Luanda - Cerca de três mil e 307 casos de violência doméstica foram registados pela Direcção Nacional dos Direitos da Mulher, Igualdade e Equidade no Género, de Janeiro a Setembro deste ano, número que as autoridades nacionais consideram preocupante. Para falar sobre o tratamento dado a esses casos, a directora nacional dos Direitos da Mulher, Igualdade e Equidade no Género, Júlia Quitocua, falou no quadro do “Dia Internacional de Combate à Violência contra a Mulher” (25 de Novembro).

Fonte: Angop
Nesse diálogo, a responsável fala das políticas em curso para travar a onda de violência doméstica e revela que, em Angola, o feminicídio está a atingir níveis assustadores.

Siga a íntegra da entrevista:

Senhora directora, muitos são os casos de violência que chegam, diariamente, ao conhecimento das autoridades. Hoje já há mais denúncias vindas das próprias vítimas, dos vizinhos e de outras pessoas próximas?
Sim, principalmente familiares. De Janeiro a Setembro deste ano, registámos, em todo o país, 3.307 casos. Destes, 702 foram apresentados por homens.

Não era muito comum, num passado recente, os homens apresentarem queixas. Afinal, que tipo de depoimentos mais apresentam às autoridades?
Violência psicológica e verbal. As mulheres podem não agredir fisicamente, mas fazem-no de forma verbal. Os homens conhecem os seus direitos e percebem que a mulher os desrespeita perante os filhos, por isso gritam ou abandonam as famílias. São situações que criam conflitos e acabam, muitas vezes, noutro tipo de violência.
Dou como exemplo, voltando à violência física e ao feminicídio, o caso das mulheres que chegam a ser assassinadas. São situações de violência que começaram com palavrões. A mulher, quando apresenta uma queixa, geralmente sofre violência no mínimo sete vezes e só ao fim deste período apresenta queixa, porque fica a pensar que vai conseguir mudar o parceiro e tolera muita coisa, até chegar à morte. Tudo começa no namoro, com situações de intimidação, para deixar de fazer certas coisas de que ele ou ela não gosta, tais como ir à casa da mãe, falar com amigos ou frequentar uma igreja.

Voltando à estatística…
Se fizermos uma comparação dos últimos três anos, notaremos que há uma redução significativa em termos de apresentação de queixas. Mesmo quando havia um número elevado, isso não significava que os casos de violência haviam aumentado, mas houve, sim, aumento das denúncias. Quando se faz a triagem da vítima, nunca recebemos uma resposta de que esta é a primeira vez.
Geralmente, são casos que vêm de longo tempo. Se compararmos, em 2017 registámos 17 mil 230 casos e, em 2018, mil e 81. Isso deveu-se ao défice de dados das províncias que não recebemos. Só a título de exemplo, o município de Viana, em Luanda, teve mais de 600 ocorrências.
Por outro lado, tem a ver com a fusão dos dois ministérios. Há pessoas que entenderam que os centros de aconselhamento deixaram de existir e não procuraram pelos seus serviços, passando a sofrer caladas. Actualmente, aproveitamos esta oportunidade para dizer que os centros de aconselhamento continuam a funcionar normalmente. A nível nacional, houve apenas a junção. Os técnicos continuam a trabalhar nos centros e nas salas de aconselhamento.

Falou, há pouco, dos centros de aconselhamento. Na prática, não se confundem com os da OMA, organização feminina do MPLA?
Não. Os centros são afectos aos Gabinetes Provinciais da Acção Social, Família e Promoção da Mulher, portanto não se confundem com os da OMA.

Qual é o ponto de situação dos centros de abrigo das vítimas de violência?
Continua a ser uma preocupação do Executivo a criação destes centros de abrigo.

Mas já foram dados passos concretos nessa direcção?
Existem projectos e ideias, mas qualquer um requer investimentos, e, actualmente, não estamos numa fase fácil para realizá-los. É uma preocupação que temos, até porque é útil existirem estes espaços de protecção, pois fazem parte de uma das medidas do Executivo, afastando as vítimas dos agressores. Ainda é preocupação do sector a criação destes espaços. Infelizmente, não estamos numa boa fase, financeiramente, para a construção ou arrendamento de espaço para as vítimas longe dos agressores. Contudo, a falta destes espaços não pode inibir as pessoas de continuarem a denunciar os abusos. Os amigos e parentes podem acolher estas pessoas, e a queixa é um bom mecanismo para afastar o agressor, uma vez que permite que a Polícia lhe estabeleça limites.
Temos de estudar o que leva os angolanos a cometerem tais actos e não serem só atribuídos à crise. Temos um conjunto de situações que nos levam a estar constantemente irritados e impacientes. Há pessoas que querem ter determinados meios sem esforço e, quando não conseguem atingir o objectivo, ficam com algum ciúme e inveja. Quero, com isso, dizer que mentalmente as pessoas não estão bem, porque uma pessoa sã, em termos mentais, não faz mal ao outro. Quando, de forma propositada, maltrata, pisa e abusa, estamos a falar de inveja e egoísmo, o que é mau.

