Luanda - Cabinda é a região que produz não só a maior parte do petróleo que envaidece Angola (cerca de 80%), mas também a melhor qualidade de petróleo exportado por Angola, segundo os padrões internacionais. Estou a referir-me apenas às operações de exploração off-shore (no mar) que nos últimos cinquenta anos, se atendermos ao facto da entrada em funcionamento do primeiro campo petrolífero designado por Malongo em 1968, fizeram de Cabinda uma potência petrolífera com profundas implicações geopolíticas.

Fonte: Club-k.net

Quando o estadista português, Oliveira Salazar, recebeu a notícia da descoberta do petróleo em Cabinda, num instinto premonitor, disse: «Só me faltava esta!...» Estavam à vista mais uns sarilhos! Cabinda ganhou fama no mundo por causa do seu petróleo, mas paradoxalmente não houve cinquenta anos de desenvolvimento. Os olhos embriagados do mundo dos negócios fixaram-se apenas no seu petróleo, ignorando as suas gentes. Em Maio de 2012 fui aos EUA participar da reunião anual dos stakeholders da Chevron em San Ramon, com o patrocínio da Open Society Angola. Esse encontro é uma espécie de assembleia da governança corporativa onde são convidados por vezes activistas comunitários das regiões onde a Chevron tem a suas operações para falarem das questões atinentes à responsabilidade corporativa da empresa, políticas de empregabilidade, impactos ambientais, etc.

 

Não fui a tempo de assistir a reunião e tomar a palavra porque tive um atraso do meu vôo para S.Francisco. Entretanto, numa reunião na Casa Branca com o Assessor do Presidente Obama para Assuntos Africanos tive a oportunidade de deixar alguns recados. Mas antes de tudo, à guiza de introdução da nossa conversa, questionei o meu interlocutor sobre o que sabia de Cabinda antes que eu fizesse a minha explanação. Para o meu interlocutor, Cabinda era petróleo, Chevron e pouco mais que isso! Estava preparado para essa resposta! Aproveitei o ensejo e falei-lhe da outra Cabinda vista na perspectiva das suas gentes. Falei da demografia, dos baixos índices de desenvolvimento humano, da falta de um empresariado robusto e duma classe média de peso, passando também em revista os problemas geopolíticos e respectivas tendências secessionistas. Tomou nota e fez alguns comentários.


Esses considerandos vêm a propósito duma questão que se tornou politicamente incómoda para o stablishment em Angola: que retorno é que Cabinda tem recebido da indústria petrolífera aí instalada há cinquenta anos? Os cabindenses respondem sem titubear: NADA! Durante todos esses anos de exploração as empresas petrolíferas, incluindo a Sonangol, nunca colocaram Cabinda nas prioridades das suas agendas. Limitaram-se a fazer alguns gestos ́ ́caritativos ́ ́ pontuais, mas sem um programa sólido e previamente discutido com as comunidades locais, com metas, tarefas e timings de sua execução (curto, médio, longo prazo) com o objectivo de se alcançar o desenvolvimento sustentável que se preconiza para uma região tão rica em recursos petrolíferos. A própria Sonangol não tem um edificio condigno em Cabinda. A sua sede é uma construção de lata pré-fabricada (e já abandonada!) porque chove por dentro, contrastando com os imponentes aranha- ceús erguidos na baixa da capital do império; nem uma clínica, nem uma creche para os filhos dos seus trabalhadores; em Luanda, sim, ergueram tudo isso e mais alguma coisa. Uma vez, nos anos idos, tive o ensejo de confrontar o então PCA da Sonangol, Eng. Manuel Vicente, numa reunião em Cabinda. Era então governador o Eng. José Amaro Tati, que também esteve na reunião. O Eng. Manuel Vicente reconheceu que tudo o que expus era verdade e deu a garantia de que a Sonangol estava a negociar um terreno com o governo da província para a construção da sua futura sede em Cabinda. O terreno foi adquirido há mais de dez anos, mas só tem capim até agora em pleno coração da cidade. O pouco que havia também já nos foi retirado. O campo do Malongo, o El dorado dos cabindenses, foi desmantelado nos últimos anos. Os escritórios foram todos transferidos para Luanda e consequentemente muitos funcionários de Cabinda foram obrigados a ficar em casa ou a abandonar Cabinda e emigrar para Luanda sob pena de perder o emprego. Estamos perante políticas bem calculadas de desertificação humana e de empobrecimento económico com o objectivo de esvaziamento simbólico do seu substrato antropológico-identitário.


O projecto da construção duma refinaria em Cabinda vem supostamente, segundo a propaganda oficial, dar resposta ao clamor reivindicativo das populações de Cabinda. Todavia, não se trata propriamente duma prioridade para o Executivo angolano. Inteligibilidades avulsas do inner circle do poder em Angola desmentem que o Executivo de João Lourenço tenha como prioridade o atendimento das necessidades das populações de Cabinda. A verdade é que o projecto da refinaria é um grande negócio. Colossal! A prioridade está exactamente no negócio que já está a mexer com o clube dos predadores de cifrões. Segundo um assessment do processo de licitação internacional em 2018, a preferência do Executivo angolano recaiu inicialmente sobre o consórcio United Shine, de Hong Kong, que traz à ribalta um nome de vulto nas lides da pilhagem em Angola: o russo-israelita Arcadi Gaydamak, muito próximo ao antigo presidente JES. Entretanto, passado um ano, as autoridades angolanas decidem unilateralmente substituir a United Shine pela Gemcorp, fundada pelo oligarca búlgaro Atanas Bostandjev em Londres. Trata-se duma empresa gestora de investimentos e que administra parte dos fundos do estado angolano, sendo parceira importante do Executivo de JLO com escritórios na Praia do Bispo, em Luanda.


