Luanda - Cheguei cedo à praça 1º de Maio: assim se chamava a actual praça da independência porque foi nela, a um canto, mais junto do Cine Atlântico, que se comemorou, pela primeira vez, em Angola, após a “revolução dos cravos”, em Portugal, a 25 de Abril de 1974, o “dia internacional do trabalhador” já no dia 22 de Maio de 1975.
Fonte: AGORA
Era dia 10 de Novembro de 1975, à noite. Ia ansioso, algo receoso e cheio de emoção. Fiquei entre a multidão que não era muita, embora a praça não estivesse vazia. Os tempos eram difíceis. Os movimentos de libertação, como tudo indicava, desentenderam-se, não aceitaram as regras do Acordo de Alvor e, em vez de entrarem na prevista disputa eleitoral, para a constituição de uma Assembleia representativa, deram inicio a uma guerra civil que foi crescendo cada vez mais, até a intervenção de tropas estrangeiras: Zairenses, Cubanas e Sul-Africanas, para além de mercenários. Nesse dia a guerra batia forte em todas as frentes. O Mpla tinha-se apoderado da capital e os seus adversários faziam de tudo para tomar Luanda. Os sul-africanos pressionavam pelo sul, ao longo da linha do rio Ngueve. O comandante cubano Argueles morria na frente do Ebo, fortemente castigada pela artilharia sul-africana. Por seu lado, os Zairenses e mercenários procuravam passar pelo derradeiro reduto do norte, em Kifangondo, onde as tropas cubanas, apoiando a brigada comandada pelo comandante Ndalo, os esperavam com os monakashitos de 40 bocas que tinham desembarcado nas vésperas em Cabo-Ledo.
Na praça da proclamação da independência podia-se ouvir o troar dos canhões. A capital vivia um clima de expectativa em relação ao desfecho da “marcha triunfal” da Fnla, comboíada pelos zairenses, mais os “elpes” de Santos e Castro e o grupo de mercenários do Khalen.
Mas, apesar disto, estavam lá os pioneiros com a sua alegre marcha de kazukuta; comandó arriou, os iniciadores da luta armada, vestidos de preto, como no dia 4 de Fevereiro de 1961, bessa-nganas bonitas, envergando os seus melhores panos e jóias, activistas sindicais, líderes das comissões de bairro (o famoso “poder popular”), estudantes e povo anónimo. Uma tribuna montada do lado da escola comercial (hoje EMEL) estava cheia de dirigentes e militantes do maqui e da clandestinidade, envergando balalaicas novas, mal escondiam o seu orgulho e vaidade, de ali estarem. Entre a multidão, alguns ex-presos políticos do Tarrafal e de São Nicolau que tinham passado à dissidência e, por isto, não tinham direito de destaque na tribuna de honra, tal como outros que foram vergonhosamente esquecidos.
Perto das zero horas, o poeta Agostinho Neto, na sua retórica habitual, “perante a África e Mundo”, proclamou a República Popular de Angola. Nesse momento, as balas abriram crateras no céu, como diz, no seu poema, o Manuel Rui, enquanto o comandante do 4 de Fevereiro, Imperial Santana, auxiliado por um pio, hasteava a bandeira. Em verdade, naquele momento, Luanda transformou-se num belo e estranho espectáculo de fogo de artifício à bala real tracejante. Os mais eufóricos e irresponsáveis dispararam obuses de RPG7.
Nessa mesma altura, no Huambo se proclamava a República Democrática de Angola. Foi outra vivência que aqueles que a tiveram devem reportar melhor que eu. O que sei é apenas do conhecimento indirecto: de ouvir contar, de ler. Mas todas as informações concordam em dizer que o Governo de coligação Fnla-Unita durou pouco mais do que o momento de uma fotografia protocolar. Logo a seguir a Unita expulsou a Fnla do planalto central e do território sustentado pelas tropas sul-africanas, a sul do rio Gueve. A Fnla passou a dispor da sua “república” no norte. E assim tivemos, a bem dizer, uma independência por cada movimento de libertação dos três signatários dos acordos de Alvor.
O quarto parceiro desse acordo, o Governo português, já há muito que se tinha demitido das suas obrigações mas, como todos os outros, não deixou de fazer teatro, encenando uma cerimónia fantasmagórica de passagem de poderes para as “mãos do povo angolano”, como dizia o último Alto-Comissário colonial, já a bordo de uma corveta da Marinha de Guerra portuguesa, fundeada na baía de Luanda. Era assim que o almirante Leonel Cardoso, em nome de Portugal, entregava “Angola aos angolanos (...) sem sentimentos de culpa e sem ter de que se envergonhar”. Angola era, segundo ele, “um país que está[va] na vanguarda dos Estados africanos”.
Na alvorada de 11 de Novembro, um pequeno grupo de soldados portugueses dobrou pela última vez a bandeira portuguesa diante do palácio dos Governadores e entregou as chaves ao Hermínio Escórcio, representando os mandatários do novo poder. Aí então, a bandeira do Mpla, transformada em bandeira da República, ao sustentarem a estrela pela roda dentada e a catana, foi hasteada não somente no mastro da praça da independência, como naquela madrugada, mas diante do Palácio, dos edifícios públicos, dos quartéis, das sedes daquele partido e das cabanas dos pioneiros.
A República Popular de Angola que viria a ser reconhecida, pelas Nações Unidas, em Outubro do ano seguinte, nascia assim a ferros, parida da boca dos canhões, sem nenhuma transferência formal de poderes, da potência colonial para os representantes do povo angolano, significando a sua proclamação um duplo golpe de força: um golpe contra os acordos de Alvor e outro contra o programa do próprio Mpla que previa também a constituição de uma assembleia constituinte representativa. E, foi assim que, de equívoco em equívoco, fomos fazendo país.
*Cientista político
Publicado inicialmente in jornal AGORA.