Lisboa - A presidência de João Lourenço em sete temas, analisados por três investigadores de questões africanas. As mudanças e limites da primeira metade de um mandato que está a conseguir tornar "Angola diferente do que foi durante o tempo de Eduardo dos Santos". Mas os desafios da mudança são enormes.

*Abel Coelho de Morais
Fonte: DN

Houve desde o início "um esforço de rutura com práticas do passado" enunciado, desde logo, "no discurso de tomada de posse do presidente João Lourenço" a 26 de setembro de 2017, defende o investigador angolano e professor de Ciência Política Paulo Conceição Faria. Daquela intervenção, o académico angolano destaca uma frase: "Ninguém é rico ou poderoso demais para se furtar a ser punido, nem ninguém é pobre de mais ao ponto de não poder ser protegido". Por detrás deste enunciado, pensa Paulo Faria, está um amplo programa que visa "o resgate da crença e confiança nas instituições do Estado", "o combate à corrupção, nepotismo e impunidade", a afirmação da "prioridade do interesse nacional sobre os interesses particulares ou de grupos" e "o convívio com a crítica e diversidade de opinião".


Também o moçambicano David Matsinhe, investigador da Amnistia Internacional (AI) para Angola e Moçambique, confirma que o presidente João Lourenço começou "a introduzir reformas bastante cedo, o que não era esperado". Uma "surpresa positiva" que, sublinhou Matsinhe, professor na Universidade de Carleton, no Canadá, não se ficou pelos primeiros dias. Já nos finais de 2018 - no regresso da visita a Lisboa que ficou conhecida como o "fim do irritante", um contencioso político e diplomático que as duas capitais mantinham - João Lourenço convocou representantes da sociedade civil "para conversarem diretamente" com ele, no Palácio da Cidade Alta, em Luanda. O convite foi extensivo a membros conhecidos da contestação, como o ativista cívico Luaty Beirão. E quando um guarda da portaria, por razões burocráticas, interditou a entrada de Rafael Marques, o presidente angolano pediu desculpa ao famoso jornalista e marcou-lhe encontro pessoal logo no dia seguinte...


Exigente, o inglês Alex Vines, diretor há quase vinte anos do programa sobre África do Instituto Real de Relações Internacionais britânico (Chatham House), gostaria que as mudanças fossem ainda mais rápidas. Para Vines, que estuda Angola desde 1982, "apesar da lentidão Angola é já diferente do que foi durante a era de Eduardo dos Santos". O especialista britânico justifica a necessidade da pressa, porque para ele o presidente João Lourenço tem uma curta janela de oportunidade para impor as reformas.


Os desafios da economia

Se é possível detetar "um novo ciclo nas várias esferas da vida nacional" angolana, como pensa Paulo Faria, esta assume particular relevância na esfera económica, sustenta Alex Vines. "A reforma da Sonangol e a reestruturação da indústria do petróleo e do gás são fundamentais", assim como "as mudanças previsíveis no setor mineiro", diz o investigador da Chatham House, para mudar o paradigma económico. Se isto não suceder, a economia angolana continuará na "extrema dependência" daqueles setores, também acentua Paulo Faria, autor de O Público e o Político em Angola (Ver vídeo).

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Outros sinais de mudança são visíveis. O cientista político angolano dá o exemplo da "captura de bens em posse de antigos gestores" e "recuperação de ativos financeiros identificados como originários dos fundos públicos", desde logo do Fundo Soberano. Paulo Faria nota o relevo dado ao "aumento da produção interna" e a "anulação do concurso público para uma quarta operadora móvel por não terem sido observados os princípios da transparência e justa concorrência".

Mas há "sérias limitações", lembra David Matsinhe. "Tudo está concentrado em Luanda". A capital angolana funciona "como uma bolha, uma ilha. Tudo se passa apenas em Luanda", constata o investigador moçambicano. "O resto do país não sente essas transformações aplicadas por João Lourenço". O resto de Angola "ainda continua na mesma", insiste Matsinhe, nomeadamente em matérias de direitos económicos e sociais.

Desemprego e tensão social

Com uma taxa de desemprego acima dos 28%, segundo os números mais recentes, sucedem-se os protestos pela criação de postos de trabalho e contra a inércia das autoridades, ainda que, em abril de 2018, João Lourenço tenha aprovado o Plano de Ação para Promoção da Empregabilidade (PAPE) com o objetivo responder aos problemas nesta área.

As sucessivas marchas contra o desemprego, das quais as mais recentes sucederam a 24 de agosto de 2019 em Luanda e noutras cidades angolanas revelam, para o investigador da AI, a dimensão das "tensões económicas e sociais" neste país ("É normal que haja essas reclamações. Nem tudo está feito. O que não se fez em 44 anos, ninguém pode esperar que se faça em dois anos", referiu o presidente à TPA.).

Já para Paulo Faria, Angola "é um país doente em quase todas as áreas nevrálgicas - saúde, economia, educação" e "desemprego elevado que atinge os jovens de forma muito significativa". Um diagnóstico subscrito também pelo responsável para África da Chatham House.

