Luanda – Antigo primeiro-ministro, ao tempo de José Eduardo dos Santos, e hoje administrador não-executivo da Sonangol, Marcolino Moco confessa-se preocupado por se pensar que “toda a gente tem de ir para a cadeia”, questionando-se sobre quem se poderá salvar. Insiste numa “justiça restaurativa” e sugere a mudança de filosofia, já que o “poder é para servir e não para fazer vinganças”.

*César Silveira
Fonte: VE

Que balanço faz da sua função de administrador não-executivo da Sonangol? 

Ainda não há balanço, o tempo é extremamente curto. Os problemas vividos na Sonangol são extremamente graves, tão graves quanto os do país até porque foi sempre, e continua a ser, o pilar da economia angolana. O problema é muito grave, sistémico e reside, sobretudo, na filosofia política que Angola adoptou, particularmente no período de 2002 a 2017.

Mas sente que tem sido útil?
Sim, continua a ser importante a minha presença. A estrutura do funcionamento permite que leve as minhas opiniões. Temos reuniões mensais e recebemos a documentação com antecedência. A questão é que os grandes problemas que afectam a Sonangol são inerentes
ao funcionamento do país, com a mudança de era. Passou a ‘Era José Eduardo dos Santos’, entrámos na ‘Era João Lourenço’, mas esta ‘Era’ ainda não está definida. Estamos numa transição muito difícil, às vezes preocupante mesmo, por isso vamos esperar. Vamos dando opiniões, como mais-velhos com experiência no domínio político, jurídico, que é a minha especialidade.

Que opinião tem sobre a presença da Sonangol entre os activos a privatizar?
Não gosto muito de me meter em questões de natureza técnica/económica. Mas, de uma forma geral, estou preocupado que algumas decisões sejam tomadas pelo Executivo sem muito debate. Em relação às privatizações, pela sua dimensão, a Sonangol preocupa e deve preocupar mesmo. Fiquei preocupado não ter havido grande discussão. Parece que o Executivo se tem precipitado um pouco, tem de ser mais consultivo. Não sou dos que defendem um Estado muito grande, pelo contrário, mas acredito que deveria haver um pouco mais de consensos em determinadas decisões.

Há outros casos em que faltaram consensos?
Não é o único caso. Provavelmente, as decisões e dossiers vêm já do período de José Eduardo dos Santos, mas somos um país que, pela sua fragilidade, precisa de mais consensos e não os tenho visto. Foi para mim uma posição muito negativa haver, por exemplo, operações como resgate e outras tomadas quase que de forma precipitada e sem sentido nenhum. Parece-me que a preocupação do Executivo é fazer alguma coisa com impacto, não interessa se negativa ou positiva, mas vamos dar tempo ao tempo.

O dossier das privatizações é antigo. Salvo erro, mesmo no tempo em que o senhor foi primeiro-ministro já se falava. Precisava de mais debates?
No meu tempo de primeiro-ministro, não se falava de privatizações, de uma Sonangol, por exemplo, nem fazia sentido. Era tempo de guerra feia e não haveria tempo para pensar em privatizações. Agora, privatizámos ou tentámos privatizar pequenas e médias empresas como lojas, pequenas unidades das obras públicas e outras. Privatizar ‘sonangóis’ e ‘taags’ nem pensar. Quando falo de consensos não é no sentido de consultar o país todo, mas individualidades que, volta e meia, se debruçam sobre questões económicas para, em tempo útil, darem opiniões sobre se vale a pena continuarmos encostados à China, se temos de nos encostar, agora, ao FMI.

Quais são as principais preocupações?
Estou muito preocupado, por exemplo, com o tipo de justiça que se está a fazer e onde é que isso vai parar. Estou preocupado que o MPLA patrocine (não sei se estou a exagerar) os problemas que estão a ser hoje combatidos por uma ala do próprio MPLA. Preferiria haver uma harmonização, uma espécie de reconhecimento geral de uma coisa que o MPLA foi o culpado. José Eduardo dos Santos era só o cabeça. Estou com a cabeça erguida em falar assim porque fui o maior crítico, certamente, do que se estava a passar, particularmente desde 2002 até 2017. O Presidente José Eduardo Santos começou a falar em passar o poder em 2016. Inicialmente, eu não acreditava porque já nos tinha fintado várias vezes (em 2001 dizia que ia sair, mas não saiu). Tomou a decisão de passar o poder ao camarada João Lourenço, trabalharam juntos até ao último dia. Agora, fico preocupado que se baptizem uns de ‘marimbondos’ e outros ‘não marimbondos’, ao invés de haver uma harmonização dentro do próprio partido para se fazer bem uma transição.

