Luanda - Todos, temos direito à presunção de inocência. Contudo, ao nível da nossa justiça, observamos que há um número considerável de casos em que ficamos sem perceber, efectivamente, se se trata do respeito a um direito constitucional e do Código Penal, ou se depende da interpretação de quem dirige a instrução de processos, do nível da pessoa (acusada), de interesses conforme o caso, dos poderes Executivo e Judiciário envolvidos, do desconhecimento de leis ( que não acreditamos) ou do livre arbítrio de alguém que não aparece, mas tem forte influência no funcionamento da Justiça e direcciona até o envolvimento dos órgãos intervenientes, para que os casos tenham mais ou menos impacto mediático na comunicação pública, privada e nas redes sociais.

Fonte: Club-k.net


Chegamos à estas interrogações porque, depois dos 'filmes' que retratam diligências judiciais musculadas e com atropelos à direitos fundamentais dos suspeitos da prática de alguns crimes de peculato nestes dois anos de nova gestão, surpreendeu-nos o tratamento brando, diferente, elegante até, que se observou no tratamento do caso da AEnergia, de que resultou a apreensão judicial de quatro turbinas eléctricas supostamente adquiridas com fundos públicos estimados em cerca de 120 milhões de dólares, sem conhecimento do Ministério da Energia e Águas, numa eventual burla denunciada pela General Electric. Portanto, em suma, tratou-se de uma execução cautelar previsível respaldada por decreto presidencial que rescinde 13 contratos de prestação de serviço com a AEnergia, para assistência técnica e instalação de equipamentos, por práticas que feriram a confiança entre as partes.


A acção conduzida pela PGR que resulta de uma Providência Cautelar intentada pelo Serviço Nacional de Recuperação de Activos, contemplou igualmente, peças e consumíveis decorrentes de um contrato de fornecimento e assistência técnica de geradores industriais e outros materiais de produção de energia eléctrica, celebrado entre a AEnergy, SA e o MINEA, através da ENDE, no valor de USD 114.267.108,40 (cento e catorze milhões duzentos e sessenta e sete mil cento e oito dólares e quarenta cêntimos).


O nosso espanto resulta da constatação de que essa não tem sido a postura habitual dos nossos órgãos de Justiça porque, o que se tornou regra ao longo dos anos, tem sido prender para investigar e não investigar para prender. Desta vez, nem sequer computadores que por regra ocultam informação e permitem o rastreio das investigações foram apreendidos. Nada de recolha de outros elementos de prova de eventual cometimento de crime de burla. As instalações, que serviram para esconder os meios e equipamentos, continuam liberadas como se não se tivesse passado nada.


Porque será que foram tão brandos e elegantes neste caso em que o Estado Angolano acusa um empresário português de prática de uma burla de tão elevado montante, 120 milhões de dólares? Teriam igual postura se fosse (ou quando foi) um angolano? Ou, finalmente, teremos a observância, de facto, do respeito ao princípio da presunção da inocência até decisão da entidade competente, como há muito se clama? Trata-se do regresso ao que deve ser a prática correcta?


É que já vimos "com esses olhos que a terra há-de comer" imagens de deputado ser arrancado do interior de um avião apesar de gozar de imunidade, a prisão e julgamento de uns tantos e tantas por muito menos mesmo colaborando com a justiça, e sem apelo nem agravo, a expulsão de famílias de imóveis supostamente adquiridas com dinheiros públicos, antes mesmo de qualquer sentença de tribunais, para além das medidas cautelares habituais como residência fixa e vigiada, entrega de passaportes e afins.


Nós que já acompanhamos casos de apreensão de aviões da Taag no estrangeiro por dívidas contraídas e não honradas pelo Estado angolano, que já vimos até estrangeiros gerirem um grande banco entrando no país com visto de turismo, que assistimos que apesar de tantas burlas contra empresários angolanos, contra o Estado e contra cidadãos que tiveram as suas economias roubadas por quem lhes prometeu casas, não se emitiu nenhum mandado internacional de captura ou congelamento de contas dos visados, temos o direito de questionar o seguinte: "mas a justiça angolana funciona mesmo seguindo que regras, que leis e em defesa do quê é de quem?"


Embora esse apreensão a AEnergia represente apenas o primeiro acto de um processo que se prevê, levará muito tempo, não acreditamos que nos darão o prazer de ver o desfecho deste caso com o arquitecto da fraude, Ricardo Leitão Machado, sentado no banco dos réus de um tribunal em Luanda, mesmo com a garantia da presunção de inocência. E enquanto degusta um bom presunto acompanhado de bom vinho comprados com o dinheiro que lhe foi dado, por via de esquemas pagos à preço de ouro continuará a confundir-nos, forjando matérias que dão lugar a títulos semanais que transferem para outros, a sua forte e indesmentível relação com o caso.


Temos consciência que há muitos angolanos que fizeram (ou que continuam a fazer) mal contra o seu próprio país e contra o seu próprio povo. O que nos intriga, é saber que não o fizeram sozinhos e que os seus parceiros não aparecem, não são identificados, nem são responsabilizados. Interessa passar ao mundo essa imagem péssima, de que o angolano é o mais vigarista e corrupto ser da face da terra e que o nosso sistema de Justiça é assim tão anormal? É claro que não mas, infelizmente, tornamo-nos moda no que há de pior como referência. Nós mesmos, cultivamos e disseminamos essa imagem que em nada nos abona.


Intrigante. Mas é verdade!
Ramiro Aleixo
07.12.2019