Segundo Alex Vines - para quem "João Lourenço herdou uma economia em profunda crise e que vive um quarto ano de recessão consecutiva", prevendo-se que em 2019 seja de 1% e só volte a crescer em 2020 - as reformas económicas são fundamentais assim como a aposta no setor privado ("Queremos dar mais espaço ao setor privado em detrimento do setor público", disse João Lourenço à TPA).

O investigador britânico que a partir do próximo ano as mudanças comecem a produzir resultados.

Entretanto, o Orçamento de Estado para o corrente ano mostra um real empenho para com as "áreas sociais", realça o mesmo investigador. Noutro plano, o responsável da Chatham House acredita que os critérios de escolha de "jovens governantes de perfil tecnocrático" que têm vindo a ser seguidos ponham ênfase na obtenção de resultados, indispensáveis para alterar a perceção dos angolanos face às capacidades de resposta do executivo. Este é "um presidente muito atento ao que pensa a classe média angolana", sublinha o britânico.

O futuro do MPLA

O programa de reformas de João Lourenço "pouco tem a ver com o enraizamento da democracia ou o pluralismo político. A prioridade é estimular o crescimento económico, a criação de emprego e a qualidade da ação governativa", afirma Alex Vines. Para o analista da Chatham House, o desígnio estratégico é reforçar e "rejuvenescer o MPLA, tendo em vista as eleições municipais de 2020 ou 2021 e as nacionais de 2022".

"A estratégia de João Lourenço é a de alcançar uma clara maioria para o MPLA nas eleições de 2022" ao mesmo tempo que está, desde já, a preparar "uma nova geração que lhe possa suceder" para quando o atual presidente cumprir o segundo e último mandato, antevê o investigador britânico. A atual Constituição angolana interdita um terceiro mandato presidencial consecutivo.

Um dos principais desafios para o líder angolano é, de facto, a reinvenção do MPLA como partido de poder. "Trata-se da questão da própria sobrevivência histórica" desta formação e da "reconfiguração da sua identidade político-partidária", pensa Paulo Faria. Este investigador acredita que se o MPLA recusar a dinâmica de mudança acabará vítima de "esclerose e opacidade". E dá o exemplo de outros movimentos políticos em África, "da ZANU-PF, no Zimbabwe, ao ANC, na África do Sul, e à Frelimo, em Moçambique", que, não conseguindo concretizar processos de reformas internos, estão a viver aquilo que rotula como uma "batalha de sobrevivência".

Estes partidos não conseguiram desvincular-se de uma lógica de "sistemas neopatrimoniais que se vai tornando, gradualmente, mais obsoleto" e, assim comprometem a sua legitimidade ao optarem por preservar aquilo que o autor angolano define como "a economia dos afetos" ou, por outras palavras, a prática do clientelismo.

Um modelo que está em crise "pela emergência de um novo público", com novas e exigentes reivindicações "em termos de padrões de boa governação, modernização do aparelho de Estado, eficiência e qualidade dos serviços públicos", adverte Paulo Faria. Se o MPLA não estiver atento a esta tendência, está a minar a sua subsistência como força política hegemónica na sociedade angolana. Esta, como a generalidade das sociedades africanas, devido à crescente massa crítica das populações com menos de 35 anos, está a mudar.

No entanto, o partido no poder parece consciente do facto. A passagem do "Comité Central do MPLA de 363 para 497 membros no VII Congresso Extraordinário [junho de 2019] sugere que o consenso é uma questão geracional em construção, na medida em que 134 jovens elevados a este órgão" estariam mais alinhados com o projeto de João Lourenço, "do que com os guardiões do ancien régime", argumenta o autor de O Público e o Político em Angola.


Aspeto também destacado pelo investigador da Chatham House. Para Alex Vines, a renovação aplicada ao Comité Central e ao Bureau Político do MPLA antecipa o "pós-João Lourenço em 2027. Mais de 61% do novo ComitéCentral tem menos de 45 anos e 15% são mulheres". E dos novos membros nenhum conhecido por especiais ligações ao círculo de Eduardo dos Santos.

O Fundo Soberano e Filomeno dos Santos

Os acontecimentos em torno do Fundo Soberano e a prisão de Filomeno dos Santos revelam importante "simbolismo no combate à corrupção", algo que o "poder político quer transmitir sem margem para dúvida", realça David Matsinhe ("O problema não é o facto de haver corrupção (...). A diferença é quando há corrupção e impunidade (...). Quando há corrupção e não há impunidade (...), os órgãos de justiça vão atrás dos casos conhecidos, aí a perceção é outra. O que é preciso é que não haja impunidade", explicou João Lourenço nas suas declarações à TPA).

A dimensão simbólica é também destacada por Alex Vines. João Lourenço "não tinha escolha se não enfrentar a família de Eduardo dos Santos pelo seu peso e influência na economia angolana" e pelos anticorpos "generalizados" que esta situação gerou em Angola. Além de necessárias, as medidas apontadas a enfraquecer a influência da família Eduardo dos Santos são "também populares", diz o responsável da Chatham House.

