Luanda - "A velha geração que ainda governa o país tem sido incapaz de reconhecer a sua falência completa na moralização da sociedade. Sem essa moralização as hipóteses de igualdade são mínimas já que o mérito individual, a competências profissionais e até a visão inovadora fica subordinada ao subjectivismo da aprovação política. O reconhecimento do fracasso neste ponto não iria retirar-lhes o mérito histórico de ter combatido pela independência e de ter dado a paz aos angolanos".


Fonte: SA

Com os efeitos da guerra ou do 27 de Maio...
Hoje é um motivo para falta de coragem e burrice

Aos trinta e quatro anos de independência, o país deveria oferecer já uma vida diferente aos seus filhos.


Mesmo que tenhamos de lembrar a guerra, já se passaram quase oito anos de vida em paz. Os mais graves males de que padece esta Angola de 34 anos estão obviamente ligados à guerra mas não só. A guerra contribuiu imenso para o gran-de palco de injustiças sociais em que o país se transformou mas, ainda assim, começa a ser hora de encararmos com frontalidade e coragem os outros factores que também foram responsáveis pelo actual estado de coisas. Somado o argumento da herança colonial e o dos efeitos da guerra, temos de assumir que ainda nos resta parte da responsabilidade para o estilo de governação que, ao longo dos tempos, criou zonas cinzentas de promiscuidade e práticas discricionárias de gestão.


Esquecida a guerra e a heran-ça colonial, um olhar honesto para o país não pode deixar de ver a corrupção, profusamente instalada como uma incontornável marca dos nossos tem-pos. Vemos igualmente a fraca administração pública e gestão dos bens públicos submissos aos caprichos individuais ligados aos colarinhos brancos. Não há nada na nossa administração que não seja alterável com uma boa cunha, com um bom nome ou com uma boa orientação superior. Mesmo as leis são contornáveis e enfraquecidas dependendo de quem as aplique ou as use, revelando toda a fraqueza deste nosso Estado. O mesmo se aplica a valores. Os valores como a honestidade, a defesa do bem público ou o tratamento igual no serviço público são habitualmente objecto de punição, despromoção ou alvo de tratamento jocoso. O mérito profissional é algo que nada vale. Muitos dos quadros que, com mérito, ocupam lugares e funções de responsabilidade tiveram de passar pela vergonha de ceder ao status quo ou, também exemplos desses, tornaram a sua capacidade técnica tão óbvia que só muita cara de pau os deixaria de fora.


Esta nossa sociedade angolana de 34 anos está profundamente marcada põe estes hábitos e vícios de gestão. A sociedade está toda corroída desses males e eles são, ao mesmo tempo, os grandes entraves do sucesso individual. Qualquer indivíduo da minha geração, a caminho dos cinquenta anos, que é, assumidamente, uma geração da independência, não tem hipótese de atingir o su-cesso individual se não se curvar ou à corrupção, às regras estabelecidas ou ao carreirismo político vigente. A geração que se segue, abaixo dos quarenta anos, tem menos oportunidades ainda e o caminho da porta da cozinha é uma boa saída para o futuro. Por isso, a minha geração ainda sofre com cada momento que tem de dobrar a coluna, mas os mais novos não se mostram nada constrangidos. A quebra de valores mo-rais está a subverter a imagem do angolano. De trabalhadores, corajosos e persistentes, hoje raramente vemos esses atributos serem associados aos ango-lanos. Podemos até argumentar com os efeitos da guerra ou do 27 de Maio, mas hoje raramente somos vistos como corajosos. A definição como ‹‹povo heróico e generoso››, que era uma virtude afirmar, hoje é um motivo de chacota quase para significar falta de coragem e burrice. É um insulto à nossa história de luta, mas ninguém se importa com isso. Aos poucos a minha geração sucumbiu aos apelos financeiros e desistiu de lutar contra o que lhe é superior. Alguns de nós, lentos a compreender os fenómenos, atrasaram-se e ainda têm a utopia de lutar contra a corrente. Mera utopia. Vão acabar todos, como nós próprios, com uma legenda na testa: ‹‹Estou à venda. Preciso de alimentar a minha família››.


