Lisboa – Entre os sobreviventes dos “massacres do 27 de Maio de 1977”, é conhecida como “Mirita”, que pertenceu a um destacamento das extintas FAPLA e que depois foi transferida para a primeira brigada feminina da  Polícia Nacional. Porém, nas lides académicas e politicas de hoje, ela  é, nada menos que a psicóloga Palmira Africano de Carvalho, fundadora do Bloco Democrático, partido sucessor da extinta FpD, de que também fez parte.

Fonte: Club-k.net

"Fiquei presa de 29 de Maio a 29 de Agosto de 1977"

Passado 42 anos, a professora Palmira de Carvalho “Mirita”, usou as redes sociais para quebrar o silencio sobre este dossier e revelar como foi presa e quase perdeu a vida por se ter recusado, na qualidade de agente de transito acatar a ordem de travar a viatura de Nito Alves, caso este passasse pelo controlos que dão desde o  actual Benfica até ao município de  Viana, em Luanda.

 

Com a devida vénia, o Club-K retoma o depoimento desta professora e vitima de um dos maiores massacres da historia do MPLA, o partido no poder em Angola.

 

DEPOIMENTO: 


“Estamos em Maio, há 42 anos, por este dias foi-me incumbida a missão de mandar revistar todos os carros que saíssem de Luanda pelos controlos de Cachaço, Viana, Benfica e Sapu e prender Nito Alves caso estivesse numa das viaturas.

 

Como noutras missões que não cumpri disse simplesmente que sim. Quando saí do unidade fui para casa e contei a minha mãe que me perguntou se eu achava correcto? Respondi que não porque eu era polícia de trânsito e no meu entendimento, esse não era o objecto nem objectivo da polícia de trânsito. Então a minha mãe disse para agir de acordo com a minha consciência... 

 

Não cumpri a ordem, nada me foi cobrado e supostamente tinha ficado por isso mesmo. Passados todos estes anos, chego a conclusão de que embora houvesse necessidade de prender o Mito Alves, deveria ser feito por uma pessoa de confiança do chefe, era também um teste a minha fidelidade, da minha lealdade ao chefe, ao partido em suma ao regime.

 

Por outro lado, creio que essa incumbência seria o certificado da minha adesão aos "nitistas". De que já se cogitava e eu não sabia e muito menos tinha aderido ou tido qualquer contacto com alguém do grupo apesar de conhecer muitos deles desde o CIR Kalunga.

 

Tanto assim e, que depois do fracasso da manifestação palaciana, fui acusada pela minha ex colega Apolónia Domingos Vumbi de fraccionista por lhe ter pedido para liberar um carro do Nito Alves que tínhamos apanhado numa operação pouco antes de ser furtado de uma festa onde ele estava.


Somada a outras graves acusações de que fui vítima, fui detida e feita prisioneira por ser nitista, ter aderido e participado no golpe de estado.

 

Durante o interrogatório, neguei todas acusações, na acareação também neguei sempre tudo. Fiquei presa de 29 de Maio a 29 de Agosto de 1977 na Unidade Operativa ex Sétima Esquadra.

 

O que vi e passei durante aqueles três meses, fica para depois.... Contudo, o que mais me marcou foi a veemência com que a Apolónia dizia que eu a queria obrigar a entregar o carro do Nito a um FAPLA que tinha ido buscá-lo a nossa unidade e eu já não me lembrava... .

 

Ao longo de muitos anos do nada, dava comigo a perguntar-me quem era esse camarada? Em 1993, um dia de repente fez luz e eu digo alto "ah! Foi o Tiago!" Tinha tido uma epifania. De facto o Tiago, um camarada com quem fiz recruta e especialidade de DCA- Defesa de Combate Antiaéreo - no CIR Kalunga, tinha ido lá no dia a seguir a operação buscar o carro.


Encontrei-o no piquete quando regressei do almoço, fui ter com ele, saudei-o e perguntei-lhe o que fazia na unidade? Disse-me que tinha ido buscar um carro do Nito Alves que fora roubado numa festa e nos havíamos apanhado e a "tua colega não quer entregar".


Querendo ajudar, eu disse-lhe que esperasse um pouco que eu falar com e minha colega (Apolónia) que estava de Oficial Dia. Pus-lhe a questão e ela com muita arrogância disse que não dava. Inocentemente, com um sorriso nos lábios que me é característico, digo-lhe não queres dar o carro porquê? Não me digas que também estás contra o Nito Alves?

 

E na minha boa fé, para piorar a minha situação ainda disse dá lá o carro. E ela com mais veemência e empatia disse não. Eu não sabia nem imaginava que a minha colega era pessoa de confiança do chefe. - tinha conseguido com ela o que não conseguiu comigo.


Certamente que o chefe não se tinha esquecido que eu não lhe reportava sobre as ordens e missões que me dava. Passou a desconfiar de mim e pôs a Apolónia a me controlar... . E viu resultado, obteve o que queria... . Porque eu ajudei a Apolónia e não merecia isso dela, para além de que não fiz nada! Nunca me revi naquele grupo.


Rindo-me fui ter com o Tiago, disse-lhe que a colega não queria dar a viatura e que ela era a Oficial Dia, tinha a última palavra. Despeço-me do camarada que foi-se embora e eu fui para a minha sala esquecendo total e completamente do assunto. Tanto foi assim, que nem comentei com a Fina, colega e amiga com quem fui das FAPLA para a polícia e com quem sempre andava.

 

O problema que constituiu uma das acusações que me iam custando a vida, veio a ribalta talvez a 3 de Junho. felizmente, sobrevivi e posso contar o que fui vítima e dizer que embora não estivesse a favor da ditadura que se tinha instalado no país que acabava de sair do colonialismo, supostamente para trazer liberdade, paz e felicidade, trouxe tudo menos o que era esperado.

 

Apesar de nada ter a ver rigorosamente com a corrente ou ala "nitista", sofro até hoje às consequências políticas desse fatídico acontecimento que tantas vidas ceifou, por bem dizer como uma peste, dizimou milhares de filhos e filhas do povo angolano.

 

E até hoje, não sei o quê o fraccionismo? Porquê que prenderam e mataram tanta gente?
Onde é que os mortos foram enterrados? E quem matou quem?
Só com respostas a estás questões o MPLA e o governo irão de facto e de direito homenagear ele condecorar as vítimas do processo "27 de Maio" e de outros conflitos ocorridos em Angola desde a independência.

Justiça reparativa faz-se fundamentalmente com verdade.