Luanda - O Vanguarda volta a partilhar com os leitores a conversa que teve com o cofundador da UNITA Miguel N´zau Puna, além da que foi reproduzida na edição em papel. Nesta conversa, o político mostra desconfiança em relação à competência das clínicas nacionais e prefere as estrangeiras, particularmente as sul-africanas. Mas este histórico da política em Angola, hoje deputado do MPLA, revela igualmente as superstições ocorridas durante a guerra civil onde lutou com arma na mão.

Fonte: Vanguarda

Disse que tem feito exercícios físicos, mas agora já vai poder usar o ginásio da Assembleia Nacional.

Não vou, não tenho tempo. Isso é para vocês os mais novos. Eu tenho de procurar o que comer.

 

Facilitaram-lhe a vida...

Facilitaram para os outros. Eu quero lá saber do ginásio? Sempre fiz exercícios desde que saí da UNITA. Então não sabe que parti o braço aqui mesmo na minha zona durante a ginástica? Cheguei ao Hospital Militar e disseram-me que seria preciso cortar o braço. Não aceitei, fui à África do Sul e operaram-me. Fiz fisioterapia até levantar o braço. E cá estou.

 

Nunca aceita ser tratado em Angola...

O problema é que em Angola a pessoa morre por pequena coisa. Por exemplo, a última vez fui operado às 12 horas, às 18 horas o médico já lá estava ao meu lado para ver como estava, à meia-noite idem, tal como às 6 horas da manhã. Agora, aqui é só garimpo, o médico opera-te e vai-se embora no outro hospital. Lá o médico acompanha-te e pergunta permanentemente como passou. São os cuidados.

 

E os medicamentos?

Trago-os. Aqui também já encontro. Mas há outros medicamentos que dizem que é igual, só que essas coisas são perigosas.

 

Disse que não irá frequentar o ginásio da Assembleia Nacional, porque vai procurar o que comer. Os políticos são os que têm dinheiro e os que enriquecem. É o seu caso?

Não. Sobretudo nós que viemos na UNITA não sei se há um rico. Pode haver casos dos que foram mais espertos, chegaram e receberam apoios. Agora, nós quando chegamos para pedir empréstimo bancário dizem-nos que pela idade já não dá, vou fazer o quê? Noutro dia fui pedir crédito, disseram-me que só davam até 60 anos de idade e eu já tenho 87 anos. É só aceitar. Vivemos do salário.

 

Falava-se muitos dos diamantes da UNITA...

Os diamantes vinham da frente de combate, eu é que os recebia e guardava-os. Quando Savimbi viajasse, pedia e levava-os e nem sei como é que vendiam.

 

Não se aproveitou deles?

Nem uma pedra. Porque é fidelidade ao partido. Nem sequer tinha intenção de retirar alguma pedra. Na viagem que fiz a Cabinda, Savimbi deu-me 20 mil dólares, fiquei lá uma semana, utilizei até oito mil dólares. Era para ficar mais tempo. Mas como eles anunciaram que N´zau Puna estava em Cabinda, tive que abandonar a província. O resto do dinheiro tive que o devolver.

 

Acredita que se a UNITA estivesse no poder faria melhor que o MPLA?

Epa, na UNITA havia disciplina, você tem problema quando não tem êxito depois de levar um batalhão para resolver uma situação.

 

A UNITA já chegou a controlar quase 80% do território nacional.

Sim. Eles (MPLA) controlaram a cidade, mas o campo era nosso. Já em 1986, as coisas mudaram porque a UNITA já tinha a arma Stinger. A UNITA foi a primeira organização a conseguir essa arma dos EUA. O próprio Mobuto queria mas nunca lhe deram. O rei do Marrocos também não conseguiu.

 

Qual foi o segredo para conseguir essa arma?

Primeiro é que o nosso lobby era muito forte. Segundo, o Presidente americano disse que ouvia muito a falar de Savimbi e, por isso, queria conhecê-lo. Então em 1986, ele convida-nos. Na altura o vice-presidente era o George Bush “pai”, que nos recebeu na Casa Branca. Jonas Savimbi, presidente, Nzau Puna, secretário-geral, Tony da Costa Fernandes, secretário para a Informação, e Jeremias Chitunda, que era representante da UNITA nos EUA. Fomos recebidos na Casa Oval, onde são apenas recebidos Chefes de Estado. Na altura o mundo não falou de outra coisa. E o EUA só veio reconhecer o governo angolano muitos anos depois da derrocada da UNITA.

 

Se não fosse para o MPLA, onde iria?

Não iria a nenhum partido. Continuaría a minha luta e escreveria as minhas memórias. Porque não acabei de escrever tudo. Vai ver que muita coisa que lhe estou a dizer não está no livro.

 

Vem aí mais uma obra de memórias?

Sim.

 

Quando?

Epa... não sei. Porque nem contava que a actual obra estivesse esgotado em tão pouco tempo. Em Portugal também já não tem. O que tem aqui é para Cabinda.

Guerra e feitiço

 

Há algumas coisas que ouvimos de muitos ex-militares. Há feitiço na guerra?

Qual é o africano que não usou feitiço? Por exemplo, havia uma vacinação para a bala não entrar no corpo. Eu não aceitava, até que um oficial veio ter comigo a dizer que “mais velho, como não temos armas, é melhor aceitar a vacinação, porque pode haver um ataque e você ser atingido”. Tive que aceitar. Cortaram-me a costas e pintaram-me nas costas com pô de bateria. Aquilo arde muito. Depois disso ficavas uma semana sem tomar banho.

 

Depois disso já não era atingido pelos tiros?

Dizem que não, mas eu nunca acreditei naquilo.

 

Mas o senhor não foi atingido.

Não fui atingido, mas havia quem tivesse sido atingido e morria, mesmo depois de passar pela vacinação. Nos primeiros anos, ninguém podia ir ao combate sem passar entre as pernas de um suposto kimbanda. Ninguém podia andar sem usar aquele chapéu do animal Nsimba, para afungetar as balas. Acabámos com isso. Eu disse que o necessário era a táctica, ver onde saem as balas, e a estratégia, como se proteger de várias situações, e a política.

 

Então é um mito?

É uma crença que se criou. Havia até comandantes que quando começasse o combate, tiravam a roupa toda. Eu vi lá comandantes nossos, com catana na mão e completamente nus. Só voltavam a pôr a roupa depois de terminada a batalha. É um mito, porque você quando não tem instrução, aceita tudo. Mas há uma coisa que vi no leste na qual acreditei, que se chama Anti-cobra. Você é mordido pela cobra, basta mastiga-la, pô-la na ferida, depois de três ou quatro dias a pele começa a sair, parece cobra, mas o pé nem inflama. Isto eu vi, aconteceu com os meus guarda-costas, está aí um deles, o general Pulicirucucú, andou a arrastar-se depois de mordido por uma cobra, eu disse que “esse vai morrer daqui a pouco”, mas ele disse não. Aconteceu também com o general Samuel Chiwale, o deputado, quando foi mordido por uma cobra, mastigou o tal pau e meteu na ferida e ficou bem. Quando saímos da Zâmbia, também fui procurar o tal kimbanda para vacinar-me e depois deu-me o tal pau, que andou comigo no bolso durante muito tempo na cidade. Isto é para que em caso de ser mordido pela cobra, fazer o mesmo.