Luanda - Depois de algumas horas de reflexão, decidi não enviar uma mensagem, sabendo que aquela decisão teria consequências graves no futuro. Tito era, apesar de tudo, o companheiro das longas noites de Londres; das voltas pelas universidades de Alabama e Georgia, tínhamos enfrentado juntos abusos e manifestações violentas, em nome da revolução, em fim, era o meu mentor na arena diplomática. Custava-me contribuir para sua queda.

Fonte: Club-k.net


Como compromisso, peguei no artigo e juntei-o a um pacote de recortes de imprensa que enviávamos para Jamba periodicamente. No entanto, Sean Cleary, um político Sul Africano que, entre entre outras coisas era conselheiro do Dr. Savimbi, recebeu o artigo das suas antenas de Londres, logo que foi publicado. Pegou nele e levou-o à Jamba, muito antes do meu pacote ter chegado. Pouco depois, Tito chegou lá.


Na primeira semana de novembro todos representantes foram convocados à Jamba, sem qualquer indicação do motivo da convocatória. Tomamos conhecimento dos resultados das eleições presidenciais americanas a caminho de Joanesburgo, quando o piloto anunciou, aos microfones, que George Bush seria o próximo presidente dos EUA. Gritamos espontaneamente, em uníssono, sob o olhar perplexo dos outros passageiros. Chegados à Jamba, fomos logo levados a Bembua, uma posição de escola de quadros. Ali encontramos um ambiente pesado. Pessoas conhecidas pareciam estranhas e evitavam o contacto. Logo nos apercebemos de que se tratava de uma reunião difícil.

 

No dia seguinte, a reunião começou. Em suma, Tito e Wilson eram acusados de:

1. Organizar uma rede conspirativa no interior do país, para a qual aliciaram jovens e estudantes do Partido através da transmissão de informações falsas com o objetivo de denegrir a imagem do presidente e suscitar divisões no seio do Partido, criando um clima propício para o golpe( de estado);

 

2. Coordenar acções desta rede com um plano global concertado com o Mpla e com apoio de outras personalidades estrangeiras, com quem mantinham reuniões no exterior do país, a revelia da direção do Partido;

 

3. Inspirar artigos na imprensa internacional que apontavam Tito como líder alternativo, melhor posicionado para dirigir o Partido no processo de negociações com o MPLA.


Apenas Tito estava presente como réu. A direção admitia ter autorizado os seus contactos com o Mpla, mas acusava-o de os ter encaminhado num sentido de clemência ou rendição, contrário ao que fora definido. Wilson teve a infelicidade de incluir na lista de livros que trouxera para a Jamba um intitulado " como se faz um golpe de estado". O que podia ser uma mera curiosidade intelectual, naquele contexto passou a ser uma evidência passível de um procedimento judicial.


Nesta reunião acabei por enfrentar o meu dilema de Setembro. « para quê que tenho representantes se temos de saber, por terceiros, o que se passa nas suas posições?» perguntou o Dr. Savimbi.


Como agravante, fui informado que Tito tinha instruções para ir ter com o Mais-velho Mendes de Carvalho, a Berlim, acompanhado de Alicerces Mango, representante em Bona. O facto de me ter levado a mim, representante em Londres, contrariamente as «instruções», foi interpretado como forma de «lhe fazer cobertura». A minha única defesa em relação a primeira questão foi pedir que verificassem o pacote de imprensa daquela semana onde encontrariam o artigo, depois de reconhecer que, como representante, tinha a obrigação de o ter informado na altura. Em relação à segunda questão, eu não tinha conhecimento das instruções e, para todos os efeitos, Tito era o secretário das relações Exteriores, nosso superior imediato, quando me convidou a acompanha-lo a Berlim. O meu comportamento fora, assim, considerado duvidoso, senão mesmo se concluio. Soube mas tarde, por um dos membros de uma equipe de investigação, cujo o nome prefiro manter no anonimato, que jogou a meu favor o facto de ter sido o único entre os representantes presentes, com alguma experiência dos EUA. A necessidade de manter aquela praça forte, diplomaticamente activa, tornou-se um lenitivo às acusações que pesavam sobre mim. «você mesmo é que vai lá reparar os danos que o teu amigo causou.» foi assim que o Dr. Savimbi me nomeou para a chefia da representação nos EUA.