Algumas decisões de José Eduardo dos Santos, sobretudo no final do mandato, não terão precipitado esta forma de agir do actual Presidente?
É evidente que antes do actual Presidente patrocinar estas atitudes na justiça, José Eduardo dos Santos ‘pisou a bola’ com aquela coisa de nomear chefias militares para mais quatro anos renováveis, reforçar o poder económico dos filhos. Aquela atitude de descompressão do novo Presidente justificava-se. Exonerações de Isabel, ‘Zenu’, mesmo a própria detenção’ em relação a um facto que aparentemente teve lugar no período de transição. Foram aplaudidas, também aplaudi. Hoje, eu, e não só, começo a preocupar-me porque parece que este período de recomposição ou retirada dos empecilhos nunca mais termina. É natural. Somos seres humanos (o Presidente também), mas não tenho receio de lhe dizer, a partir de fora, que convinha passarmos para uma outra fase. Pensar que ele agora é quem tem a faca e o queijo nas mãos, cabe-lhe mostrar que é diferente, que é magnânimo, que junta a família do partido e vamos tocar a vida para frente.

Acredita que o MPLA está dividido?
Aparentemente sim, vemos uma divisão. Não estou lá dentro, continuo a considerar-me ligado sentimentalmente ao MPLA, mas não voltei ao activo. A impressão é que há esta divisão que deveria ser evitada, não pelo MPLA, mas sobretudo pela responsabilidade que o partido tem perante o país. Há uma coisa que devemos louvar, que o Presidente João Lourenço está a trabalhar na reconciliação nacional. Uma aproximação da sociedade, uma aproximação do principal partido da oposição, a UNITA. É muito louvável que o Presidente tenha permitido, com a facilidade com que o fez, o regresso dos restos mortais do general Ben Ben, o enterro de Jonas Savimbi, com alguma polémica, mas feitas as contas, o balanço é muito positivo.

Porque é que não acreditou que José Eduardo dos Santos deixaria efectivamente a liderança em 2016?
Porque, pelo menos uma vez, fintou a sociedade. Em 2001, disse que já não seria o próximo candidato às eleições que se seguiriam, que depois se realizaram em 2008, mas apareceu. Curiosamente, o actual Presidente, como secretário-geral do MPLA, confirmou esta posição e, aparentemente, foi castigado por isso. José Eduardo dos Santos apareceu nas eleições de 2008, sabotou as de 2009 para as presidenciais e depois aprovou uma Constituição que é um desastre, e foi um desastre para ele, precipitou o fim dele e deixou o país num abismo. Sou jurista daqueles que pensam que não é por uma coisa estar inscrita na Constituição que deve amarrar as pessoas. Preocupo-me porque, em determinas situações, o Presidente João Lourenço segue a mesma lógica que tem de fazer tudo, tem de decidir sobre tudo, tem de fazer muitos decretos, tem de exonerar, tem de nomear a toda a hora e momento.

Não considera a possibilidade de não ter havido, como disse, uma finta, mas determinada razão que terá feito José Eduardo dos Santos recuar?
É finta na mesma. Ele explicou porque é que não era o momento? Não. Depois fez aprovar aquela Constituição, em que as fintas foram muito mais claras com a realização de um CAN sem sentido, gastar dinheiro com o país em dificuldades para as pessoas aplaudirem os golos e a Constituição passar. É fácil concluir isso. Também sou político e a mim ninguém aldraba.

Manifestou-se publicamente a favor de uma justiça restaurativa. Que características práticas teria?
Os pormenores, limites e critérios tinham de ser estudados. Não é possível julgar todas as pessoas que têm culpa no cartório nas questões muito graves de desvio de dinheiro. Antes disso, a questão mais grave é a filosofia que foi estabelecida: a chamada acumulação primitiva de capital sem qualquer critério, sem qualquer definição o que permitiu que uma família, a presidencial, mais alguns que aceitassem cegamente esta filosofia, se locupletassem do erário e em que uma senhora, que só agora anda nos 40 anos, foi transformada na mulher mais rica de África, num país onde a pobreza grassa em todo o lado, onde não há seringa nos hospitais e as estradas estão rebentadas.

