Luanda - Há meio século, em diversas partes do mundo, estudantes de várias universidades, seguindo o pensamento de Mao Tsé-Tung, transportavam a tira-colo como bagagem inseparável o “Livro Vermelho”. Há quase meio século, por aqui, Pequim aparecia como sol que iluminava as gerações de um movimento estudantil enraivecido que contaminava outras classes sociais.

Fonte: NJ

Se, como escrevia noutro dia o politólogo português Nuno Rogeiro, na Europa, os estudantes hesitavam em deixar de ouvir Mozart para “pregar a proibição da proibição à burguesia”, por aqui, sem pestanejar, abandonavam a universidade, os liceus e as escolas técnicas, para se juntarem às guerrilhas nacionalistas e transformarem-se nos novos comissários políticos da fase terminal da “revolução cultural” então em voga na China.


Anos atrás, outras gerações, constituídas por uma plêiade de intelectuais, funcionários públicos, empregados de escritórios e trabalhadores rurais imbuídos de princípios irretocáveis, apoiados por militantes portugueses anti-fascistas, lançariam as sementes que conduziriam à independência.


Com essa saga, glorificou-se o MPLA mas com essa saga escreveram-se também páginas ziguezagueantes, que acabaram por castrar e por maquilhar nacos importantes da sua história.


Dessa saga, vemos hoje branqueados pedaços amarrotados e falsificados de um percurso épico esquartejado por amputações e pelo embalsamento de romances pidescos, que mais não são do que uma deplorável e (in)conveniente demonstração do negacionismo da própria história.


Dessa saga, muitos daqueles que hoje corporizam a elite que está aos comandos do MPLA, já dela se lembra.


Dessa saga, de tempos a tempos, como nos últimos três dias, assinala-se aqui a sua passagem, não se sabendo se para efeitos de mera propaganda política ou se para debater o que nunca foi debatido em fronteiras abertas: a verdadeira história do MPLA…


Dessa saga, é vaga já, por isso, a memória que se tem hoje do papel na luta clandestina de insignes nacionalistas como Humberto Machado, Pascoal da Costa, André Mingas, Joaquim Monteiro “Xuxudo”, Mendes de Carvalho, Mário Campos, Noé Saúde, Higino Aires, Gabriel Leitão, Liceu Vieira Dias, Beto Van-Duném e outros.


A essa saga aliaram-se também intrépidas personalidades do movimento anti-fascista português como Júlia Gandara, Calanzas Duarte, José Meireles, Matos Veloso ou Maria do Carmo Medina.


Dessa saga fizeram parte distintos políticos de várias matizes como Viriato da Cruz, Mário e Joaquim Pinto de Andrade, Américo Boavida, António Jacinto, Agostinho Neto, Lúcio Lara, Câmara Pires, Daniel Chipenda, Gentil Viana, Arménio Ferreira, Neves Bendinha, Hermínio Escórcio, Mário de Almeida, “Kassessa” e outros.


Dessa saga não podemos ainda esquecer outra geração de figuras notáveis de que fazem parte Lopo do Nascimento, Ludy Kissassunda, José Eduardo dos Santos, Luandino Vieira, José Liahuca, David Aires Machado, “Minerva”, Alves Bernardo Baptista “Nito Alves”, Jacob João Caetano, “Monstro Imortal”, José Van-Duném e outros.

Essa geração não lutou por monumentos nem por estátuas.Não deu a vida para ser recompensada com medalhas. Também não espera por recompensas materiais.


Mas quem nela se inspirou e se ergueu como percurso da sua obra militante, tem a obrigação moral e política de preservar o seu legado.


Como fazê-lo? Com um simples gesto: seguindo o seu exemplo. Mas, seguir o seu exemplo, não significa ser seguidista. Seguir o seu exemplo, significa separar o trigo do joio.


Seguir o seu exemplo, significa fazê-lo com nervo crítico. Seguir o seu exemplo, significa defender com integridade moral e firmeza intelectual, a liberdade de opinião.


Seguir o seu exemplo, significa fazê-lo sem deixar de olhar para todos os pontos fortes, mas também sem deixar de observar os pontos fracos que marcaram um percurso que, de forma cirúrgica, acabou por cunhar a maneira de ser e de estar na sociedade de uma parte dos actores da sua história.


