Lisboa - Não deixa de ser uma síndrome perigosa atribuir-se a um antigo ditador responsável por acções repressivas contra o seu próprio povo o título de uma cátedra.

Fonte: Publico

É chocante o que se observa em Portugal por parte de uma Universidade pública como a do Porto que deu acolhimento numa das suas escolas a estudos dedicados a Agostinho Neto, o primeiro presidente de Angola.


Desta consagração ao patrono daquele curso o que se pode intuir é que as janelas do mundo exterior permanecem fechadas para os órgãos superiores de direcção da Universidade. Nada relacionado com a grande tragédia do 27 de Maio de 1977 em Angola penetrou nos claustros, nas bibliotecas e nos espaços de debate daquela instituição de ensino. Assinou-se um protocolo que formalizou a criação da cátedra Agostinho Neto no dia 10 de Setembro sem que do lado dos responsáveis académicos houvesse o cuidado de saber quem foi realmente Agostinho Neto. Apenas se ouviram vozes de aplauso à memória do político e poeta angolano na cerimónia que selou aquele acontecimento.


Não é a primeira vez que Neto recebe em Portugal títulos de sagração, sobretudo pela sua envergadura política. Ainda recentemente o presidente da Assembleia da República se lhe referiu em tom exaltante, fazendo dele o epítome do que há de mais grandioso na galeria das personalidades políticas do mundo de língua portuguesa. Agora, na esteira destes ritos de veneração, a Universidade do Porto alinha pelo mesmo diapasão e derruba um imperativo ético que seria abrir uma janela para o mundo e apurar, com a força do rigor académico, se Agostinho Neto foi ou não o grande carrasco do seu povo, conforme testemunhos abundantes que têm sido publicados nos últimos anos.

Impõe-se, na verdade, esta busca da verdade dos factos, tanto mais necessária se se tiver em conta as consequências nada lisonjeiras que esta cátedra pode acarretar para o prestígio da Universidade. Pelo que se deduz, a Universidade não teve a preocupação de observar as mais precípuas normas de trabalho investigativo. Estranhamente preferiu compactuar com os silêncios e as narrativas distorcidas e apologéticas da Fundação Agostinho Neto e do próprio governo e partido do MPLA que têm colocado Neto num pedestal, emprestando à sua figura uma aura mitológica de “grande líder, “humanista”, “democrata” e “intelectual de largos pergaminhos”. Um estranho proceder incompatível com os títulos de uma agremiação de ensino superior.

Como é sabido de todos, as instâncias oficiais em Angola negam-se até ao presente a admitir o papel central de Agostinho Neto no linchamento de milhares de pessoas (a maioria das quais da própria militância do MPLA) no período compreendido entre 1977 e 1979. Poucos países no mundo, excepto em bárbaros regimes de ditadura, conheceram uma face tão horrenda como a que se viveu naquela época: com os seus dedos de ferro e a sua fétida violência institucional, Agostinho Neto empurrou Angola para as fronteiras da irracionalidade, fez do país uma imensa geografia carcerária, um imenso campo de defuntos.


O que se relata aqui não é produto de um sonho fantástico, é real. A crueldade, as torturas, os fuzilamentos em massa assemelharam-se, para quem os presenciou, a um baile de demónios enlouquecidos. Neto, no comando do Estado e do MPLA, jamais se preocupou com o inferno que se alastrava no interior das prisões e dos campos de concentração. Os seus “anjos da morte”, ocultos nas cloacas da sociedade, faziam chafurdar as suas vítimas nos pântanos de sangue dos calabouços. Por trás da vaga de chacinas do 27 de Maio estiveram os serviços secretos do regime, totalmente subordinados a Neto. Sem piedade, o ditador derramou o sangue de milhares de angolanos num desfecho trágico em que sequer se pouparam crianças e adolescentes. Neto preferiu resolver à bala e por massacres generalizados as rixas e os enfrentamentos que dividiam os altos escalões de liderança do MPLA.