E como se resolve isso na proposta de justiça restaurativa?
Vejo com muita preocupação que se pense que toda a gente tem de ir para a cadeia. Quem é que vai sobrar? É preocupante a ideia que se espalha e isso parece que anima algumas pessoas, porque é demagogia dizer que alguém tem de pagar. As pessoas dizem isso porque não chegou a vez delas. Quando chegar, vão ver o que é um indivíduo ser escolhido como exemplo para pagar por todos. A justiça restaurativa tem a virtude de tentar corrigir uma coisa que chegou ao extremo. Durante 15 anos, até 2017, os crimes económicos atingiram uma dimensão tal que, se se quiser ir pela justiça punitiva, iríamos pôr o país paralisado. Gosto de emitir as minhas opiniões, às vezes tenho dúvidas se estou certo, mas neste aspecto, como jurista e conhecendo como os tribunais funcionam, não tenho muito receio de errar. Aliás, é só olhar para este processo do Conselho Nacional dos Carregador foi feito.

Houve irregularidades?
Não viu nenhuma irregularidade? Aquilo é terrível. Em justiça, há, sobretudo no Direito Penal, o princípio ‘in dúbio por reo’, mas nesse processo em que havia dúvida, o réu levou pancada. Por exemplo, o réu Tomás (falo mais dele por ser mais visível) é deputado, mas, no processo da sua prisão, não se teve em conta, enquanto outros deputados vão ser julgados, mas estão fora com base nas imunidades. O seu crime poderia permitir o recurso à caução, mas não lhe permitiram. Ouvimos um juiz dizer: “Pressupondo-se e por aí fora então”. Um juiz não pode tirar conclusões desta maneira.

Não acredita na possibilidade de a dificuldade ser do próprio juiz?
É possível, mas preocupa porque é isso a que assistimos na era anterior. Por exemplo, no ‘processo 15+2’, houve aquela situação em que fui chamado como declarante porque alguém, que esteve a brincar, constituiu um governo em que apareci como futuro presidente do Tribunal Supremo. Não vamos brincar com as coisas. Não acredito que um juiz, que chegue ao nível de juiz do Supremo, possa ser censurado por problemas tão mínimos (mas muito prejudiciais para o arguido). Estamos a banalizar a justiça numa altura em que tem de ter autoridade. Há pessoas que estão a aplaudir, defendem que tem de se castigar alguém, mas isso é errado, é de pessoas que ainda não estão bem formadas em termos de cultura jurídica e cultura humana também. Um indivíduo que defende que se escolha alguém para pagar por tudo, que defende que todos devem ir para a cadeia, não está a ver que qualquer dia a própria direcção do país vai toda para a cadeia.

É apologista de um perdão?
Sim. Como disse, não estou a ditar pormenores, é uma coisa que poderia ser definida, de se criar uma comissão para ver como sair desta situação. Não se pode sair de ânimo leve, do tipo não aconteceu nada porque as pessoas vão continuar a desviar, mas também não se pode utilizar um sistema que não funciona. O que vai acontecer é que os órgãos judiciais vão estar tão absorvidos com o passado que não vão ter tempo de se preocupar com o que se está a passar agora. As pessoas vão continuar a roubar, porque os processos demoram muito tempo, vão ocupar os procuradores e juízes com o passado e os que estão a actuar hoje e no futuro vão continuar a roubar.

E acredita que haja pessoas a arriscar?
Estou a fazer uma presunção. Se os meios judiciais estão preocufilhos do Presidente, os filhos de outras pessoas que nem sequer eram conhecidas como militantes. A mim ninguém vai pegar nesta coisa de toda a gente passar pela cadeia.