A decisão resulta de encontros oficiosos mantidos em Sochi por entidades angolanas com os putativos investidores à margem do Forum Económico Rússia-África (23 e 24 de Outubro de 2019). Foi aí que Diamantino de Azevedo, o ministro dos petróleos e recursos naturais, terá convidado a United Shine a abandonar o projecto. Como era de esperar, instalou-se um conflito que já está a mobilizar advogados em Londres contra o estado angolano. Contrariamente ao que alega a Sonangol quanto ao não cumprimento das clásulas contratuais pela United Shine, esta contrapõe que manteve ocupados por um ano engenheiros, comerciantes e banqueiros em prol do monumental projecto de refinaria a ser erguida na planície do Malembo (Cabinda). Pelos vistos, o estado angolano tem de preparar mais uma pipa de dinheiro para essa acção judicial para além de se submeter a mais uma exposição gratuita. A United Shine tinha em vista o desmantelamento duma refinaria do grupo líbio Tamoil instalada na Suiça nos tempos do Coronel Muammad Kadafi, porém paralizada desde 2015, e vendê-la para cumprir as obrigações financeiras (dez milhões de francos suiços) à autoridade municipal suiça como garantia contra a despoluição do local. Contra todas as previsões, a Gemcorp acaba por ficar com o projecto de bandeja, pois não vemos sinais de que a escolha tenha resultado duma nova licitação. Segundo o ministro Diamantino de Azevedo, a Gemcorp vai ficar com 90% do investimento e a Sonaref com 10% num total de 500 milhões de USD. Foi com essas premissas que acompanhámos as ́ ́núpcias ́ ́ realizadas recentemente em Cabinda aquando do conselho consultivo da ministério dos petróleos e recursos naturais entre os representantes da Gemcorp e o Executivo angolano.


O negócio previsto com esse investimento estende-se à região dos dois Congos para onde se pretende escoar os produtos refinados a partir de Cabinda. Por mais que a propaganda do regime nos venha vender a ideia de que o objectivo do projecto é servir Cabinda resolvendo o problema da escassez dos produtos derivados do petróleo, a verdade insofismável é que o projecto tende a ser altamente lucrativo e com o mínimo de riscos. Pois vejamos: em Cabinda já existe uma refinaria que produz gasóleo, jet oil, kerosene (ou petróleo iluminante) «em pequenas quantidades para servir as actividades de pesquisa e produção em Cabinda, sendo o excedente entregue à Sonangol para o consumo naquela província, respondendo assim aos objectivos para que foi montada» (Cf. Anuário Estatístico do Sector Petrolífero – 2014). Para acudir às necessidades locais, caso fosse esse o interesse do Executivo, há muito tempo teriam aumentado a capacidade da refinaria existente e não teriam esperado por um mega-projecto. Cabinda nunca devia ter passado por essas situações recorrentes da falta de combustíveis.


Uma das bandeiras que o Executivo está a levantar com esse projecto é de abrir portas para a empregabilidade em Cabinda. Fala-se de 400 empregos na fase de construção, e de dois mil, posteriormente, na primeira fase de produção. O antigo governador de Cabinda, Eugénio Laborinho, por mais de uma vez preconizou a cifra de dez mil empregos directos. Em relação a isso, há muita expectativa sobretudo da parte de jovens desempregados em Cabinda. Mas há um senão. Uma vez que o trabalho de refinação exige algumas especializações, muito provavelmente o recrutamento será na base das competências profissionais dos candidatos e dos infalíveis x anos de experiência. Ora Cabinda não tem engenharias, nem uma escola de petróleos. Num concurso nacional, os jovens de Cabinda partiriam com uma clara desvantagem. A minha sugestão seria enveredar pelo politicamente correcto: recrutar localmente e formar já, enquanto duram as obras da construção. Seria uma maneira de se acudir ao problema gritante do desemprego/subemprego em Cabinda. Uma outra constatação: nem a Sonaref nem a Gemcorp possuem escritórios em Cabinda. Certamente vão instalar oportunamente uma base logística para a construção da refinaria, mas gostava de sugerir também que instalassem escritórios administrativos locais que poderiam já nesta fase preliminar dar alguns empregos aos jovens cabindenses. Não seria correcto ter as obras de instalação da refinaria em Cabinda e concentrassem todas as decisões operacionais e estratégicas a nível de Luanda. Podem fazê-lo a partir de Cabinda. Criem-se condições técnicas e humanas!


Finalmente esta questão: será que Cabinda pode tirar vantagens desse projecto da refinaria? Vai depender do paradigma a aplicar. Se for o actual paradigma extractivo, a instalação duma refinaria em Cabinda estará longe de trazer vantagens impactantes. Temos campos petrolíferos com plataformas no mar e em terra, temos milhares de empregados locais, mas a riqueza não fica em Cabinda e nenhum empregado das petrolíferas ficou milionário em Cabinda. São formatados e treinados para serem mão-de-obra barata ou servos da gleba, produzindo riqueza para os estrangeiros. Se assim for, a refinaria fica instalada em Cabinda, mas os seus rendimentos vão para outras geografias. Os predadores levam os cifrões e deixam os tostões para os donos dos recursos. A refinaria para Cabinda pode vir a ser uma autêntica ́ ́caixa de Pandora ́ ́, aparentemente um grande prémio para a província, mas por dentro bem armadilhada. Neste caso, direi como Virgílio, o poeta romano: «timeo danaos et dona ferentes», isto é, temo os gregos mesmo quando nos oferecem presentes. Continuaremos a assistir deste modo ao depauperamento programado e sistemático da terra e das suas gentes. Isso só tem um nome: colonialismo!