Luanda - Nesta primeira grande entrevista a um órgão nacional, Sebastião Gaspar Martins revela detalhes desconhecidos do Programa de Regeneração, como é o facto de não prever despedimentos e, também, da alienação de activos imobiliários em Portugal. Explica a inevitabilidade de um aumento dos preços dos combustíveis, ainda que gradual, a negociação de empréstimo de 1,5 mil milhões de dólares no mercado internacional e o insucesso do ataque cibernético que em Junho perturbou a actividade da companhia

Fonte: JA

O Executivo tomou a decisão de retirar a função de concessionária da Sonangol. É uma enorme alteração: qual éo caminho estratégico que a empresa vai seguir?

Esta questão vai ao encontro daquilo que tem sido o objectivo da Sonangol, porque sendo uma empresa do Estado, adequa-se também às decisões institucionais. A Comissão Interministerial de Acompanhamento do Reajustamento da Organização do Sector Petrolífero, depois de formada, em Setembro de 2018, aprovou a separação da função de concessionária da Sonangol. Quer dizer que, nos próximos dez anos, como empresa virada para o sector de exploração, produção, distribuição e refinação de petróleo bruto, vai ter de dedicar-se exclusivamente a esta actividade: vai deixar de ser gestora de concessões petrolíferas (que era uma função que tinha na altura em que estava também ligada ao papel de concessionária) e vai dedicar-se, fundamentalmente, a tornar-se numa empresa focada na rentabilidade dos seus activos e na cadeia de valor, que é a do upstream (de exploração, desenvolvimento, produção), midstream (refinação) e downstream (distribuição e logística).

Quais são os momentos tácticos dessa estratégia?
Em 2018, definimos a nossa visão para 2027: “tornar a Sonangol numa empresa de referência do sector petrolífero no continente africano, comprometida com a sustentabilidade”. A estratégia definida passa pela reestruturação da empresa, incremento da actividade de exploração e produção de petróleo bruto e gás natural, assim como pelo crescimento da nossa produção operada. Adicionalmente, a nossa estratégia prevê aumentar a capacidade interna de produção de refinados e assegurar a eficiêbcia da cadeia logística de combustíveis. Não menos importante, estamos também empenhados na optimização do capital humano e tecnológico para o desenvolvimento da produtividade da empresa.

A perda da função de concessionária e as privatizações retiram posições sólidas da companhia: com que novos investimentos se vai preencher esse vazio?
A perda da função de concessionária não retira à Sonangol a condição de ser uma empresa rentável. Antes pelo contrário, agora (e isto foi definido na nossa estratégia de desenvolvimento) vai-se tornar numa empresa muito mais virada para o seu objecto social, porque, até ao momento, esteve envolvida num conjunto de tarefas, incluindo algumas fora da sua actividade core, que a desviavam do objectivo de ser uma empresa rentável, competitiva e comprometida com a sustentabilidade.

A visão 2027 implica que a Sonangol tenha de se requalificar e realizar-se do ponto de vista financeiro, levando a cabo um amplo programa de saneamento financeiro; vai ter de se tornar capacitada nas áreas da sua actividade core, com base num aumento da exploração e produção, com uma participação bastante considerável da nossa subsidiária para a produção, a Sonangol Pesquisa & Produção.

Nós apontamos para uma meta de chegarmos acima dos 10 por cento. Actualmente, estamos com níveis de participação muito reduzidos, embora a nível dos interesses participativos, juntando as áreas de operação, com as áreas em que somos parceiros, estejamos numa percentagem da produção total de Angola acima dos 17 por cento. Nós hoje produzimos, em termos de interesses participativos, cerca de 235 mil barris de petróleo por dia.

