Luanda - Em 2003, mal tinha saído da Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto, onde tinha terminado com êxito a licenciatura em Direito, depois de cinco longos anos de aprendizado, participei num “estudo de caso, “ sobre a terra em Angola. Estava em curso a discussão pública da Lei de Terras e muitas organizações da sociedade civil estavam preocupadas com o modo de ocupação de terras que ocorria naquele período pós-guerra. A nossa missão era coordenada por um representante estrangeiro da Rede Terra, um cidadão britânico que supervisionava os trabalhos gerais. Todavia, o meu grupo era formado por três elementos. O Engenheiro Agrónomo Fernando Pacheco da ADRA na qualidade de chefe do grupo e integrava ainda o sociólogo Nsingui André. A primeira província que visitámos foi o Huambo. De Luanda à antiga Nova Lisboa, fomos de avião, contudo, da cidade capital do Huambo ao Bailundo e a Caàla, em momentos distintos, fizemos de carro. No primeiro percurso de carro, Cidade do Huambo-Bailundo, passando por Vila Nova, montados num poderoso “ Chefe-máquina”, percorremos vários quilómetros de estradas e picadas. Lembro-me dos vestígios do conflito armado que persistiam na paisagem ao longo do caminho. Para além dos tanques de guerra e veículos militares queimados, que compunham a paisagem, o que mais me impressionou, foi a imagem que guardo indelével dos sapadores e separadores das zonas em desminagem ao longo do percurso Huambo - Bailundo.

Fonte: Club-k.net

Nas aldeias onde pernoitámos, o Eng. Fernando Pacheco, diagnosticou os aspectos agrícolas dos lugares visitados, o Nsingui André debruçou-se sobre a estrutura social, e eu, levantei os aspectos dos direitos costumeiros daquelas localidades. Lembro-me de um episódio hilariante, quando visitámos o Lépi no Huambo: ofertámos ao Soba, latas de feijão do nosso kit de ração-fria. Tal iguaria, provocou desarranjos intestinais aos aldeões que fizeram gosto a comida enlatada. Este incidente atrasou o nosso trabalho. Entretanto, as crianças, admiradas com a nossa presença, sobretudo pelos carros não habituais naquelas paragens, brindaram-nos com cenas engraçadas ( olhavam para a chaparia dos carros e ficavam atónitos com as suas imagens nelas reflectidas). Estas cenas pitorescas dos petizes irrequietos fez-nos ganhar o dia. O estudo de caso estendeu-se nas aldeias do Negage ( Uíge), em Dala ( Lunda Sul) ou em Lândana ( Cabinda). O nosso estudo teve âmbito nacional e, auscultámos in loco, as populações. Ficamos a saber o que é um acocoto, que o Soba e o professor são as elites nas aldeias de Angola dita, em tempos, de “profunda”. E mais: ficámos a saber que, o direito fundiário no contexto do direito consuetudinário, não é uniforme no país: há zonas em que as terras são comunitárias e noutras regiões do país, as terras são possessões individuais.


Mas aqui trazidos, levanta-se a questão de saber, qual a ligação entre esta minha história pessoal, o PIIM e o desvio de verbas do Fundo Soberano?


Há dias, o Presidente da República fez o lançamento do PIIM (Plano Integrado de Intervenção Municipal) - um ambicioso plano com a duração aproximada de um ano, visando dar vida aos municípios. Disse-nos ainda, o Chefe de Estado, na sua veste de Titular do Poder Executivo, que iria destinar ao PIIM USD 2 000 000 000 ( dois mil milhões de dólares), equivalente em kwanzas, do Fundo Soberano, recentemente recuperados da luta contra a corrupção. Dois aspectos desta nova abordagem do Executivo merecem a nossa análise: o modo de elaboração do PIIM, bem como a sua bondade, e, o segundo, diz respeito à sobrevivência do Fundo Soberano face ao desfalque sofrido, com o “desvio “ da verba para o PIIM.