Para Paulo Faria, o julgamento de Filomeno dos Santos, que já teve data marcada mas foi adiado nesta semana, é "um indicador bastante claro de que as mudanças em curso são reais e não lineares". Para o cientista político angolano este é um exemplo do "compromisso de João Lourenço no combate à impunidade".

O investigador da AI deixa uma precaução importante: independentemente da imagem que se quer construir, para o interior e para o exterior, "não importa quem é o réu, os seus direitos devem ser respeitados e deve ter acesso a um julgamento justo".


"Os amigos querem-se juntos". Com esta frase proferida no início da sua visita a Portugal, em novembro de 2018, João Lourenço sinalizava a importância das relações bilaterais luso-angolanas.

A deslocação do dirigente angolano assinalou a normalização das relações entre Lisboa e Luanda perturbadas, em grande medida, pelo caso do ex-vice-presidente angolano Manuel Vicente, e pelas dívidas de Angola a empresas portuguesas.

No balanço da visita, João Lourenço disse que as relações Portugal-Angola estão agora "no pico da montanha", algo que se podia antecipar já desde a deslocação do primeiro-ministro português António Costa a Luanda, em setembro de 2018. Na ocasião, Costa anunciou o aumento das linhas de crédito para as empresas portuguesas que exportam para Angola, que passou de mil milhões de euros para 1,5 mil milhões de euros.

Acordos de cooperação estratégica bilateral foram assinados nas áreas da defesa, colaboração na área da segurança e das finanças.

Detalhe da importância concedida por João Lourenço ao lugar de Portugal no relacionamento de Luanda com o mundo, como porta de entrada de Angola na Europa e como parceiro na CPLP, o presidente angolano utilizou também a sua passagem por Lisboa para deixar recados para o interior do seu país. Dois exemplos: a referência às "marimbondos", as vespas da corrupção, que não deixariam de ser combatidas; e antecipou claramente que iria procurar um segundo mandato.

Os acordos assinados durante a deslocação de João Lourenço a Portugal e a atmosfera vivida durante a viagem do seu homólogo português a Angola testemunham que esta é uma relação estratégica para ambos os países.

"Ao contrário de Eduardo dos Santos, João Lourenço é uma pessoa bastante viajada. E se as suas prioridades são a reforma do MPLA e a reconstrução da economia angolana, Luanda tem mostrado capacidade de liderança" no plano regional, designadamente na crise que envolve os países dos Grandes Lagos". A análise do investigador da Chatham House põe em destaque um dos aspetos que têm caracterizado a presidência de João Lourenço: um papel mais afirmativo nas questões regionais e de maior afirmação internacional.

Uma perspetiva também sustentada por Paulo Faria, que destaca a vertente diplomática, "a via do diálogo direto" e um "exemplarismo construtivo na região da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC, na sigla em inglês), na Conferência Internacional sobre a Região dos Grandes Lagos e além continente". Dois exemplos concretos para o autor de O Público e o Político em Angola: a assinatura do memorando de entendimento, em agosto último, em Luanda, entre os presidentes do Uganda, Yoweri Museveni, e do Ruanda, Paul Kagame, e o Fórum Pan-Africano para a Cultura da Paz. Ou, anteriormente, em todo o processo que culminou na renúncia de Joseph Kabila em se apresentar às presidenciais da RD Congo e posterior eleição de Félix Tshisekedi, no início de 2019. De realçar que o protagonismo de Angola na diplomacia dos Grandes Lagos, região com a qual até nem tem fronteira, foi pedida pelo presidente Emmanuel Macron, apesar de não ser um país francófono.

Com "a pouco referida reforma geral das forças de segurança", que visa a modernização daquelas "que são uma das maiores forças armadas de África", recorda o responsável da Chatham House, Angola estará em vias de se dotar, no plano militar, de um outro instrumento de afirmação regional. Além, evidentemente, do raro exemplo dado por Luanda quando acabou uma guerra civil, trágica e de décadas, enquadrando os rebeldes militares no exército nacional e integrando a UNITA na vida parlamentar.

Alex Vines recorda ainda que foi aprovado, em julho de 2018, "um conjunto de leis visando a reestruturação das forças armadas, a sua profissionalização" e, dado importante, "a despolitização de muitos dos cargos".

Subjacente a este processo, está uma outra vertente dos desígnios externos de Angola, aliás já expressamente mencionados por João Lourenço: o envolvimento do seu país em missões de paz internacionais.

Um investigador da história militar de Angola, Luís Brás Bernardino, citado a 16 de setembro passado pela Lusa, identifica aquele "como o grande objetivo. É ter Angola a contribuir para operações de paz no âmbito das Nações". Para o autor de As Forças Armadas Angolanas - Contributos para a Edificação do Estado, só "falta vontade política" ou o momento certo para a concretizar. Nessa altura, "as forças armadas angolanas sobem para um outro patamar", defende Brás Bernadino, e com elas, de certa forma, também a dimensão da influência externa do país.