Luanda - No ponto de vista filosófico, a Cultura Política refere-se a um conjunto de ideias políticas plasmadas num conjunto de normas conceptuais e metodológicas, tais como: estatutos, ideários, manifestos, programas, regulamentos e regimentos. No verdadeiro sentido, a cultura política é um pensamento politico, uma doutrina, uma ideologia ou um projeto político da sociedade. Ou seja, a cultura política constitui um sistema de ideias, valores, princípios, objetivos e metas, que definem uma visão da sociedade e do mundo, fundamentando e orientando a forma de agir de uma pessoa ou de um grupo social.

Fonte: Club-k.net

Este conjunto de ideias políticas desenvolvem-se gradualmente e transformam-se numa cultura, em forma de preconceitos, crenças, costumes, atitudes, práticas ou convicções. Porém, é frequente a cultura política (doutrina) transformar-se em dogma e sem ter capacidade de evoluir e de adaptar-se às novas transformações que ocorrem na sociedade e no mundo. Portanto, a tendência estática, de se transformar na cultura dogmática, faz com que sempre surja uma revolução popular ou um movimento cívico para alterar o sistema político vigente. Visando introduzir na sociedade novos conceitos, novos métodos, novas técnicas, novos conhecimentos, novas relações sociais, novas formas da organização e novos modos de produção e de distribuição da riqueza.


A civilização humana baseia-se nesta dinâmica permanente da mudança regular e constante da mentalidade, capaz de alterar o modo de pensar e o modo de agir das pessoas, que constituem factores importantes para que haja prosperidade, estabilidade e progresso. Pois, a estrutura mental do homem é o motor da realização humana e ela é influenciada por vários factores sociológicos, psicológicos, económicos, tecnológicos, científicos e culturais, que mudam a sua visão e o seu comportamento. Repare que, em geral, a evolução da consciência humana é lenta, mas ela é progressiva e sólida, em termos da articulação e da adaptação.

Neste contexto, a cultura política é como os «artefactos» históricos (do antigo Egito ou da antiga China), que se afirmaram ao longo do tempo. Hoje, o seu impacto sobre a civilização humana é extraordinário, despertando assim a consciência de pertença aos nossos antepassados e do espirito de sacrifício e de inovação. Por outro lado, importa notar que a cultura tem duas facetas distintas: a parte positiva e a parte negativa. Os elementos positivos da cultura persistem e enriquecem a civilização das gerações vindouras. Ao passo que, os aspetos negativos da cultura caiem em desuso e são postos de fora. Aí está a diferença entre o homem e outras criaturas que mantem-se no estado primitivo, sem modificar o comportamento, o raciocínio e o meio social.


Esta introdução extensa conduz-nos a observar atentamente a evolução da cultura política angolana. Desde já, ela passou por vários períodos de mutações constantes até aos dias de hoje. Esta cultura politica que testemunhamos hoje teve um longo percurso desde o tráfico de escravos, as guerras de conquistas, a etapa da colonização, a luta pela independência nacional, a guerra-fria e a guerra-civil, que terminaram em 2002. Os conceitos, os preconceitos e os preceitos da cultura política angolana amadureceram-se ao longo deste período conturbado e fizeram morada na consciência das pessoas.


É de realçar que, neste período de fecundação cultural os povos de Angola viveram momentos dramáticos caracterizados por divisão, discriminação, humilhação, exploração, opressão e estratificação sociocultural. Por exemplo, os escravos arrastados do interior do
continente chegavam ao litoral atlântico acorrentados, humilhados, desprezados, torturados e deixados a morrer em desgraça. O trabalho contractado e forçado, em grande parte, incidia-se no interior do continente, de onde as vítimas eram conduzidas em caravanas horríveis, com destino ao litoral atlântico, ou às plantações do café, do Norte de Angola, como mão-de-obra barata.


