Luanda - Protagonista de um dos mais longevos consulados no poder em África, Eduardo dos Santos, trinta anos á frente dos destinos de Angola, enfrenta o maior dilema e desafio: o da sua própria continuidade e sucessão num contexto onde as certezas aparentemente.


Fonte: A Capital

A personalização absoluta do regime
 na figura presidencial
 

Os últimos episódios políticos que ocorreram em torno das discussões sobre o modelo de eleição presidencial, a revisão constitucional e assuntos afins, demonstraram que o presidente Eduardo dos Santos concretizou a quase absoluta, senão total concentração do poder no seio do partido e do estado. Um poder baseado numa construção sistemática dos alicerces, sucessivamente alargado e ampliado, onde os aliados de ontem já não são os de hoje.


Interesses. Já não é a ideologia que une os povos (neste caso as pessoas) e muito menos a geografia (para lembrar uma similar célebre frase de A. Neto que o tempo levou): são sólidos interesses económicos e financeiros, mesclados com uma vocação de poder. Da banca às telecomunicações, passando pelos cimentos, imobiliário, sem esquecer o sector petrolífero recentemente aberto á iniciativa privada, não há um negócio que não motive a apetência da família presidencial. Daí não viria nenhum mal ao mundo, se a sombra daquela mesma confusão entre os interesses públicos e privados a que se referiu oportunamente o presidente Eduardo dos Santos, não pairasse sobre muitos daqueles negócios.


Aliás, esta mescla dos interesses privados e públicos está a converter-se numa natureza do poder, agravando o fosso social entre os muito ricos, os pobres e alguns remediados. Numa antevisão do que actualmente se passa com o processo de privatização opaca de grandes fatias do sector público – atente-se no caso da Movicel a título de exemplo – a malograda investigadora da história contemporânea angolana, Christine Messiant, falava há alguns anos da “privatização do estado” em Angola.

 

A corrupção, que em tempos havia sido classificada como principal mal do país depois da guerra pelo próprio presidente da República, finda o conflito armado transformou-se ela própria no “pão que alimenta a vida” do sistema.


O Estado: do emergente ao estado absolutista, ao partido-estado e à privatização do estado. De resto, a emergência e consolidação das classes governantes angolanas está intrinsecamente ligada ao poder do estado, cuja base serviu para alavancarem a construção de grandes fortunas particulares e a ascensão das famílias de regime.


O homem de quem se chegou a sugerir não afastar uma vírgula do legado de Neto consolidou o seu poder. No bureau político actual são raras as figuras da velha guarda tais como Paulo Jorge e Roberto de Almeida, eles próprios também desgastados pelo tempo e pela política, estão remetidos a exercícios de escasso poder e somenos influência.


Exército. O poder, a influência e a ascensão que os círculos dirigentes castrenses haviam ganho com as várias décadas de guerra foram sabiamente geridos por JES que deu aos chefes militares, tanto aos reformados como aos activos largas possibilidades de ascensão financeira e social, afastando-os da política activa. Entre as chefias militares não abundam pois grandes descontentamentos e reivindicações, capazes de perturbar a tranquilidade na Cidade Alta.
 

Disputas de poder.


Mas como na história contemporânea angolana, retirando o caso do 27 de Maio de 1977 onde a marca Fapla ainda predominava e o exército “nacional” era um devir a concretizar, o MPLA sempre soube incorporar enquanto se manteve no poder a componente de origem militar. O perigo para JES veio pois dos interstícios do poder: noves foram as intrigas das disputas palacianas o episódio da prisão do general Miala, antigo patrão dos serviços de inteligência, revelou de um modo mais nítido que o alegado segundo homem do poder, poderia por moto próprio, impulso alheio ou por uma daquelas conjunturas históricas atípicas que catapultam um personagem ao poder, ser a sombra do poder que ameaçava deixar de o ser. Uma bateria de problemas políticos cujas repercussões ainda não deixaram de se fazer sentir.
 
A guerra como meio de consolidação do poder.


 A guerra justificou a legitimação da concessão de poderes especiais ao presidente, poderes que veio exercendo não só em matérias específicas do domínio militar como também na esfera económica e política. Ao presidente foram “concedidas” a primeira e a última palavra porque as do meio ou não se fazem ouvir ou medram á boca pequena, ou quando raro, simplesmente não são escutadas.