Herança colonial? Talvez. Porquê? Porque nascemos e crescemos numa sociedade, montada no outro lado do atlântico, onde só muitos anos mais tarde, começamos a perceber que Portugal e as suas colónias eram, afinal, muito maiores do que Salazar e do que o Salazarismo. Mas, derrubado a 25 de Abril o fascismo em Portugal e abertas as portas da liberdade em Angola, o MPLA continuou a ser perseguido por uma herança de pesadelos tatuados por ódios, traições, exclusões, ostracismos “ad eternum” e até de execuções em efígie ao longo de décadas.


Capturado pelo centralismo democrático e vergado ao culto da personalidade, o MPLA não resistiu à mitológica ideia de que Agostinho Neto era o MPLA e que o MPLA era Agostinho Neto.


E muitos anos depois da independência, não faltou quem passasse também a pensar que Angola havia nascido em 1975 e que, a partir de 1992, José Eduardo dos Santos poderia tornar-se maior do que o MPLA e que o MPLA poderia ser maior do que Angola…


Para chegar a esta cómica conclusão, lá dentro, os apóstolos das certezas absolutas, garantiam que, ao MPLA, bastou vencer uma primeira vez.


Sim, é verdade que venceu. Mas se venceu, não é menos verdade que hoje está cada vez mais longe de convencer.
Porquê?


Porque não foi capaz, ao longo da sua história, de se convencer, lá dentro, de que unidade não se confunde com  unicidade. Não foi capaz de perceber, lá dentro, que se a unidade pressupõe diversidade, impõe também a cultura da contradição e uma visão do poder assente na diferença, no diálogo e numa estratégia de longo prazo.


E não está a ser capaz porque não quer entender que convencer significa persuadir. E que, para persuadir, precisa de ser capaz de aceitar, sem protocolo, uma cidadania cada vez mais livre e governados com massa crítica cada vez mais elevada.

Mas não está a ser capaz de tudo isso porquê?


Porque está falido de valores e de liderança! Porque já não há, por lá, há muitos anos, líderes que se distinguiam pela ousadia, sensatez, disposição para ouvir sensibilidades divergentes, ponderação racional, ânimo, fleuma, capacidade de organização e oratória fácil.

Não, não há. Já não há, por lá, os “intelectuais orgânicos” de que nos falava Grasmic. Não há porque as lideranças do passado recente, para desempatar as divergências, que rapidamente se confundiam com lutas fratricidas, em vez do debate aberto e franco, impuseram ajustes históricos.


Não há porque o culto da diferença foi abafado pela ortodoxia de milícias letradas que, influenciadas pelo iluminismo bolchevique, carregavam na mente tentações totalitárias que acabaram por legitimar cisões, expulsões e repressões internas.


Não há porque, há muitos anos que se evaporaram daqui lideranças visionárias. E sem estas lideranças, começa a faltar ao MPLA o que disse um dia o filósofo e ensaísta espanhol Miguel de Unamuno: “razão”.


Às suas lideranças falta, desta forma, travar a tentação para que novos revisionismos e a desonestidade intelectual não continuem a mascarar a história da sua fundação, nem precipitem a “ morte cerebral”, no seio da sua massa militante, de figuras como o seu antigo Presidente, José Eduardo dos Santos, que, para o bem ou para o mal, acabaram, nas últimas décadas, por moldar, de forma indelével, a sua actual formulação orgânica.

 

Falta-lhe deixar de fingir que não houve uma dimensão trágica do seu percurso existencial, que precisa de ser confrontada sem ressentimentos.


Ao MPLA falta ainda, sem estados de espírito, ter coragem para assumir as falhas e exorcizar os fantasmas do passado.


Falta-lhe abandonar um discurso mal amanhado e ornamentado com recortes débeis. Falta-lhe modernizar-se e libertar-se de sectarismos atávicos, velhos preconceitos e complexos anacrónicos.


Falta-lhe desfazer-se de políticos frágeis, sem imaginação, de palavras recorrentes e com comportamentos éticos tão deploráveis, que andam a esfacelar a sua imagem perante a opinião pública.


Falta-lhe capacidade para atrair quadros independentes e para travar os ímpetos de uma manada de “apparatchiks”, que pode levar a sua história a cair na vacuidade.


Falta-lhe rever estatutos e procedimentos, abandonar velhas apelações, exterminar o culto da idolatria e deixar no roupeiro a indumentária de Nicolas Maduro.


Falta-lhe reencontrar-se com a história para que não se confunda a história e os intervenientes nos Acordos de  Paz com a história e os actores da história do MPLA.


Falta-lhe deixar de fazer o que o escritor e humorista norte-americano, Mark Twain, recomenda que não faça: “emprestar (aos cidadãos) o chapéu quando faz sol e tira-lo quando começa a chover”