Acima disso, é importante sublinhar que, o tratamento dado aos povos colonizados não era uniformizado, dependia da raça, da condição social, da origem étnica e da localização geográfica. Na altura, depois da derrota dos Reinos do litoral, havia uma espécie de “Acordos” tácitos entre os invasores portugueses e os africanos do litoral para conquistar os Reinos do interior do Continente. O impacto dessas “Alianças” tácitas foi enorme, em termos da classificação e da estratificação dos povos do interior e do literal, bem como o contexto da definição da política colonial e do processo da descolonização. Os benefícios e as desvantagens deste quadro de relacionamento e aproximação incentivou o espirito de «etnocentrismo», assente na superioridade e na inferioridade, isto é, na existência da «supra etnia» e da «infra etnia». Literalmente, o etnocentrismo consiste na ideia de que, as crenças, tradições, costumes, hábitos, práticas, princípios e valores de uma “supra etnia” são muito superiores do que das infra etnias, e por isso devem ser o modelo a que tudo deve referir-se e sujeitar-se.


Assim sendo, o conceito da «superioridade étnica e racial», induzido pelo regime colonial nas comunidades urbanas do litoral, esteve na base do antagonismo político que se instalou no seio dos três movimentos (FNLA/MPLA/UNITA) de libertação nacional, cada um com a sua base étnica distinta, sendo: Quicongo, Quimbundo e Umbundo, respetivamente. O que quer dizer que, o colonialismo português adotou a política da assimilação cultural, do indigenato e da discriminação geográfica negativa, como forma de dividir os reinos africanos, criar rivalidades entre si, impor a cultura portuguesa, alienar as comunidades urbanas, dominar o interior e consolidar o poder colonial.


Foi neste contexto em que surgira a caracterização pejorativa dos povos do interior do Continente como sendo gentios, matumbos, atrasados, “bailundos,” e gente do mato. O preconceito pejorativo assente na raça, na etnia, na condição social e na localização geográfica, praticado em Angola (no pré- e no pós-, independência) alienou a mente de muita gente, incutido nela o complexo de inferioridade, a despersonalização e a destruição do património cultural dos povos africanos. Isso passou por um processo sistemático da desvalorização das línguas africanas e da depreciação da herança cultural dos povos africanos, em termos de instituições, costumes, preceitos, conceitos, valores e princípios.


Se tratava de facto de uma cruzada contra a personalidade e a identidade africana, como pessoa coletiva, transtornando a consciência humana, negando sua raça e sua origem étnica e cultural. Esta revolução cultural atingiu os níveis mais elevados e alarmantes no rescaldo da independência, em 1975, até 2017, no final da Dinastia do José Eduardo dos Santos. Como foi sublinhado atrás, embora os três movimentos de libertação nacional estivessem sido de cariz nacional, mas os seus «núcleos internos do poder» apoiavam-se nas bases sociais étnicas ou raciais, como elementos de inspiração política e da manutenção do poder político.

Honestamente, se fazer uma observação crítica e objetiva da realidade interna dos três movimentos de libertação nacional é óbvio constatar que o «centro do poder» de cada um deles ainda assenta firmemente nas mesmas matrizes étnico-culturais e raciais, acima referidas. Com isso não quer dizer que os três movimentos de libertação nacional não sejam de expressão nacional; são sim, de jure et de facto. Mas só que, a sua Cultura Política é enraizada na etnia ou na raça, e virada para a supremacia de um grupo sociocultural, que busca prevalecer sobre os outros, servindo-se de «eixo-central» do poder político. Parece-me que, a evolução ideológica dos três movimentos de libertação nacional partiu deste preconceito megalomaníaco, inspirado no elitismo, na hegemonia, na exclusão sociocultural e racial, no etnocentrismo e, na eternização e centralização do poder político.
Veja que, o regime político prevalecente no país desde 1975 desenvolveu-se da doutrina colonial portuguesa. Este regime político assenta nos mesmos preconceitos da época colonial, caracterizada pela discriminação étnico-cultural, racial e geográfica. Portanto, a ideologia do socialismo científico do Karl-Marx, do Lenine, do Estaline e do Mao-Tsé Tung, apenas se implantou sobre um ambiente sociopolítico, bastante fértil, já existente no país, no seio dos assimilados urbanos, sobretudo do litoral atlântico, alienados pela colonização portuguesa. Pelo que, a caracterização do sistema colonial português e a perspetiva de uma Angola Independente não tiveram o mesmo ângulo do pensamento politico entre os três movimentos de libertação nacional.


