Luanda - "Confesso que tenho alguma dificuldade em partilhar o sentimento de solidariedade irrestrita que o governo parece manter em relação às personalidades agora condenadas em França".
Fonte: Novo Jornal
Angola não foi julgada neste caso
Condenação ligados às lutas intestinas francesas
A condenação pela justiça francesa de um grupo de personalidades que participaram numa operação de comercialização de armas do leste europeu para o governo angolano, então acossado pela rebelião armada chefiada por Jonas Savimbi, voltou a dar azo a uma série de confusões, alimentadas em especial pela imprensa, em todo o mundo.
A primeira confusão tem a ver com a própria designação como o caso foi apelidado pelos jornalistas. Em definitivo, “Angolagate” é um nome erróneo, apenas explicável pelo desejo dos adversários das autoridades angolanas de manchar a sua reputação. Isso acabou por ser confirmado pela ausência de qualquer responsável angolano na lista das personalidades que foram a julgamento.
Angola não foi julgada neste caso. Nem poderia sê-lo, por uma dupla razão: em primeiro lugar, o governo, na época em que os factos ocorreram, tinha toda a legitimidade para adquirir armas, com o propósito de enfrentar a guerrilha da UNITA; em segundo ligar, as armas adquiridas nos países do leste não transitaram pelo território francês.
As personalidades em causa foram condenadas por crimes de tráfico de influências, corrupção e tráfico de armas. É esta última acusação, sobretudo, que se tem prestado às maiores confusões, inclusive por parte de Angola. Na verdade, a mesma tem a ver única e exclusivamente com o facto de a Brenco – a empresa de Pierre Falcone que ajudou o governo angolano a viabilizar esse negócio, fundamental para manter a soberania do país – não ter pedido às autoridades francesas autorização para se envolver nesse tipo de transacção, como a lei exige.
Ou seja: esse crime não tem nada a ver com o destinatário das armas e muito menos com a legitimidade do governo angolano. Segundo relatos a que tive acesso, em nenhum momento o juiz francês mencionou qualquer embargo de armas para Angola (inexistente) ou pôs em questão a legitimidade das autoridades angolanas.
Ora, por que razão a Brenco não pediu essa autorização? Quase certamente, por receio que sectores do Estado francês, em particular o então ministro da Defesa, não a concedessem, em virtude do apoio que prestavam à UNITA. Assim, a empresa preferiu recorrer ao tráfico de influências e ao aliciamento de altos funcionários franceses, para realizar a operação solicitada (e paga) por Angola. A Brenco devia saber, portanto, que estava a mover-se numa zona bastante cinzenta, que lhe poderia acarretar consequências, como aconteceu. Era, digamos assim, um “risco do negócio”.
O julgamento e a condenação deste grupo de personalidades estão também ligados às lutas intestinas francesas. Por exemplo, uma das origens das pistas contra as actividades da Brenco partiu do antigo presidente François Chirac, que receava que os rendimentos obtidos pela referida empresa na operação de venda de armas a Angola fossem utilizados para financiar a campanha de um dos seus opositores, Balladur, que tinha o apoio de Pasqua.
Pessoalmente, confesso que tenho alguma dificuldade em partilhar o sentimento de solidariedade irrestrita que o governo parece manter em relação às personalidades agora condenadas em França. É claro que, mesmo tendo elas sido pagas pelo seu serviço (legitimamente), a gratidão das autoridades e – por que não? – dos angolanos em relação a eles é compreensível e justifica-se plenamente. Mas a violação das leis francesas por parte delas, em especial o aliciamento de altos funcionários do Estado, é da sua inteira responsabilidade.
A avaliar pelos antecedentes dessas personalidades, a sua relação com Angola é meramente conjuntural, não assentando em qualquer cumplicidade político-ideológica. No passado, Pasqua, por exemplo, sempre foi um dos apoiantes da UNITA. Outro dos condenados, Marchiani, é uma conhecida figura de extrema-direita.
Como angolano, o que me interessava era o reconhecimento da legitimidade do governo de obter os meios necessários para impedir uma vitória militar da UNITA, que, a suceder, teria lançado o país numa era das trevas. Isso ficou definitivamente claro.