Lisboa - Se a atual Lei da Nacionalidade portuguesa estivesse em vigor no século XII, D. Afonso Henriques não seria cidadão português. Ele era filho de mãe leonesa (hoje espanhola) e pai francês. Dois séculos depois, Inês de Castro, cujo amor semi-clandestino com um príncipe (mais tarde rei) teve forte impacto político-social, sendo justamente celebrada em prosa e verso, teria no máximo estatuto de imigrante temporária. Nasceu na Galiza. Em pior situação estaria, no século XVII, Salvador Correia de Sá e Benevides pois não se sabe onde nasceu – Brasil ou Espanha? -, talvez nem ele soubesse. Não é caso único nem coisa antiga, conheço muito bem casos desses hoje, causadores de duras complicações. Mas naquela época ninguém se incomodou nem foi incomodado, até porque ele comandou as tropas que, em 1648, devolveram à coroa portuguesa o litoral de Angola, de onde sairia o maior fluxo de escravos nos dois séculos seguintes.

Fonte: Publico

Atualmente, não é só Portugal que tem leis com essa configuração. É comum na Europa, em África e Ásia, milhares de pessoas serem estrangeiras na terra de nascimento, simplesmente por serem filhas de imigrantes. E não adianta demonstrar que uma coisa não tem nada a ver com a outra, conforme compravam as cidadanias nas Américas, em partes da Oceania, na ilha Maurício, na História de Portugal e na História de muitos combatentes dos Palop. Quem defende o jus sanguinis como critério único de nacionalidade está embrenhado na teia das identidades, ou seja, a versão ideológica atual correspondente aos velhos discursos racistas. A noção básica é a mesma – “aquilo que nos separa deles” – tal como os seus formuladores, seja qual for o respetivo continente.

 


Há mesmo os hiper-tensos para quem a atual exigência de ter “apenas” um antepassado recente é muito permissiva. Em vários países africanos, por exemplo, tem de ser pai e mãe. Em alguns desses países muita gente perdeu a nacionalidade ou constatou nunca a ter tido. Alguns casos tornaram-se célebres, como o de Alassane Ouatara, cuja nacionalidade marfinense lhe foi retirada em virtude dos seus antepassados burkinabenses. Após a guerra civil na Costa do Marfim, Ouatara recuperou a nacionalidade e ganhou as eleições presidenciais.

 

Na Europa existem correntes dispostas a imporem a nacionalidade dos dois progenitores como condição da do filho, assim mantendo a “pureza racial” pois impediria que cidadãos pouco interessados nesse tipo de pureza gerassem nacionais de certas cores ou certo tipo de olhos. Há partidos políticos com essa cláusula nos programas. No caso português, voltando à História, seria outro atentado porque o Infante D. Henrique e seus irmãos são filhos de Lady Philippa of Lancaster, inglesa.

 

À História somam-se exemplos próximos, grotescos se não fossem dramáticos. Há alguns anos, um sargento francês filho de senegaleses foi tratar de assuntos relativos a direitos sociais e disseram-lhe que não era francês, visto os pais também não o serem. Nunca lhe disseram isso quando se alistou nem quando foi chamado a operações. Até o ministro da Defesa, na altura personalidade de direita, se declarou escandalizado, mas o sargento teve de pedir naturalização, apesar de tantos anos como graduado no exército francês.

 

O território é a base de todo o património de um país. Nascer nesse território é como rito sagrado de iniciação, dele decorrendo o direito de ficar nele com todos os demais direitos. Da mesma forma que a liberdade mede-se pela liberdade individual, a formação da personalidade, dos perfis e da base para viver são individuais, não dependem obrigatoriamente de antepassados.


No âmbito da CPLP, só o Brasil concede nacionalidade automática aos nascidos no país. Nem que os pais sejam turistas e, além disso, a naturalização para cidadãos da CPLP exige apenas um ano de residência permanente. São Tomé e Príncipe está perto da mesma definição, embora com referência à necessidade de residência dos pais se forem estrangeiros. A noção de residência tem diversas interpretações e pode causar dúvidas sobre este direito. Na África do Sul, por exemplo, se os pais forem imigrantes irregulares o filho será punido, não tendo direito a ser nacional. Na ilha Maurício, país observador na CPLP, são nacionais os lá nascidos e seus descendentes. Sem mais exigências ou referências.

Nos outros estados da CPLP o território nacional não tem o mesmo valor na definição de nacionalidade.

 

Em todos estes casos, nacionalidade corresponde a cidadania, situação diferente dos estados multinacionais, como a Etiópia onde há uma cidadania e várias nacionalidades dentro dela. Seja como for, a questão fundamental permanece: se a nacionalidade pode ser resultado de laços familiares (jus sanguinis) ou de laços com a terra (jus sanguinis) porquê eliminar uma delas? Discriminação.

A Assembleia da República vai discutir esta semana a Lei da Nacionalidade, com base numa proposta apresentada fora dos prazos. Só a intervenção do seu presidente, Ferro Rodrigues, permitiu um acordo para ser debatida e isto, em si, já é uma notícia que faz diferença. Em outros parlamentos da CPLP, ocorreria o inverso pois o assunto é tabu. Assim, o debate português vai ter impacto muito além das suas fronteiras e – quem sabe – a própria CPLP sentir-se-á motivada para o alargar.