A reunião decidiu mais tarde promover Alicerces Mango em substituição de Tito, que nunca mais saiu do interior. No dia em que me ia despedir, ainda perguntei ao Dr. Savimbi se Tito seria poupado como homem. Por um lado, queria saber qual seria a sua sorte. Por outro, sabia que Tito tinha feito amigos nos EUA que me pressionariam com a mesma pergunta. Ele disse-me que não me preocupasse. Quando os representantes regressaram ao exterior e ficou estabelecido que Tito não voltaria à sua posição, eclodiu um movimento de protestos na Europa e nos EUA, que se transformou numa campanha que visava a sua « Libertação», sustentada por jovens ex- bolseiros da Unita e seus amigos.


A direção via os promotores da campanha como « a rede conspirativa» e despachou ao exterior uma delegação numa tentativa, sem êxito, para dissuadir os jovens do seu projeto. Soubemos por alguns destes jovens que houve, de facto , a mão de Daniel Chipenda e Hermínio Escórcio por detrás dalgumas operações de «protesto». A campanha por um lado forçou a direção de dar garantias de que Tito estava vivo, apresentando-o às vagas de jornalistas e personalidades que visitavam a Jamba, e, por outro, serviu de confirmação do plano de que Tito era acusado.

 

Assim, o primeiro trimestre de 1989 foi caracterizado por acusações e contra-acusações sobre os excessos que foram tendo lugar no seio do Partido, ao longo da luta armada.

 

Em junho de 1989, depois de se ter esbatido a onda de contestação no exterior e depois da conclusão de vários outros inquéritos no interior, Alicerces Mango, Isaías Samakuva, Lukamba Gato e eu fomos novamente convocados para Jamba onde participamos numa reunião em que, a excepção de Mango, nos vimos no banco de réus.

 

Estava presente na Sala: Dr. Savimbi, Miguel Nzau Puna, Tony da Costa Fernandes, Jorges Valentim, Salupeto Pena, Geraldo Sachipengo Nunda, o General Wambu e o Dr. Aniceto Hamukwaya.

 

As acusações incluíam a participação em reuniões discretas e a não revelação de conteúdos de conversas conspiratórias com Tito; no caso de Lukamba Gato, acrescia a acusação de ter permitido encontros românticos entre Tito e a mãe Ana Isabel, uma das esposas do presidente, na sua residência em Paris. Nesta reunião fui ainda informado de que quando acompanhei Tito a Berlim fiz papel de «palhaço», pois a reunião com o mais-velho Mendes teve lugar na noite anterior ao nosso pequeno almoço. O caso ganhava outros contornos, mais Tito, o principal acusado, não estava presente.

 

Jorge Valentim e Tony da Costa Fernandes foram os principais« advogados da corte».


As acusações, defesas e algumas admissões levaram quase a noite inteira.


No fim do exercício, o presidente entendeu passar uma esponja por cima daquele período complexo e conturbado, abrindo uma nova pagina nas relações entre a direção e os representantes ali presentes. Nesta altura, Tito, Wilson e suas famílias continuavam vivos, embora com a liberdade condicionada.


Ao longo do ano de 1990 e princípio de 1991, a administração e o Congresso americanos mantiveram o seu interesse pela sorte de Tito, fazendo inquéritos de vez em quando e enviando delegações à Jamba que pediam especificamente para se encontrar com ele. A comissão de informações da Câmara de representantes chegou mesmo a advertir, através de Calvim Humphrey, principal oficial de contacto, que se algo se passasse com Tito terminaria o programa de ajuda a Unita.