Quando ao PIIM, vale dizer que é uma iniciativa de aplaudir pois, como sabemos, os municípios de Angola precisam de intervenção urgente. E este plano visa fundamentalmente, resolver os problemas das populações destes municípios. Melhorar as estradas, construir escolas, hospitais e outras realizações constantes no PIIM são tarefas que o Executivo deve realizar no âmbito das suas atribuições. Sendo um plano integrado, o PIIM, pode permitir a gestão integradas dos municípios. Neste âmbito pode ocorrer uma correcta transposição cidade-campo, que pode possibilitar , por um lado, o escoamento dos produtos locais, bem como, reverter o êxodo rural, desafogando as cidades e diminuindo a pressão que hoje se regista e, por outro lado, o PIIM apresenta algumas fragilidades, que saltam à vista. Por exemplo,
no acto do lançamento pomposo do referido plano , o Ministro da Administração do Território e Reforma do Estado. Adão de Almeida, nas breves palavras que teceu no acto, informou-nos que o PIIM foi concebido com o concurso dos Governadores Provinciais e dos Administradores Municipais. Foi um programa elaborado pelo Executivo, sem a participação dos destinatários. Nem mesmo com o processo de desconcentração administrativa em curso, assistimos a uma administração inclusiva. Esta visão “ego-administrativa “ do Executivo, faz lembrar uma história que ouvimos numas das aldeias, em 2003. Contou-nos um Soba que, certo dia, o governo provincial, construiu uma escola próxima de uma aldeia e não informaram aquela autoridade tradicional, nem a população local do propósito daquele estabelecimento de ensino. Depois de concluída a obra, abriram-se as inscrições para matrículas. Ninguém na aldeia foi lá matricular -se. Atónitos, os responsáveis da educação do município, convocaram o Soba e alguns populares, para saberem do motivo do insólito acontecimento. De forma mordaz, o Soba disse: “fizeram a escola sem falarem connosco: pensámos que não fosse para nós”.


Voltando à questão do PIIM, tem muita semelhança com essa inusitada história da escola da aldeia. Na elaboração deste plano, deveria o Executivo ouvir as populações. Desse modo, o PIIM seria inclusivo e reflectia, em certa medida, os anseios da população. Contudo, outra questão relevante na abordagem do PIIM é a sua gestão e controlo ou fiscalização. Estando verbas a serem desconcertadas em vários pontos de decisão, visando a execução de um plano de curto prazo, não só a pressão pode perigar a sua realização, como deve o Estado, reforçar os mecanismos de controlo da execução destas verbas, que será colocada a disposição nos 164 municípios. Há necessidade de ter em atenção os padrões exigidos para a boa governação. Temos que dispor de gestores públicos que tenham formação adequada e que esta inclui dentre outras as seguintes qualidades técnicas:,que tenham flexibilidade cognitiva; que saibam negociar; que saibam orientar para servir; que tenham capacidade de julgamento e de tomada de decisões; que disponham de inteligência emocional, que saibam coordenar os trabalhos; que saibam gerir pessoas ; criativos; com pensamento crítico ; e que saibam resolver problemas complexos. No Fundo, o PIIM carece de uma componente humana na sua intervenção. Há uma visão orgânica no PIIM, descurando a componente humana na sua integração, bem como nota-se uma despreocupação na manutenção dos equipamentos sociais que vão surgir em tão pouco tempo em todo país. Por conseguinte, durante a implementação do PIIM os mecanismos de fiscalização tem que ser actuantes de forma a evitar a proliferação de focos de corrupção. Nesta capitulo, sem desprimor para o papel da Inspeção Geral do Estado, vale a pena destacar a relevância do Tribunal de Contas ( adiante designado de TC) como o fiscalizador das despesas públicas. O TC deve estar dimensionado para atender a demanda. Todas essas dotações orçamentais hoje espalhadas por Angola inteira vão exigir um trabalho hercúleo desta instituição.