Com o aumento do nosso papel na actividade operadora, pretendemos tornar a empresa num “player” como qualquer uma das empresas que opera em Angola e das quais também somos parceiros. Acreditamos que a saída da posição de concessionária constitui uma boa oportunidade para estarmos concentrados na gestão de negócios nucleares, para melhor os rentabilizar, e que a alienação de activos não nucleares vem complementar o foco na cadeia primária de valor, porque, ao longo dos anos, por força das circunstâncias, a Sonangol dispersou investimentos, tornando a sua gestão muito mais complexa e menos eficiente: estamos no sector imobiliário, no desenvolvimento da actividade industrial na Zona Económica Especial Luanda-Bengo e muitos mais sectores de actividade.

As alienações terão como contrapartida o aumento da liquidez financeira, com a possibilidade de investimento nas actividades nucleares da empresa e diminuição da dívida financeira, que no final do exercício económico de 2018 ascendia a 4,5 mil milhões de dólares. A implementação do Programa de Privatizações não visa, nem vai deixar a Sonangol “despida”.

Qual é o encaixe estimado para a privatização dos activos da Sonangol?
Não lhe quero dizer antes de termos uma avaliação correcta, mas digo que, precedemos o processo de alienação e uma avaliação dos activos e, só depois disso, com um preço de referência, é que vamos para o mercado. A título de exemplo, agora, em Portugal, fizemos a alienação de dois activos imobiliários, o primeiro dos quais (edifício da Avenida da República, em Lisboa) está já num processo bem avançado, depois de termos conseguido uma avaliação desse imóvel à volta dos 13 milhões de euros.

Havia um outro activo, que deveríamos também alienar, que é um edifício em relação ao qual, nesta altura, depois de termos feito a nossa avaliação e termos visto o resultado inicial das respostas, suspendemos, voltamos ao mercado e, agora, estamos com estimativas de resultados mais dentro da nossa expectativa sobre o valor daquele activo imobiliário. Uma estimativa do global, neste momento vai-me ser difícil dizer, mas digo-lhe apenas que, à medida que formos fazendo a avaliação dos activos, vamos saber se estamos ou não a ir ao encontro daquilo que é a nossa expectativa e o que o mercado oferece. O que queremos destes activos é que eles sirvam para reforçar a nossa capacidade financeira e que não sejam apenas usados para outros fins que não ajudem a tornar a empresa mais rentável, competitiva e robusta.

Quanto é que a Sonangol deixa de receber com o abandono do papel de concessionária?
A Sonangol recebia um fee (taxa) de 7,00 por cento pelo exercício do papel de concessionária em nome do Estado, mas continua a deter activos valiosos e reservas petrolíferas que conferem uma posição sólida no mercado, mantendo os seus investimentos nas concessões petrolíferas angolanas onshore e offshore e vai continuar a investir no negócio principal, os investimentos nos blocos 3/05 e 4/05, para aumentar a produção operada. Os investimentos na construção de refinarias para inverter o quadro da importação de combustíveis e no Terminal Oceânico da Barra do Dande, para garantir capacidade de armazenagem de combustível em terra, são alguns exemplos.

O que há de verdade no que se diz ser a falência técnica da Sonangol?
A condição económico-financeira da companhia continua viável e estamos confiantes que continuaremos a ter resultados positivos em 2019 e nos anos posteriores.

Qual é o valor do capital social da Sonangol?
Ainda há pouco tempo fizemos a aprovação das nossas contas de 2018: o valor do capital social da Sonangol está acima de 12 mil milhões de dólares ou um bilião de kwanzas, o que significa que temos robustez financeira suficiente para conduzir os destinos da empresa, além de que temos, neste momento, convénios financeiros que nos permitem ir ao mercado internacional em busca de financiamento, uma cobertura total que dá confiança e credibilidade suficiente aos investidores e aos bancos com os quais temos tido relações. Só a partir de 2020 é que vamos ao mercado e temos a garantia de obter financiamento da ordem dos 1.500 milhões de dólares.