A velha geração que ainda governa o país tem sido incapaz de reconhecer a sua falência completa na moralização da sociedade. Sem essa moralização as hipóteses de igualdade são mínimas já que o mérito individual, a competências profissionais e até a visão inovadora fica subordinada ao subjectivismo da aprovação política. O reconhecimento do fracasso neste ponto não iria retirar-lhes o mérito histórico de ter combatido pela independência e de ter dado a paz aos angolanos. Aos 34 anos de independência deveria ser um dever patriótico reconhecer-se que a corrupção fugiu ao controlo e mina cada vez mais o Estado e a vida das pessoas, tal como se deveria reconhecer que os modelos de ascensão social e profissional estão invertidos. Assentam na cunha, no expediente político e em grupos de interesses. A intriga, as lutas intestinas pelo poder e os jogos de equilíbrios ou de alianças politicas fazem hoje parte importante das estratégias de alcance ou de manutenção de poder. Não há como fugir a esses fenómenos que se alastraram do topo da governação para as estruturas locais e empresas públicas.


Genuinamente, achamos que os mais velhos pretendem o melhor para o país. São e estão bem intencionados e, cer-tamente, fazem o seu melhor. Só não conseguem moralizar. Quanto mais tentam, pior fica e quantos anos mais se mantenham no poder mais a situ-ação se descontrola. É notória uma acentuada incapacidade real de corrigir os vícios criados pela governação em tempo de guerra e causados pelas opções governativas que levaram aos fenómenos acima referidos. O sucesso das obras e de algumas políticas económicas acaba perdendo o seu real impacto na sociedade por obra e graças dos esquemas, da corrupção e apropriação desmesurada de determinados grupos de interesses. A construção de casas pelo go-verno, por exemplo, é originalmente positiva mas perde o seu impacto se, depois, essas casas vão para os filhos, namoradas e pessoas indicadas pelos mes-mos grupos de sempre. Quem não esteja nessas ‹‹trupes›› fica de fora uma e mais uma e repetidas vezes até ‹‹baixar a crista›› ou aderir. Isso é aplicável a um conjunto de exemplos. Mesmo que o Estado faça um grande esforço para dar mais dignidade aos angolanos há pelo meio grupos de interesse que se vão aproveitar disso para lucrar, perante a incapacidade do Estado de se fazer autoridade. Esses grupos emanam do interior do Estado. Têm relações familiares directas ou por afinidade com os principais responsáveis do Estado. Tudo isso fragiliza o Estado ao ponto de existir hoje a forte suspeita de que algumas leis são inspiradas não no interesse supremo da Nação mas no interesse económico de deter-minados grupos. Esses grupos estão claramente fora do controlo. Estenderam os seus próprios tentáculos e criam agora as suas próprias redes de influência. Podem manipular o mercado, podem fazer lobbies para alterar ou desrespeitar a lei e podem subverter a ideia originária do um negócio do Estado. Cada um de nós sabe que há exemplos desses por aí.


Aparentemente, a nossa governação já não está capaz de corrigir a situação, por muito intenções que se anunciem. Ao invés de acabar, o que vemos acontecer é a reprodução em escala menor dos erros que vêm de cima. Se o ministro trabalha com a sua empresa ou com a da filha, o chefe de departamento faz o mesmo e o homem dos recursos humanos também. ‹‹Se ele faz, porque não farei eu tam-bém?›› Nestes trinta e quatro anos o tempo é de mudança radical. Já passamos a idade de Cristo e continuamos sem esperança no futuro, mesmo perante políticas governativas aceitáveis ou leis democráticas. Têm de nos dar mais do que a simples a possibilidade de sobrevivência.