Quanto ao Fundo Soberano, vale a pena questionar o seguinte : se o Executivo desloca para o PIIM grande parte do dinheiro do Fundo, terá este, ainda viabilidade ?
Quando foi criado, o Fundo Soberano beneficiou-se de 5 000 000 000 ( cinco mil milhões de dólares americanos) e ficou estabelecido que, naquele período de alta, seria alimentado, para além dos rendimentos da aplicação desta quantia, dos royalties de um regular contigente da produção petrolífera! Não sabemos se ainda está em curso esse provimento regular com remessas da indústria petrolífera. Se assim fôr, ainda dá uma certa sustentabilidade. O Fundo Soberano, foi criado para acudir às necessidades das futuras gerações. Desviar verbas desta entidade para acudir necessidades actuais, ainda que vitais, é contra-producente e constitui um conflito insanável do interesse público. Há uma clara confusão que urge clarificar. Os desvios de verbas do interesse público, mesmo que sejam para acudir outros, devem ser feitos com autorização da população ou mediante autorização dos seus representantes no Parlamento. E no caso dos dois mil milhões de dólares deslocados do Fundo Soberano para o PIIM, a Assembleia Nacional não foi tida nem achada. Dito de outro modo, o dinheiro público foi deslocado de uma finalidade pública para outra, sem a autorização da Assembleia Nacional.


Em boa verdade, os Fundos Soberanos, são instrumentos financeiros, adoptados por alguns países, que utilizam parte das suas reservas internacionais para guardar recursos para gerações vindouras. Os fundos soberanos, são entidades públicas, que administram recursos provenientes, via de regra, dos recursos naturais, designadamente, de minerais e do petróleo. Todavia, em alguns países, sobretudo asiáticos, parte dos valores dos fundos soberanos, provêm do superavit da conta-corrente. Em todo o caso, os Fundos Soberanos, administram valores, que servirão para as gerações futuras desfrutarem dos benefícios, que os recursos naturais não renováveis proporcionam. Uma vez esgotados, estes países poderão utilizar estas reservas ( dos Fundos Soberanos) para benefício dessas gerações. Noruega, China, Dubai, Qatar e Singapura, têm os maiores e mais importantes Fundos Soberanos do mundo e, funcionam com a recomendação do G7, “ transparência “ e “ previsibilidade”. Não obstante haver ainda verbas e património assacadas ao Fundo Soberano angolano, todavia, o “desfalque “ de 2 mil milhões de dólares, para acudir necessidades actuais, não é um bom presságio e esperamos que “a moda não pegue”. Mesmo que os estatutos do Fundo Soberano permitam que o Titular do Poder Executivo possa “desviar “as verbas para outros fins, esse mesmo estatuto deve ser alterado, pois carrega uma contradição inaceitável no equilíbrio dos órgãos de soberania. Os fins das verbas de um Fundo Soberano, na essência do Estado Democrático de Direito, devem ser alterados somente pelo povo ou pelos seus representantes, tal como acontece com as verbas inscritas no OGE para acudir às gerações actuais.


Em todo o caso, não parece ser avisada a alteração, ainda que parcial, do interesse público, sem a aquiescência dos cidadãos, quanto mais não seja, mediante os seus representantes na Assembleia Nacional. Pensamos que, a questão da alteração das verbas do Fundo Soberano para outros fins, deveria ser discutida e aprovada pelo parlamento angolano. Tratando-se de despesas públicas, não pode o Executivo dispor a seu belo prazer.


De regresso a Luanda, tínhamos que fazer o Relatório final, e só tínhamos rabiscos e apontamentos. O expatriado da comitiva, já tinha o relatório final, nós que passamos horas em tertúlias nos vários serões nas aldeias, não tínhamos o trabalho feito. Ficou a lição, de que não devemos acumular trabalho. O nosso mindset não estava em diapasão com a organização britânica! Nunca mais acumulei trabalho. Todavia, o mais importante desta incursão na nossa Angola profunda foi que, para resolver os problemas das nossas populações, devemos consultá-la e estudar, metodicamente, o modo de vida das nossas gentes, o que não parece ter acontecido, nem com o PIIM, nem com os desvios das verbas do Fundo Soberano para atender este plano ego-administrativo.


Mas uma vez feito o PIIM, resta-nos ajudar a sua concretização, tenho em conta as observações apontadas.


Por agora, mais não digo ...

Lazarino Poulson, especialista em Direito Administrativo