Pode detalhar um pouco mais esta operação?
A ida ao mercado é uma operação que nós fazemos anualmente e, sempre, com o objectivo de fazer face às necessidades das nossas operações petrolíferas, em parte, para suprir necessidades no segmento de “upstream”. Neste momento, com excepção do Bloco 15 e do Bloco 17, estamos em quase todas as concessões que têm produção e vamos estar, também, nos blocos que têm exploração. Estas áreas exigem que nós, na qualidade de parceiros e operadores, tenhamos que fazer face às despesas.

Então, vamos, para além da nossa capacidade financeira e de fazer o que a maior parte das empresas do sector fazem, vamos ao mercado fazendo recurso àquelas necessidades que temos do ponto de vista financeiro, mas, sobretudo, com base na nossa capacidade de reembolsar a dívida. É desta forma que fazemos um apelo e um encontro regular com as instituições financeiras, mostramos as nossas demonstrações financeiras, apresentamos os nossos balanços e os nossos convénios que têm de cumprir com determinado tipo de requisitos, que é dar garantia suficiente à instituição financeira que nos vai emprestar fundos de que nós, sem necessidade de usar o petróleo bruto como garantia, com as receitas da nossa actividade e com o nosso balanço, conseguimos honrar os nossos compromissos.

Quais são os bancos envolvidos e quais os termos desse financiamento?
São vários bancos: neste momento temos contactos com o Standard Chartered, que lidera um sindicato de bancos. Os termos e as condições do financiamento ainda estão a ser negociados, mas sabemos que terá uma maturidade de cinco anos.

Esse empréstimo pode-se reflectir na capacidade de endividamento do Estado?
Há um aspecto que também temos de considerar: nós somos parceiros do Estado e, nessa qualidade, temos de conjugar as nossas necessidades em receitas ou em financiamento com as receitas do Estado e temos conseguido encontrar um “modus-vivendi” que nos permite conciliar as nossas necessidades com as do Estado, de forma a que nós, como empresa pública, possamos realizar e honrar os nossos compromissos junto das concessões petrolíferas e fazer o nosso serviço de importação de derivados. É sabido que importamos cerca 80 por cento dos derivados e ainda somos o superintendente logístico e, nesta condição, temos, também, a responsabilidade de manter o mercado alimentado e com produtos para suportar as necessidades do país. É aí que, com recurso às nossas receitas, em boa parte saídas da actividade que mais rende neste país, que é a actividade do “upstream”, juntando às necessidades financeiras que vamos buscar ao mercado, fazemos a cobertura dessas necessidades que envolvem, por um lado, as concessões petrolíferas e, por outro, honrar as necessidades de importação de combustíveis de que o país precisa. É assim que actuamos.

Que medidas têm sido tomadas para reforçar a prestação de contas e os mecanismos de transparência?
No domínio da prestação de contas, se for agora mesmo ao nosso site, vai encontrar as nossas contas publicadas. Ninguém tem o acesso impedido. No que toca à transparência, temos um processo que permite, através de concurso público, seleccionar as empresas que demonstrem capacidade técnica e financeira, criamos e aprovamos muito recentemente o Código de Ética que é suportado por um programa de educação para todos os quadros que trabalham com processos sensíveis, que são os da contratação, assim como aprovamos um procedimento de contratação que apura melhor o processo de selecção de prestadores de serviços.

Este código permite que qualquer funcionário, ao aperceber-se de uma prática menos correcta de um colega, está livre de denunciar e não ser prejudicado por isso. Hoje, reduzimos ao mínimo as práticas que causam dolo à empresa e estamos prestes a chegar ao ponto em que se poderá dizer que a Sonangol conduz-se apenas por boas práticas. Para além disso, trabalhamos de acordo com a Lei da Contratação Pública, que rege os processos de atribuição de empreitadas ou de compra de bens e serviços. Os nossos parceiros também são orientados, nas suas operações, pelo rigor da conformidade legal e é dessa forma que estabelecemos negócios. Não somos 100 por cento perfeitos, mas sabemos que não estamos mal, estamos bem.