Em que circunstância se tornou accionista do BCA?
Até parece pecado ser accionista, com menos de 1%, num banco tão insignificante como o BCA. Toda a hora colocam-me esta questão. Sou accionista, porque sou angolano. Também ninguém vai pensar que nem sequer tinha algum dinheiro para pagar menos de 1% do primeiro banco a ser criado, que nunca teve fundos da Sonangol ou de outra instituição. Mas também não é este o problema de Angola. O problema não é o Marcolino Moco ter 1% num banco, ou a ‘Tchizé’ ter alguns por cento no BNI, ou a Isabel ser quase dona do BFA. Não é este o problema. Queremos falar de coisas sérias, de desvios, de filosofia e depois encostam-nos nestas pados com dezenas ou centenas dos casos do passado como vão ter tempo para se debruçar sobre o que se passa agora? É como diz a personagem do Pepetela, no ‘Sua excelência de corpo presente’, que nós, angolanos, gostamos de ir buscar os picos do passado para espetar no presente. É assim que não resolvemos os problemas de 1974, continuamos a trazê-los; não resolvemos o problema de 1977, continua a afectar o presente. É bom que o Presidente João Lourenço tenha, por exemplo, criado esta comissão que se vai debruçar sobre a reconciliação nacional, mas é preciso sermos mais ambiciosos na harmonização do país. É preciso acabar com a época em que tem de se actuar sempre contra alguém. Ou seja, José Eduardo, Marcolino, Lopo, etc. eram inimigos, agora é o João Lourenço, também para ficar bonito, tem de actuar contra alguém. Não pode ser. Temos de acabar com isso.

Perguntou quem sobraria caso fosse necessário prender todos. O senhor escaparia? Foi primeiro-ministro e também secretário-geral do MPLA.
Já estou a ver alguns preocupados a pensar que tenho algum problema. Se houvesse este problema, seria o menos afectado, porque ando a criticar o sistema e tenho sofrido por causa destas críticas há mais de 20 anos. Se calhar, seria o único a sobrar porque a falência do sistema de justiça existe desde 2002. No meu tempo, as instituições funcionavam de acordo com a Constituição. No tempo da guerra, há muitas coisas que podem ser perdoadas, porque onde há guerra há muitas águas turvas. O grande problema é entre 2002 e 2015, em que não me apanham até porque não tinha funções. Fui retirado de tudo, fui sendo afastado desde o congresso de 1998 de forma cobarde, cínica e ordinária.

Como assim?
Em 2008, decidi dizer ao partido que já não seria deputado, mas cínica e ordinariamente mandaram um grupo de pessoas a casa para falar comigo. Disse que não pretendia, mas se o partido pretender que declarasse. Pediram-me para não fazer esta exigência e qual foi o meu espanto? Para me achincalhar, fui retirado da lista. Depois mandarem uma delegação a casa  dizer que não me poderia afastar. Apareceram pela primeira vez os filhos do Presidente, os filhos de outras pessoas que nem sequer eram conhecidas como militantes. A mim ninguém vai pegar nesta coisa de toda a gente passar pela cadeia.

Em que circunstância se tornou accionista do BCA?
Até parece pecado ser accionista, com menos de 1%, num banco tão insignificante como o BCA. Toda a hora colocam-me esta questão. Sou accionista, porque sou angolano. Também ninguém vai pensar que nem sequer tinha algum dinheiro para pagar menos de 1% do primeiro banco a ser criado, que nunca teve fundos da Sonangol ou de outra instituição. Mas também não é este o problema de Angola. O problema não é o Marcolino Moco ter 1% num banco, ou a ‘Tchizé’ ter alguns por cento no BNI, ou a Isabel ser quase dona do BFA. Não é este o problema. Queremos falar de coisas sérias, de desvios, de filosofia e depois encostam-nos nestas coisas pequeninas. Não estamos a defender pobreza, mas sim riqueza do país.

Não é um contra-senso o MPLA estar a defender a transparência e a combater a corrupção, mas continuar a ter o seu braço empresarial, a Gefi, a actuar de forma considerada opaca?
Não queria pegar nessas palavras, mas tenho de confessar que está justamente a corroborar com a minha preocupação. Pecadores estão a querer dizer aos próprios irmãos que são pecadores. Você agora deu um exemplo concreto. No processo CNC, há muitas alusões  de como os dinheiros foram desviados para fundações de pessoas do MPLA e para esta Gefi. Todos sabemos que ninguém podia negar, porque estamos a fingir? Justamente para fazer aquilo que é incorrecto, selecionar alguns para pagar pelos outros. Alguns dizem que “se não  se fizer isso o MPLA vai perder as eleições”. Desculpe, vou ter mesmo de usar um termo feio, mas esta é das coisas mais estúpidas que já ouvi. Não se diz. Cometer injustiças, escolher alguns para pagar por todos. É assim que vamos ganhar as eleições? Não, isso não lembra
ao diabo.