Aliás, na base da alienação cultural, a Elite do MPLA não considera os outros angolanos como iguais, com a mesma origem sociológica, com os mesmos direitos cívicos e com as mesmas faculdades. Por este motivo, trata os nacionalistas e os combatentes da FNLA e da UNITA como sendo «estrangeiros», agentes do imperialismo ocidental. Esta mentalidade de exclusão politica e étnico-cultural é o fruto da doutrina colonial portuguesa, incutida nas elites do litoral, sobretudo de Luanda. Com efeito, para alguns círculos, Angola é Luanda. Tudo que fica fora de Luanda é mato, não tem validade nenhuma, e deve submeter-se aos ditames do litoral.


A questão de Luanda, nesta perspetiva, é bastante problemática devido o facto de que, a Cultura Quimbundo, que era a base de inspiração étnico-cultural dos nacionalistas do MPLA ficou desarticulada pelo sistema colonial muito cedo e convertida na cultura crioula, perdendo a sua substância cultural bantu. Portanto, é difícil avaliar bem o impacto da Cultura Quimbundo no seio do MPLA, como base social étnica. Porém, é assente o facto de que, a elite crioula sente-se inconfortável com o ressurgimento, reestruturação, valorização e dignificação do Grande Reino do Dongo e de Matamba. Porque, na sua expectativa, isso teria impacto demolidor sobre a base social étnica da elite crioula, cuja influência politica, económica, financeira e forense é dominante.


Logo, a questão fundamental de Angola consiste na afirmação da mentalidade colonial portuguesa, que tornou-se uma cultura política exclusivista e anti africana. Mas, pela sua complexidade, muita gente resigna-se em abordar abertamente este fenómeno, que tornou-se um tabu. Todavia, os seus efeitos negativos são devastadores e ameaçadores à liberdade, à igualdade, à unidade nacional, à estabilidade e ao progresso. Veja que, mesmo nesta fase de abertura e da aproximação, ainda surgem aí e acolá discursos musculados a designar os nacionalistas e os combatentes da FNLA e da UNITA como sendo «estrangeiros», ao serviço do imperialismo ocidental.


Tudo isso indica explicitamente de que, o preconceito pejorativo diante a identidade africana, dos povos bantus, ainda tem raízes muito profundas na arena política angolana e a perspetiva de uma real reconciliação nacional ainda está muito distante. Por isso, duvida-se, se de facto, o que está sendo dito de, “Nova Era,” e de, “Corrigir o que está Mal,” esteja mesmo no fundo do coração dos dirigentes do MPLA.


Pois, toda gente sabe que a luta de libertação nacional e a guerra civil foram travadas por três movimentos de libertação nacional: FNLA, MPLA e UNITA. Atrás de cada um deles haviam aliados estrangeiros: Europeus, Asiáticos e Americanos. Agora, querer escamotear as coisas, nesta fase delicada de “transição,” é bastante triste. Leva-nos acreditar que não fomos capazes de tirar lições válidas da nossa História conturbada desde 1482 quando o Navegador Português Diogo Cão chegou ao Reino do Congo, na foz do Rio Congo, iniciando assim uma longa noite da escravatura, da colonização, da opressão e da exploração.


Em suma, dir-se-ia que, a estrutura mental do homem é o motor da realização humana, como base fundamental da civilização. Ela, a estrutura mental, é influenciada por diversos factores que fazem com que ela se adapte, desenvolve, transforme e introduza novos conceitos e novas técnicas na sociedade, como instrumento de mudança e da inovação. Para que o seu papel progressista, edificador e inovador seja de facto efectiva e útil, a estrutura mental do homem deve ser sã, positiva, aberta, inclusiva e transformadora de modo que, o seu património cultural sirva o bem-comum.


É neste âmbito é que a Nação Angolana e as suas elites devem situar-se, ter capacidade de transformar positivamente a consciência humana, expurgar os preconceitos erróneos do sistema colonial português, da doutrina monolítica centralizador e da exclusão sociocultural, que prevaleceram no país e alimentaram a cultura de violência, de ódio, de perseguição e de sectarismo.


Erguendo, deste modo, uma Nova Angola – Una e Indivisível – assente sobre os pilares sólidos da boa governação, da liberdade, da igualdade, da justiça social, do progresso e do bem-estar de todos – sem exceção.


Luanda, 15 de Setembro de 2019