Memórias de um sobrevivente dos massacres de 27 de Maio de 1977
(I parte das 112 páginas)

Capítulo I
"Nunca é tarde para que se digam as verdades"

Golpe ou contragolpe verdade é que, a repressão que se seguiu, teve e continua ter grandes consequências na sociedade angolana, acima de tudo pelo elevadíssimo número de mortos e desaparecidos.

Mas também no seio do próprio MPLA, que perdeu vários quadros. Passados 31 anos que são, ainda continuam em minha mente bem viva, as imagens daqueles terríveis momentos passados, nas masmorras da DISA. Dias e noites de angústia, gemidos, pânico, nossos corpos esmurrados e cobertos de sangue, pela inclemente fúria de alguns carrascos. Golpe ou contragolpe, a verdade é que muitos dos nossos irmãos, foram longe de mais, ao tratarem-nos como o fizeram. Tanto sadismo e desumaníssimo.

Esquecer jamais, mas não adianta agora vivermos preocupados em demasia com o passado. Pois, precisamos de consolidarmos a paz e a reconciliação nacional, mas ela não se faz ilibando, camuflando e moralizando criminosos, desacreditando desta forma, a nossa já débil e duvidosa justiça. Fomentando sentimentos de revolta e ódio nas pessoas que de uma ou de outra forma foram, afectadas pelos crimes cometidos por indivíduos que ainda até hoje, cheios de vaidade e arrogância são deputados.

A paz e a reconciliação nacional, são acima de tudo a convergência do sentimento pessoal, para o colectivo. É a soma das confissões e reconhecimento dos crimes, a soma das reacções às confissões dos crimes. É também a vontade, a capacidade de sermos tolerantes, de sabermos perdoar e tirarmos ilações positivas com os erros cometidos. Quantos angolanos são, que viram seus familiares, amigos e conhecidos serem presos, mortos e desaparecidos?

Para mim tudo começou na manhã do dia 30 de Maio de 1977, por volta dás 9h55 em Luanda quando caminhava pela Avenida Basil em direcção ao famoso e populoso bairro Nelito Soares ), fui abordado por um militar de nome Damião que até o conhecia bem dos tempos de estudante. O mesmo pediu-me que o acompanhasse até a cadeia de S.paulo, alegando que meu nome constava de uma lista de suspeitos que tinha que ser submetidos a interrogatórios. Lá fomos caminhando em direcção a cadeia e entre várias perguntas, o mesmo queria saber onde me encontrava no dia 27 de Maio e onde estavam, os meus amigos, Betinho, Mbala, Adelino Xavier e Paulito?

- Respondi dizendo-lhe que dia 27 não saí de casa e que não sabia do paradeiro dos amigos. Dado o número de perguntas, cheguei á pensar que finalmente tinha começado o tal dito interrogatório. Quando chegamos á cadeia de S.Paulo, logo no portão, fui recebido com coronhadas, pontapés e socos e depois levado á uma sala onde estavâo os oficiais operativos de contra-inteligência, Tino Peliganga, Minga, Osvaldo Inácio, Pereira e Jeny que tinha sido meses antes minha namorada.

Depois de me tirarem os calcados, relógio, fio douro e a roupa, lá começou uma outra secção de coronhadas e pontapés.Neste dia o movimento de entradas e saídas de carros com presos era enorme e para meu grande espanto, deparo-me com muita malta conhecida estando alguns deles totalmente rebentados. Estou a lembrar-me, do jovem JUKA (conhecido Gorila) que morava no bairro mesmo junto á cadeia nas ( B ), este estava com a cabeça e os olhos totalmente inflamados, o jovem Palhaço, que morava no Sambila junto ao ( Betâo Zaire ), este tinha um dos olhos queimado com biátas de cigarros e um braço creio eu, partido, o Jovem Eliseu Bopndeca (conhecido gato vitória) nasceu e cresceu no Sambila e antes de ser preso morava, por detrás do cine-Império (actual atlântico ) este já nem conseguia pôr-se de pé.

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O Fortuna, jovem de Catete, ex-preso em S. Nicolau no tempo colonial, este tinha o corpo cravado de cortes de chicotadas. A jovem Maria Bartolomeu activista da então comissão do bairro sambizanga, esta nossa irmã o sangue corria-lhe pelas pernas abaixo e dizia-se que lhe tinham metido uma pistola, nos órgãos genitais. O jovem Sebas, este rebentaram-lhe os dentes com choques eléctricos, na boca.

Muita dessas pessoas que foquei só as vi uma única vez e jamais soube deles e de seus rastos. Depois da segunda secção de um banho de coronhadas, fui levado para a cela ( G ) onde fiquei 17 dias nesta cela a maior parte dos presos que encontrei eram da DISA ou do CIM todos eles totalmente rebentados e apenas o sangue cobria nossos corpos numa cela totalmente superlotada.

Lembro-me de vários amigos e conhecidos que seus nomes guardarei sempre em minha memória como forma de os prestar, a homenagem possível. Eram o JUKA NGANDO, ZECA MAKALÉ, MENO, PERRÉ, PAIKE, COLOMBO, CHANA, ADI NARCISO, PETY CASTRO, MARIANO, CHADÙ, ELIDIO, SIMIÂO, ISAÌAS, KIKUKO, CONDINHO PAKAS, ESTEVÂO PAKAS, NELA FONTES, SANTOS, LALEKA, VALES, ESCORPIÂO, VELOSO, JACINTO LIMA, ZÉ PEQUENO, MINGO, JULIÂO, MONA ZANGA, BAVON, NELITO e tantos outros.

Depois dos 17 dias de cela ( G ) fui enviado para a cela ( F ), onde fiquei 15 meses até ser enviado para o campo de concentração do ( TARI ) situado na Kibala onde acabei por ficar até Novembro de 1979. Na cela ( F ) desta cela estou a lembrar-me de AMBRÒSIO DE LEMOS (actualmente c. polícia nacional ) ARAGÂO ( ministro da justiça ) Dr. AREIAS, BARBAS, NENE, L.SOTTO MAIOR, CARLOS MACEDO, ORLANDO SIMÂO, REGINALDO SILVA, MATEUS F. L.PERINHAS, GITO, CHICO ANTAS, HORÀCIO, MIGUEL, LITO BREGANHA, LUBATO, PIMPÂO, FERNANDO SOUSA, ENG.PACHECO, RUI, KIMBEMBA, KIM DA VISÂO,ABEGÂO DE CAMPOS, CONCEICÂO, F.ASSIS DA FONSECA, ALGUNS CIDADÂOS ZAIRENSES HAROLD ( cidadâo sul africano ) TITO ,F.RASGADO, LEONEL, VIERA,GITO, IANES FEREIRA,MANUEL SANTOS ,VASCO ,VIGÁRIO.

Como disse,  muitos dos nossos irmãos, foram longe de mais, na forma tão desumana como nos trataram.

Na II parte parte falarei dos métodos de tortura instrumentos improvisados para o efeito, dos carrascos mais temidos, da responsabilidade de alguns chefes de contra-inteligência cubana, na morte vários angolanos (como o MONTANÉ e outros), do campo de concentração do Tari, dos Ludikissassunda, Onambwé, Carlos Jorje e de tantos outros assassinos, para quem não sabia fique a saber, porque nunca é tarde para que se digam verdades.

* Fernando Vumby

Fonte: Club-k