Que tipo de casos mais recebem nos centros?
Todo o tipo de casos. Atendemos a muitos casos de violência física, mas atendemos também a muitos de abandono familiar, que é uma tipologia dentro da violência doméstica. O abandono familiar apresenta-se nos nossos centros com níveis extremamente altos.
Diariamente, recebemos muitos casos, principalmente no que diz respeito à falta de prestação de alimentos e à de registo. Os parceiros pensam que se separaram da mãe, do filho (…). Não deve ser assim, visto que o assunto é com a mãe e não pode afectar a criança.
A par do sustento, que é o “boom” nos nossos centros, temos a falta de afectividade entre pai e filho. A Lei pode obrigar o pai a dar prestação de alimentos, mas, infelizmente, não temos nenhuma punição para os pais que não convivem com os filhos.

Como estamos em relação ao feminicídio, de forma mais concreta?
Está, realmente, a atingir níveis assustadores. 2019 é o ano com o número mais elevado de mortes de mulheres. Em Setembro, registámos 86 casos. E muitas destas mulheres mortas não são desinformadas. Já vinham sofrendo há bastante.

O que pode estar na base destes casos?
Provavelmente a falta de denúncias. Algumas delas até dizem basta e separam-se, como foi o caso da agente da Polícia morta no Kilamba pelo companheiro, também policial. O problema não está só na Lei, mas também na consciência e na falta de comprometimento entre as pessoas. As pessoas devem compreender que, dentro de uma relação, ninguém é posse de ninguém e ninguém casa para se separar no dia seguinte. Só em Luanda, mais de 10 mulheres, não desinformadas, foram mortas pelos companheiros. A questão é consciencialização e educação. Saber que filhos são estes que se casam e de que famílias provêm. As mulheres devem saber também que há comportamentos abusivos que os companheiros apresentam no namoro e, ainda assim, há pessoas que ignoram estes sinais, como os ciúmes por excesso, que não são saudáveis para ninguém.
As ofensas, a forma agressiva e a imposição de ideias são um perigo. A esposa separa e o esposo vai atrás, com o pressuposto de que “não ficas comigo, não ficas com mais ninguém”, e mata. Recentemente, tivemos uma funcionária, a nível internacional, que trabalhava connosco nestas lides de direitos e que foi morta pelo companheiro. Estamos a falar de um fenómeno global.

Mas, em muitos casos, as vítimas reclamam de atendimento nas esquadras.
Recebemos algumas reclamações. Muitas vezes, alguns polícias aconselham as mulheres a não apresentarem queixa, fazendo-as passar como se fossem as principais culpadas. Estamos a trabalhar com os parceiros, até porque, com a aprovação da Lei contra a Violência Doméstica, foi criada uma Comissão Multissectorial.

Qual é a missão desta comissão?
Esta comissão é coordenada pelo Ministério da Acção Social, Família e Promoção da Mulher e integra o Ministério do Interior. Durante o ano, promovemos acções de um refrescamento, dirigidas aos agentes da Polícia, para melhor lidar com as vítimas de violência. Realizámos ainda acções sobre a violência no local de trabalho e as suas consequências. Em 2018, focámos a nossa acção no combate ao assédio sexual.

Quando são mal atendidas nas esquadras, qual é a alternativa?
O Serviço de Investigação Criminal (SIC) tem um departamento específico de atendimento às vítimas de violência. O problema nas esquadras é a falta de pessoas especializadas. Infelizmente, não temos, no país, esquadras especializadas para o atendimento às vítimas de violência, como no Brasil. No entanto, quando são mal atendidas ou se sentem que não foram bem atendidas e recorrem a nós, são encaminhadas directamente para o SIC, se for caso de agressão.
Os casos de agressão são atendidos com alguma celeridade, dado que são visíveis. Pior é quando se trata de violência psicológica, pois não é visível. Só conseguimos notar devido aos sinais que a pessoa apresenta, mas leva tempo. Já o físico é visível, e estes casos são atendidos.

Considera oportuna a criação de esquadras especializadas?
É oportuno. Não só esquadras específicas, mas também gabinetes especializados nas instituições hospitalares.

Porquê?
Porque, se uma vítima, ao invés de ir à esquadra, por estar gravemente ferida, vai ao hospital, os técnicos têm que possuir a perspicácia de descobrir que se trata de um caso de violência doméstica e daí chamar pela Polícia, a fim de registar o caso e ir atrás do agressor.
Há uns que têm essa perspicácia e conseguem detectar alguma coisa, como aconteceu com uma menina de 21 anos, cujo técnico conseguiu descobrir que o namorado era o agressor e chamou pela Polícia. Mas, infelizmente, nem todos os profissionais têm esta perspicácia, porque velam mais pelo tratamento. Há necessidade de adequarmos estes profissionais nos hospitais e capacitá-los, no sentido de identificar estes casos e trabalhar com a Polícia. O MASFAMU, falando dos centros de aconselhamento, não prende, não penaliza ou não vai à conta do pai para retirar a prestação alimentar a favor da mãe. Este trabalho é de outras instituições.
Somos a extensão das famílias na conciliação dos casais e famílias em conflito. É necessário que haja uma mão mais pesada, por exemplo da Polícia, que já tem outro poder que pode prender ou ir buscar. É necessário que os agentes da Polícia e não só estejam abalizados com a Lei e prontos para receber as vítimas e tratá-las de forma humana, respeitando-as.
Sabemos, também, que alguns destes agentes não atendem às vítimas da melhor maneira, visto que muitos deles também são agressores e se identificam com o agressor. Temos muitas situações envolvendo polícias, principalmente nos casos de prestação de alimentos.