O que pensa da efectivação dos juízes de garantia?
Nunca pensei nisso, estou a ouvir pela primeira vez. O problema não são as instituições que se criam de forma espectacular, o problema é de filosofia. Precisamos de mudar de filosofia, pensar que o poder é para servir e não para fazer vinganças, nem para dividir constantemente a nação entre bons e maus. A partir desta ideia filosófica, deste pensamento político, não importa muito o tipo e as instituições. Criar um juiz de garantias, mas depois orientar este juiz politicamente para actuar contra este ou contra aquele? O problema é filosófico.

Tem-se levantado a discussão sobre a possibilidade de o ex-Presidente vir ou não a ser responsabilizado. Qual é a leitura que faz?
A Constituição é muito clara, não encontro grandes dificuldades na interpretação. A ideia que é lógica é que não se pode pensar que o Presidente José Eduardo dos Santos não pode ser chamado para esclarecer algumas questões em relação a processos em que é várias vezes citado. Agora, há tomadas de decisões, a título pessoal, e tomadas de decisões, a título de funções, que a Constituição destrinça. Ele pode ser chamado, mas, na maioria dos casos, cinco anos depois da sua retirada.

Nos casos em que é chamado como declarante também entende que basta José Eduardo dos Santos confirmar as autorizações, estes processos são automaticamente arquivados?
É muito técnico-jurídico, teria de ter o processo e debruçar-me sobre ele. Tenho ideias muito claras em termos, mais uma vez, de filosofia jurídica, em termos do interesse do processo nacional. Temos de pensar que o país tem parado durante muito tempo, passamos a vida a dividirmos. Hoje sou eu que tem razão. Amanhã, porque estou no poder, já eu é que tenho  razão. Isto é que temos de evitar e não vamos ser muito formalistas. Uns dizem que José Eduardo dos Santos não deve ser preso por ser patriota. Até parece que nós não somos. Penso que o presidente José Eduardo dos Santos não deve ser preso, isso deve ser evitado para não acirrarmos mais problemas e até em função do respeito que como africano temos de conferir a uma pessoa que assumiu responsabilidades no país. Cometeu erro naturalmente porque é humano como nós. Até pode ser chamada aqui a doutrina cristã: quem é que nunca pecou? E sobretudo porque ele não foi empurrado, ele próprio passou o testemunho, bem ou mal.

E...
Temos de pensar em termos políticos. Pôr o Presidente José Eduardo na cadeia, colocava-nos uma grande responsabilidade perante uma África. Muitos chefes de Estado não querem abandonar o poder justamente porque a regra é quando se sai, vai-se para a cadeia. Não seria um bom exemplo a partir de Angola. Ganha-se muito mais (a não pôr na cadeia) do que se perde. As pessoas querem espectáculos, mas não estão a pensar que, com isso, vamos perder mais tempo ao invés de resolvermos os problemas que temos, como os aumentos dos preços e a fome.

Percebe as motivações que levaram José Eduardo dos Santos a apostar em João Lourenço?
Não faço a mínima ideia. Poderia ser João Lourenço, Bornito Sousa, ‘Nandó’. Apesar do nosso afastamento, Marcolino Moco, Lopo, França Van-Dúnem, ainda havia um grande naipe para o Presidente José Eduardo ou, se preferir, o próprio partido escolher. Estando fora da direcção do partido já há muitos anos, não posso adivinhar os critérios que estiveram na base da escolha de João Lourenço, mas é um dos elementos da elite do MPLA, dos mais experientes e inteligentes.

Também enfrentou alguns destes problemas. Na altura que decisões determinantes foram tomadas?
No meu tempo, havia um problema principal, a guerra. Fui a primeiro-ministro em 1992 quando a UNITA decidiu abandonar Luanda e começou a ocupar o país todo. Praticamente, só sobrou Luanda e pouco mais. A preocupação era esta, comprar material de guerra, alimentação para deixar cair em pára-quedas para a população e para os soldados. Saí em 1996 e continuava a ser a tarefa mais importante. Parece que, na altura, as pessoas compreendiam melhor as razões…
Sim, porque hoje não há justificação, não há guerra. Estamos em paz há 17 anos e estamos como estamos. Quando houve uma alta do preço do petróleo, o dinheiro foi malbaratado. Os que estavam em frente das instituições privilegiaram colocar o dinheiro lá fora, pouco investiram aqui dentro. Mesmo que desviassem, mas que investissem no país.