O ataque cibernético que a Sonangol sofreu no mês de Junho deste ano foi bem-sucedido?
Todas as grandes organizações estão submetidas a esse tipo de acções e a Sonangol não foge a essa regra, porque os hackers hoje estão no mundo inteiro e a Sonangol não escapou. Felizmente, aconteceu numa altura em que estávamos a iniciar o nosso Programa de Regeneração e, como resultado, preparamo-nos ainda mais para evitar que ataques do género nos possam prejudicar. Digo-lhe que o resultado do ataque não foi aquele que se pudesse imaginar, pelo contrário. Hoje estamos a funcionar normalmente, com medidas de precaução muito maiores e estamos a evitar que isso volte a acontecer ou que nos possa causar danos que impeçam o funcionamento da Sonangol como tal. Resumindo, sem querer, ajudaram-nos a ser ainda mais fortes. Vai ser muito mais difícil fazerem-nos um ataque se o pretenderem fazer.

Como é que a Sonangol reagiu ao ataque, que medidas internas foram tomadas?
Reagimos do ponto de vista da preparação do nosso pessoal e criamos uma espécie de polícia informática. Hoje, nós, se pretendermos saber quem está a tentar penetrar de forma indevida na nossa rede, conseguimos. Por outro lado, temos as protecções todas para impedir que isso aconteça, que a ameaça seja interna ou externa. Em suma, temos medidas de protecção e desenvolvimento tecnológico bastante avançadas para prevenir danos.

Disse que o ataque não foi bem-sucedido?
Não, não foi. O único que aconteceu foi impedir que nós funcionássemos naturalmente durante duas semanas, talvez um pouco mais, mas, depois disso, a empresa retomou o sistema normal.

O significado da construção de refinarias

A construção de refinarias é contestada com o argumento segundo o qual é mais barato pagar uma refinaria fora do país do que construir internamente: quer comentar?
Discordo completamente por uma questão muito simples: o que é que nós queremos fazer deste país? Queremos ter os nossos trabalhadores a ficarem de mão estendida, à espera que alguém traga produtos vindos de fora, ou eles empregados ao longo da cadeia de valor, a trabalharem nas nossas refinarias, a serem formados e aprenderem a refinar petróleo, a operarem as nossas instalações, que é o que nós estamos a fazer e é um custo intangível neste momento? Eu preferia ter os jovens empregados a desenvolverem-se tecnicamente, a trabalharem nas nossas instalações, do que mandarmos crude para fora e comprarmos os refinados no exterior ou mesmo transferir o valor para fora do nosso país, quando o valor pode ser desenvolvido e criado internamente. Não tenho dúvida nenhuma que as refinarias vão suprir as dificuldades que temos para abastecer o nosso mercado. A refinaria a ser construída em Cabinda é de capitais maioritariamente privados. Cabe a estes propor a modalidade de construção (de raiz ou deslocalização). Em abono da verdade, está na mesa a proposta de uma refinaria de raiz, de modo faseado. Quanto à refinaria do Lobito, o fundamento é diferente. Por um lado já foram feitos grandes investimento (terminal marítimo, estradas para transporte do material pesado) e outras estaras. Por outro, é a refinaria de maior interesse estratégico para o Estado.

Porque é que a construção da refinaria do Lobito foi interrompida? Foi apenas por falta de liquidez ou havia problemas a nível da qualidade do projecto e do seu custo?
A questão da qualidade não se coloca. O processo atravessou um momento que todos temos de aceitar, que o país todo também atravessou: dificuldades financeiras. Tendo em conta o volume de investimentos envolvidos, a obra foi suspensa, a exemplo do que fazem todas as grandes empresas quando o investimento está a limitar a capacidade de investir noutras áreas. Mas o projecto não foi interrompido com uma paralisação. O que se fez foi suspender. Hoje, nós temos condições para retomarmos e estamos a fazê-lo. Vamos prosseguir e partimos do princípio que, talvez depois de 2025 (porque é uma refinaria de uma dimensão considerável), possamos ter o início do processamento e refinação naquela parte do país, que é também de um desenvolvimento industrial considerável.