Têm feed-back dos casos que foram a julgamento?
Não recebemos muita informação relativamente aos casos que chegaram ao tribunal. Temos o controlo das situações que saem dos nossos centros e encaminhamos, aí vamos recebendo, mas de outros parceiros não.

A Lei contra a Violência Doméstica ainda se ajusta ao actual momento?
Ajusta-se em determinados pontos. A penalização dela é de, no mínimo, dois anos e, no máximo, oito. A Lei, por si só, pode não ser um factor inibidor da violência. Penso que, a par da Lei, deve haver um trabalho de consciencialização.
Mas estamos a realizar, com a Assembleia Nacional, desde Maio de 2017, um trabalho de consulta pública sobre a Lei contra a Violência Doméstica, para aferir se estava a cumprir com os pressupostos para os quais foi criada. Ela foi aprovada há sete anos, e o levantamento público serve para saber e recolher contribuições.
As pessoas sabem, perfeitamente, que a violência é um crime, e as vítimas também sabem da existência da Lei. Talvez o aumento da moldura penal fosse ajudar as pessoas a afastar-se um pouco, mas, para isso, era necessário que houvesse sentença não só de casos que chegam à morte, do meu ponto de vista, porque, como conselheira, nunca vi um pai a ser condenado por não dar pensão alimentar ao filho. Vejo casos a serem julgados quando chegam ao homicídio. Então, é necessário que, nos casos intermédios, como a falta de registo, as pessoas sejam, de facto, processadas e que sintam o peso da Lei. A moldura penal pode ajudar a abrandar algumas situações. É fundamental que haja sensibilização da sociedade, consciencialização, comprometimentos dos pais para com os filhos na educação, na transmissão de valores positivos, universalmente aceites. A moldura superior é de 8 anos. No Brasil, a falta de prestação alimentar dá cadeia e aqui não temos isso, porque a Lei não prevê.

Como avalia então esta Lei?
Ela tem muitos aspectos positivos e permitiu muitas pessoas que viviam sobre violência e oprimidas libertarem-se, ou seja, abriu portas para elas.

Que lacunas podem ser encontradas nesta Lei?
O Código de Família orienta e aconselha que os pais devem conviver com os filhos, mas, se isso não acontece, eles não são presos. Então, neste aspecto, a Lei é ambígua.

Há também uma tendência de algumas famílias para interferir…
A interferência das famílias, muitas vezes, prejudica. O que notamos é que determinadas mulheres buscam apoio nos pais, mas são os próprios pais que aconselham as filhas a perdoarem, com o argumento de que vai mudar e, no final, os resultados costumam ser catastróficos, acabam em mortes.
É claro que as famílias não querem que os filhos se casem para se separar, mas devem primar pela segurança e pelo bem-estar daquela pessoa que está a ser vítima de violência.
Existem ainda situações em que os familiares do agressor obrigam a nora a retirar a queixa. A interferência familiar é complexa e é boa até certo ponto, quando vem para apaziguar. Tem de haver uma repreensão para o agressor não voltar a cometer.

Existem casos em que as vítimas são conhecedoras da Lei…
Temos muitos casos. Muitos deles acontecem porque as questões culturais influenciam muito o comportamento do ser humano. Uma criança que cresce numa família onde a violência é o pão de cada dia não será diferente quando crescer, pensando ser normal. A consciencialização é um produto que demora a dar resultados, porque é educação. Então, não é em sete anos que vamos mudar as pessoas. É um processo. Vamos sensibilizar, por ser ressocialização das famílias, e este processo encontra resistência.

Que apelo deixa a quem é vítima de violência?
Qualquer mulher que vive uma situação de violência deve procurar sempre pelo apoio das instituições que possam ajudar, salas de aconselhamento, gabinetes da Polícia, órgãos da comunicação social, entre outros. Aqui pedimos que as mulheres não sofram caladas, não se permitam viver em relações abusivas (marido e mulher, mãe e filha, colegas e chefes no local de trabalho). Uma pessoa violada no local de trabalho tem consequências também para a família, dado que baixa o seu rendimento na organização e atrapalha o afecto com a família. Apelamos ao diálogo, que é a chave para tudo. Devemos ser tolerantes e perseverantes na nossa decisão, demonstrar o nosso desagrado de forma sábia. Temos de ser vigilantes com as forças externas que invadem as famílias, trazendo acções que em nada dignificam a sociedade.
Em caso de conflitos, procurar instituições para a sua resolução.