Está a dizer que estas situações foram provocadas sobretudo pelo passado e não tanto pelas políticas?
Já previa que as consequências da má governação dos 15 anos iam sentir-se mais à frente. Chamava atenção que o actual Executivo deveria saber comunicar. Lamento que estes alertas não foram tidos em conta. O Executivo não está a comunicar bem e está a seleccionar projectos que não facilitam esta comunicação. Como é que se faz a ‘Operação Resgate’ em que as vítimas do sistema anterior são as eleitas para este projecto? Há outros exemplos, como a polémica do Bairro dos Ministérios, da compra dos aviões. Há, sobretudo, a questão das prioridades. O combate à corrupção, por exemplo, ao invés de estar virado para o passado, se se virasse para o presente, comunicar e harmonizar, as pessoas sentiriam. Não é que no meu tempo não houvesse fome, mas as pessoas viam que havia uma causa, era a guerra e havia comunicação, comunicava-se melhor.

Como…
Tem de haver primeiro, no plano material, uma maior preocupação com os problemas. As pessoas sentirem que o Governo está preocupado em organizar uma cesta básica, que está a mobilizar a comunidade internacional para dar determinados apoios. A preocupação deve ser com a nossa estrutura do Estado, que está muito centralizada. Os ministros têm medo de decidir (e têm de ter porque o titular do poder executivo é só um). Está tudo amarrado, parado. Para haver uma decisão, um ministro leva muito tempo. Fala-se muito, copiando do Ocidente, que não deve haver jogo de influência, mas, em certa medida, é mentira. Não se pode governar sem influência. Temos uma função ou passado (como é o meu caso) que, para actuar em favor do país, tem de ser através da influência. É mau se se usar em favor pessoal, mas se usar a influência, por exemplo, no sentido de levar investidores a um ministério para serem atendidos (posso ganhar alguma coisa, não interessa quanto), o que interessa é trazer mais-valia para o país.

Faz lembrar o caso Norberto Garcia…
Por exemplo. Foram parar à cadeia. Corrigiram, mas já era tarde. Há mais preocupação com o espectáculo que, cada vez mais, amedronta as pessoas, do que em libertar o país.

Como resumiria os dois anos de João Lourenço?
Um arranque muito bom e agora entrou-se numa fase em que parece haver uma dificuldade em superar a primeira. O avião descolou bem, mas está a custar tomar o equilíbrio e apanhar a velocidade cruzeiro. Às vezes, perde-se tempo com algumas emoções. Estes baptismos de ‘marimbondos’ e ‘não-marimbondos’. Esta fixação na ideia de combate à corrupção quando a corrupção é uma consequência e não uma causa. Duas das grandes mais-valias que João Lourenço trouxe são a relativa libertação da comunicação social, da liberdade de expressão.

Mas hoje também se sente que as pessoas têm medo de falar a nível institucional...
Começam a ter medo e o Presidente diz que não gosta de bajulação, mas, se continuarmos assim, aliás, já começam a aparecer e, curiosamente, são os mesmos bajuladores do tempo de José Eduardo dos Santos. Toda a gente já está a desenhar quem é que estou a falar. Se o Presidente não gerir bem esta abertura que trouxe e o fim da impunidade (este é o outro valor que quis referir) para não parecer selectivo e direccionado, se não nos consegue gerir bem, vamos entrar no mesmo buraco e com esta Constituição que lhe dá tantos poderes. Não acredito que seja exactamente a mesma coisa, mas ninguém vai aceitar, depois de se superar o ‘eduardismo’ entrar no ‘lourencismo’, no sentido negativo.

Consta que, a determinada altura, descobriu que tinha a casa toda sob escuta. É verdade?
Isso é mentira. É provável que a casa tenha estado sob escuta, mas isto é habitual aqui em Angola e noutros países também. Como nunca conspirei contra o Estado, nem contra ninguém, nunca me preocupei com isso.

Tem ressentimentos para com o ex-Presidente, considerando que sempre manifestou que o problema era com ele e não com o MPLA?
Tivemos divergências políticas, somos políticos. Ninguém tem de perdoar ninguém. Não guardo rancor nenhum, fui crítico dele, mas não da pessoa ou dos filhos (aqueles que conheço, me dou muito bem, a Isabel, a ‘Tchizé’, com a antiga primeira-dama). Agora, incumbe-me uma missão, enquanto estiver vivo, contribuir sempre para o melhor do meu país. Vi muitos erros e desvios, por isso critiquei. Hoje não tenho problema nenhum com o Presidente José Eduardo dos Santos.