Luanda - Em 1999, ganhei um prémio por escritos de viagens no Reino Unido. Escrevi dois romances, um dos quais continua a ser considerado uma obra de muito valor. Ontem, estive no Palácio onde o Presidente da República, João Gonçalves, condecorou-me com a Ordem de Mérito Civil de Primeiro Grau, uma honra que tinha também sido concedida ao meu falecido irmão Jaka Jamba.

Fonte: JA

Depois de ter escrito o meu segundo romance pensava que iria continuar como romancista — isto é que tinha prestígio, que resultava em grandes prémios e reconhecimento. Escrevi um outro romance (sobre Africanos em Londres), mas sentia que havia uma certa contrafacção, uma ausência daquela verdade profunda que se encontra em ficção ou literatura de qualidade.


Toda minha vida quis ter um diálogo com o país que me viu nascer, Angola. Se eu tivesse nascido num outro país — Zâmbia, Reino Unido ou Estados Unidos — talvez não fosse sentir aquele desejo ardente, quase insuperável, de seguir de perto os contornos do país, Angola, que vi a nascer. Nasci em 1966. Quando comecei a tomar consciência das coisas, com os meus seis anos, o país estava na turbulência da resistência anti-colonial. Eu ouvia os meus mais velhos, cheios de medo, a falar da cadeia de São Nicolau. Lembro-me claramente, em casa da Mana Laurinda Mussili, no bairro Bom Pastor, do regresso do Pastor Mussili de São Nicolau. Se a cadeia era para criminosos, eu interroguei-me, na altura, porque razão é que tinham metido lá o nosso querido Tio Mussili. Lá em casa da Mana Laurinda, todos oramos para agradecer pelo regresso com vida do Tio Mussili.


Eu lembro-me claramente do dia em que a polícia colonial veio e levou o nosso irmão mais velho, Augusto Mateus, para uma cadeia em Luanda, de onde só saiu depois do 25 de Abril. Lembro-me, claramente, do dia em que a polícia colonial invadiu a nossa casa e foi logo para o quarto onde eu e o meu irmão mais velho Jorge dormíamos. Lá, havia algo muito sagrado — os livros do Mano Jaka, que na altura tinha fugido da tropa portuguesa e se tinha refugiado na Suíça. O Mano Jaka tinha muitos livros de autores russos: Dostoyevsky, Tolstoy, Checkov, assim como clássicos franceses e ingleses. Lembro-me que havia, também, obras do escritor brasileiro Jorge Amado. Uma biblioteca no Bom Pastor, no bairro dos pretos, representava uma grande ameaça para a polícia colonial; os polícias brancos, que suspeito também não sabiam ler bem, temiam aquelas obras do meu Mano. Os livros continham narrativas — contidas em visões do mundo. Noto que foi este o mundo que plantou certas obsessões na minha vida.


Vivi na Inglaterra e depois nos Estados Unidos. Tive a oportunidade de viajar para várias partes do mundo — mas sempre tentando fazer um tremendo esforço para não me desfazer de Angola. É assim que, nos anos noventa, quando eu já trabalhava para vários jornais na Grã Bretanha, conheci alguém que vibrava também com um amor intenso por Angola. O Rafael Marques estava em Londres para aprender inglês. Fiquei muito impressionado pela rapidez com que ele foi dominando a língua de Shakespeare. Eu gostava muito do Rafael porque ele era muito sério. Na altura, ele tinha tirado férias do “Jornal de Angola.” Rafael Marques contava-me histórias de Malanje; das absurdidades de certos hábitos da elite luandense; da sua querida mãe. Em Londres, o Rafael Marques adorava os longuíssimos passeios a pé em que não parávamos de trocar ideias.


Rafael Marques não escondia o seu desdém por muitos aspectos da elite política angolana, sobretudo a sua decadência e falta de valores. Rafael Marques começou a escrever poesia. Ele não era como eu que, embora desiludido com o culto de personalidade e messianismo que imperava na UNITA, ainda me considerava membro do partido. Para o Rafael, o que contava era o país Angola e nada mais.


A um certo momento, o Rafael decidiu regressar a Angola. Nunca me vou esquecer daquela noite em Streatham, Londres, em que eu insisti que o Rafael deveria ficar lá, pedir asilo político, e resistir de longe. O Rafael regressou e logo foi preso. De Londres, organizamos uma campanha — que incluiu o moçambicano Manuel Araújo — para a liberdade do Rafael. Surgiram várias situações em que de longe ajudei nas campanhas para libertar indivíduos que tinham sido encarcerados por razões políticas. O Rafael começou a viajar pelo mundo na sua campanha para os direitos humanos em Angola. Uma vez, até nos encontramos, por acaso, na Noruega; eu estava a andar e vi uma cara negra numa multidão de brancos — era o Rafael. Demos um longo passeio, falando sempre de Angola.


Ontem, lá estávamos no Palácio, na mesma fila, à espera das nossas condecorações. Depois da cerimónia, andamos a pé por Luanda com as nossas medalhas no peito e diplomas. Tínhamos muito orgulho de andar pelo nosso país e termos sido honrados por um Presidente, João Lourenço, de todos nós. A um certo momento, o Rafael olhou para mim e disse em inglês, “Now, this country is for all of us” ou “Este país é para todos nós!”