre Central, e em troca receberem menos valores de lá. Aqueles que geram poucas receitas dão poucos valores ao Cofre Central, e em troca receberem uma fatia maior do bolo do Governo Central. As coisas funcionam nesses moldes em toda a parte do mundo, e por isso não deve constituir-se em bode expiatório.


No fundo a questão que se coloca não é da capacidade fiscal ou da geração de receitas, mas sim, da falta da vontade política de desmantelar o sistema monolítico de partido- estado. Se olharmos ao nosso redor da África Austral e da África Central, todos os países da região têm as autarquias em pleno funcionamento. Aliás, Moçambique, membro da SADC, da CPLP e do PALOP, já está a passar para a fase da eleição dos Governadores Provinciais, com níveis muito elevados da descentralização e da desconcentração. Já não se pode falar do Cabo Verde, um país impressionante, com boa governação, que se encontra na fase muito avançada da consolidação do Estado Social, Democrático e de Direito.


Enfim, na África Negra temos o preconceito errado de pensar que há tempo suficiente para fazer as coisas e recuperar o tempo perdido, no sentido de superar o fosso abismal que se verifica entre nós e os outros povos do mundo, em termos de avanços científicos e tecnológicos. Veja que, enquanto entretemo-nos com a institucionalização das autarquias locais, os países industrializados estão na Lua, em órbita ao Marte, percebendo melhor a natureza do Buraco Negro. Então, onde afinal estará a nossa consciência humana, de discernir os perigos e prevenir-se do descalabro?

Luanda, 20 de Abril de 2019.