Mas – é preciso sublinhá-lo – a guerra conferiu aos círculos castrenses, como não podia deixar de ser, um poder que nem JES, nem qualquer outro líder no futuro poderá ignorar. Por força dela o exército tem mais presença e organização que a administração em sentido restrito, tanto em extensão e presença no território nacional como em meios. Por outro lado, a grande concentração populacional em torno das cidades, sobretudo nos dois ou três maiores aglomerados urbanos, fez crescer o peso das polícias.


A vitória militar das forças governamentais sobre a oposição armada liderada por Jonas Savimbi e a consequente obtenção da paz, também consolidou a posição de Eduardo dos Santos.


Estruturas paralelas de poder.


Depois dos resultados do pleito eleitoral de 1992, onde o MPLA ultrapassou largamente em matéria de votos o escore do seu líder, nas conturbadas eleições onde as presidenciais foram inconclusivas, JES e o inner circle foram constrangidos a pensar sobre a utilidade da cobertura deste défice político. A emergência do movimento espontâneo veio servir este desiderato, concomitantemente à larga esfera de influência da Fesa, assim como outros instrumentos de somenos alcance político e social, como o clube de futebol Santos.


Isto a par de outras alterações que foram tomando forma ao longo da história no seio do MPLA, enquanto partido governante, ou se quisermos, partido-estado. Se por um lado este último veio a ganhar predominância, o partido tout court ou os membros ou estruturas sem peso específico no estado ou na economia, deixam de o ter. O comité central já não é o que era, concedia há tempos uma antiga figura do partido dos camaradas, em amena cavaqueira. E também o bureau político que nos tempos idos reunia os 12 ou 15 magníficos, como ironizavam alguns cronistas da época.


Na prática temos o partido presidencial, uma figura mais ou menos virtual que caracteriza um conjunto de estruturas, organizações, instituições, movimentos e personalidades, transversais ao regime e á sociedade (famílias).


O culto do poder, a personalização absoluta do regime na figura presidencial, tanto no seio do MPLA como no estado, transformou-se numa marca do regime político. O exercício, quiçá burlesco, da reverência paternal permanente, que atribui comprovada ou aleatoriamente, a origem de todos os sucessos do partido governante e do estado ao Chefe, ganhou uma dimensão olímpica. Aliás, ao líder nunca se atribuem reveses, só sucessos.


Em matéria de estilo, onde a discrição ganha, entre Aquilino e Maquiavel, alguém escolha. Habituado a governar com o inner circle, no exercício presidencial as comissões diversas vieram a ganhar foros de quase permanência ao longo dos tempos, com o esvaziamento não raras vezes dos poderes reais nos membros do executivo.
 

Futuro imperfeito.


Mas os tempos já não são os de outrora. Aparentemente incontestado no seio do MPLA, JES já não pode dizer o mesmo á escala política e social.


Ao sugerir o modelo de eleição presidencial atípico que, diríamos nós sem titubear consagra a eleição indirecta do presidente e confunde num único processo eleitoral a eleição de órgãos distintos com mandatos distintos, o actual inquilino da Cidade Alta e o MPLA viriam a desencadear uma reacção política e cívica em cadeia, que a sua entourage não previra.
As oposições e a sociedade civil não querem hipotecar a democracia pela alegada estabilidade do país, passando um cheque em branco ao poder presidencial através de um modelo de eleição presidencial obscuro.


O alastramento das demolições de casas e expulsão forçada de cidadãos de terrenos em sua posse, principalmente nas províncias de Luanda e Benguela, alimentaram o protesto de muitos cidadãos e deram lugar aquela que foi talvez a primeira manifestação espontânea da terceira república contra estes abusos de direitos humanos, na capital. Abusos, que infelizmente aumentam á medida que se afasta da capital para o interior e do litoral para a Angola profunda. E que abrangem as obstruções à liberdade de imprensa, manifestação e expressão.
Trinta anos depois do poder, sete anos após o estabelecimento da paz, o défice democrático em Angola é real. Um défice patente na ressaca autoritária da primeira república e na resistência ao escrutínio da cadeira presidencial através de um sufrágio universal, livre e directo.


De qualquer maneira seria ilusório pretender-se realizar a transição política ou se quisermos o conjunto da normalização institucional e o próprio processo de sucessão presidencial, como alguém que pretendesse passar incólume entre as gotas da chuva.