Foi tal a magnitude dessa explosão de violência do Estado que é justo dizer que Neto e o seu despótico regime merecem um lugar cativo na “História Universal da Infâmia”. Enfermo de uma visão rígida e antidemocrática do mundo, Neto instituiu um estilo de governo baseado no medo e no terror, criou uma sociedade de delatores e mergulhou o país num mar de agonias e sofrimentos. A justiça passou a ser feita pelos órgãos policiais e militares que sequestravam, torturavam e matavam à revelia das instâncias judiciais. Se o pó mágico da lucidez nunca caiu sobre os olhos de Neto, a sua presidência (desde os tempos da luta armada de libertação nacional) foi atravessada por furacões de discórdias e por um caudal de violências permanentes. Aos críticos e dissidentes fazia-os “beber o cálice da amargura até às fezes”, quando não os assassinava.

Em breves pinceladas, este é o passado netista, o qual, após tantas décadas, ainda não morreu e volta todos os dias para permear os actos do MPLA e dos governos autocratas que lhe sucederam. É uma espécie de 25.ª Hora no decurso da qual toda a tentativa de renovação democrática parece fadada ao insucesso. Os gérmenes do ditatorialismo de Neto permanecem bem vivos até à actualidade na medida em que a sociedade ainda não se libertou do medo que a asfixia como um garrote. Ainda não conseguiu exorcizar o fantasma do netismo. Ele continua a ser o ogro do destino de milhares de pessoas desaparecidas no holocausto do 27 de Maio. À sombra de Neto, o poder político em Angola persiste em mascarar a História e anestesiar todo o senso crítico, ao mesmo tempo que esmalta de grandeza a imagem do seu mito.

E agora duas perguntas cruciais: será que a Universidade do Porto e a sua Faculdade de Letras ignoram os crimes que compõem a arquitectura sanguinolenta da governação de Agostinho Neto? Será que ignoram que Neto encabeçou uma horda de torturadores e responsáveis por crimes contra a humanidade? Só a Universidade poderá responder a este quesito. De todos os modos, não deixa de ser uma síndrome perigosa atribuir-se a um antigo ditador responsável por acções repressivas contra o seu próprio povo o título de uma cátedra. Milhares de peitos angolanos suportam o trauma desse genocídio e o trauma das mortes insepultas dos seus parentes.

Espera-se, portanto, que a Universidade não sofra de amnésia nem faça o papel de bela adormecida, como no clássico conto dos irmãos Grimm, e se refugie no bosque cerrado de ignorância relativamente aos problemas do mundo exterior. Se for sua disposição acautelar o respeito que a sociedade portuguesa e os angolanos lhe devem, cabe à Universidade ir ao encontro da História e forjar alternativas para desagravar a memória das vítimas do netismo, quer ajudando a tirá-las das catacumbas do silêncio e do esquecimento, quer ajudando a trazer as suas silhuetas para o presente, para os espaços iluminados de identificação, a fim de que possam voltar a ter um rosto. Ao contrário, se optar pela contramão deste caminho, levando adiante a entronização de Neto, a Universidade nada mais fará senão aumentar a brecha de invisibilidade das vítimas do tirano e, desde logo, se colocará numa posição ingrata. Arrostará as consequências funestas do seu acto de cumplicidade, cujos custos serão de ordem moral.

P.S.: – Faz três semanas saí ilibado de um processo judicial que me foi movido em Lisboa pela Fundação Agostinho Neto que me acusou de ofensa à memória do primeiro presidente de Angola pela minha obra Agostinho Neto, o Perfil de um Ditador. A História do MPLA em Carne Viva (2 vols.). Agora, confrontado com este escandaloso caso da cátedra, estou consciente do risco de voltar a ser incriminado. Mas como diria o escritor italiano Erri de Luca, não posso deixar de “exercer o meu direito à palavra contrária. Se a minha opinião é um delito, não vou deixar de o cometer”.

Historiador angolano