Depois da assinatura dos acordos de Bicesse, a 31 de Maio de 1991, deslocou-se à Jamba uma delegação de assistentes de congressistas, que se avistou com Tito em meados de Junho de 1991. O representante americano, na Jamba, também se avistou com Tito em meados de Julho pela última vez. Criara-se um consenso geral em Washington segundo o qual Tito já não corria perigo, pois o país tinha entrado numa nova era da sua história. Apesar deste consenso, ainda em agosto de 1991, o líder do Angola Task Force na Câmara dos representantes, o Congressista Dave McCurdy, que era também membro da comissão de informações, enviou um pedido de encontro com Tito, em Luanda, onde estaria no dia 6 de Janeiro de 1992. Tito não apareceu, mas veio ao seu encontro o Vice-presidente Chitunda que justificou a sua ausência por motivo de trabalho. McCurdy não ficou convencido.


Os americanos queriam manter esta pressão elevando o nível de oficiais que iam pedindo encontros com Tito, o que foi aumentando também as suspeitas da direção. Quando, em Março de 1992, Tony da Costa Fernandes e Miguel Nzau Puna revelaram a morte de Tito, Wilson dos Santos e suas famílias, ocorridas em Novembro de 1991, fiquei - como muitos dos meus colegas- surpreendido e, para ser honesto, profundamente magoado.


Depois das declarações de Tony Fernandes à " voz da América", chamou-me o Vice-presidente Chitunda, da Jamba, confirmando-me as mortes, mas instruía-me para que não deixássemos que os EUA cortassem o programa de ajuda não militar, destinado a apoiar o Partido na sua transformação de organização militar em organização política civil. Na óptica do VP Chitunda, o timing das revelações e a utilização de desertores pagos para o efeito visavam claramente prejudicar as nossas relações com os EUA e afectar os resultados das eleições que se esperavam em Setembro daquele ano. Em resposta, eu disse que achava esta conclusão lógica. Porém uma coisa era a deserção de Puna e Tony; Outra coisa era a morte de Tito e Wilson e suas famílias. Era difícil entender e, muito menos, explicar aquelas mortes depois de terem sobrevivido aos julgamentos de 1988 e 1989 e em plena implementação dos acordos de paz de Bicesse.

 

Chitunda retorquiu num tom peremptório:« maninho Jardo, o que temos de fazer agora é salvar o Partido.» A conjugação da notícia das mortes com a fuga de Tony e Puna criou um verdadeiro terramoto. Perdeu-se o mês de março em batalhas mediáticas de acusações e contra-acusações. Jim Baker, secretário de estado americano, enviou uma carta ao Dr. Savimbi, pedindo esclarecimento sobre o assunto.

 

Finalmente, em abril, o Dr. Savimbi viajou da Jamba para o Luena, onde fez o primeiro comício público depois daquelas revelações, durante o qual assumiu a responsabilidade daqueles acontecimentos, enquanto presidente do Partido. Em Washington, o programa de assistência já aprovado para aquele ano sobreviveu, mas o lustro da Unita tinha-se perdido.

 

Os amigos a quem se tinham feito garantias de que Tito não seria morto acharam-se enganados e concluíram que o timing das mortes foi « deliberadamente selecionado» para não ter qualquer impacto negativo sobre o programa de assistência durante o período difícil de guerra. Os que mais capital político investiram na Unita, sobretudo os democratas, foram os que mais desapontados ficaram e preferiram « desprender-se » da causa.


Em retrospectiva, as mortes de Tito e Wilson tiveram um impacto negativo na trajectória politico-diplomática da Unita que, internamente, não foi adequadamente avaliado. Causaram um certo realinhamento dos americanos e retração dos amigos na comunidade internacional, em simultâneo com outra retração da própria direção do Partido que passou a interessar-se mais « pelo que se passava nos musseques de Luanda, do que por aquilo que se passava nas capitais ocidentais.»


Em suma Tito procurou ser um «agente de reformas» no seio do Partido, numa altura em que era também o homem indigitado para contactos exploratórios com o « inimigo» de então. Eram papéis incompatíveis, especialmente naquele contexto revolucionário.

 

* Extraído do livro de Jardo Muekalia, "Angola a segunda RevoluçãoMemórias da luta pela Democracia"