Lisboa - Nas elites de vários países africanos há a convicção de que, fora do poder estatal, não há possibilidade de influência nem de bem-estar e muito menos de riqueza. Muitas guerras tiveram essa convicção como um dos grandes motivos, sendo Angola um exemplo.

Fonte:Publico

Os efeitos dos primeiros anos de independência de Angola foram devastadores, sob ação conjugada do abandono das empresas coloniais, a estatização generalizada e a eclosão de nova guerra.


Peter Lindbergh transformou supermodelos em mulheres reais (e mulheres reais em supermodelos)


O resultado foi a escassez de bens essenciais e a total perda de valor da moeda. Inevitavelmente tiveram início dois processos: o mercado informal de produtos e moeda estrangeira e a corrupção. Neste caso ainda de baixos montantes, mas muito generalizada na obtenção de pequenos privilégios.


O mercado informal, em grande medida conduzido por quitandeiras em bases de sobrevivência, foi combatido – inclusive com a queima dos seus locais de venda pública, sob acusado de ser veículo para constituição de uma burguesia nacional. Atitude tradutora dos preconceitos ideológicos, ruiu bruscamente com a preparação dos acordos de Bicesse e a liberalização dos preços, que se alinharam pelos do informal.

Previsões da altura acreditavam que nesses operadores informais estava a futura classe empresarial angolana. Aconteceu algo diferente e mais complexo. Uma vaga de privatizações foi desencadeada com o mesmo frenesi da estatização pós-independência, fazendo emergir uma nova camada de proprietários, em geral procedentes dos serviços e empresas públicas, beneficiando de vantagens, como os acertos diretos, ou seja, sem concurso publico e a preços muito baixos.


Na prática, passou-se dos subsídios ao consumo nas lojas oficiais a subsídios aos novos proprietários. Ao fim de certo tempo, os mercados informais ganharam novas instalações de funcionamento e alguns dos seus operadores concentraram capitais de certa importância. No sul do país, esse facto permitiu-lhes um nível elevado de importações da recém-independente Namíbia, prática já anteriormente levada a cabo por proprietários tradicionais de gado, poderoso instrumento de troca.

Negócios e guerra

O recomeço da guerra introduziu novos e mais determinantes elementos. Em qualquer parte do mundo a guerra é um “multi empreendimento” e grande oportunidade de negócios. Em situações de embargo de armas é normal que os beligerantes elaborem táticas de contorno a essas situações e recorram a expedientes camuflados. O que não é aceitável é pessoas bem colocadas aproveitarem para obter pagamentos paralelos em benefício pessoal. Um caso de compra de armas à Ucrânia envolveu um empresário francês e membros do gabinete da Presidência da República angolana, conforme revelado em julgamento por tribunal parisiense. Lucros individuais foram detetados, em valores muito importantes, bastante acima dos casos anteriores de comissões ilegais na compra de outras mercadorias.

Este caso representou um momento de passagem a patamar financeiro superior e a forte presença de generais no enriquecimento.


Nas elites de vários países africanos há a convicção de que, fora do poder estatal, não existe qualquer possibilidade de influência nem de bem-estar e muito menos de riqueza. Muitas guerras tiveram essa convicção como um dos grandes motivos, sendo Angola um exemplo. As sucessivas formulas de “governos de unidade” visavam satisfazer tais anseios: dividir o Estado de cima abaixo. Num desses acordos, assinado em Lusaka, o Ministério da Indústria ficava com o MPLA, o do Comércio com a UNITA; o petróleo com o MPLA, os diamantes com a UNITA.

Aliás, a UNITA já então possuía uma bem desenvolvida estrutura de extração e venda de diamantes, com apoio de países vizinhos não produtores mas que, subitamente, apareceram como exportadores. Não há dados concretos sobre esse volume de negócios, mas é seguramente dos mais rentáveis de Angola, pelo tempo que durou, pelas áreas de extração usadas e pelas conexões estabelecidas. Um verdadeiro tesouro deve ter sido construído.

Sobre o lado governamental foi publicada pelo então jornal O Angolense uma lista de dezenas das maiores fortunas de finais do século passado, cujo teto era da ordem dos cem milhões de dólares e o Presidente da República à cabeça. Incluía, salvo uma ou outra exceção, altas personalidades do Estado, da Sonangol e do generalato. Lista meramente indicativa com montantes em ordem de grandeza, deve ser vista nesses termos.


A presença de generais e a visibilidade a curto prazo de empreendimentos seus – por exemplo no transporte aéreo, em clínicas privadas e atividade comercial – era explicada pelos próprios como seguindo o exemplo histórico japonês, onde os militares tiveram papel de relevo na construção da potência nipónica. Comparação que esquece a grande diferença de métodos e efeitos.

À medida que a guerra caminhava para a vitória militar do Governo, aumentavam as iniciativas de acumulação de capital a partir de posições no aparelho governativo e sua clientela imediata. Em todo o tipo de reuniões, desde encontros de médios proprietários, informais ou em associações patronais, até à presidência da república, difundiu-se um “movimento” que afirmava a necessidade de criar uma classe empresarial angolana e abandonar a discrição envergonhada assumindo a riqueza publicamente, até à ostentação, como se veria mais tarde.

Na ausência de mercado, portanto, sem capital privado, o recurso a meios do Estado passou a ser justificado como necessidade para criar tal classe com mais rapidez, favorecendo para isso pessoas consideradas de confiança, quer dizer, amigos, colaboradores diretos e familiares. O ex Presidente da República assumiu o papel líder neste processo e preparou alguns de seus filhos, regressados de anos de estudo no exterior, para posições centrais no âmbito desta nova classe que, de detentora do poder político, passaria a deter também poder económico. É a Classe-Estado mencionada pelo politólgo francês J.P. Bayard. As obras de reconstrução pós-guerra foram oportunidade para grandes negócios, desempenhando a Sonangol e a construção civil papéis centrais, através de comissões enormes em troca de contratos e adjudicações. Áreas como limpeza urbana, telecomunicações, supermercados, importação de equipamento e alimentos, foram assumidas por empresários angolanos com base no capital acumulado por essas vias.


Mecanismos

Nessa direção criou-se uma mecânica a quatro velocidades: obtenção de comissões em grandes negócios, empréstimos bancários muitas vezes nem sequer pagos, acesso ao cambio oficial do BNA em volumes elevados e criação de empresas de fachada.

O acesso ao câmbio oficial representa fator decisivo num país onde esse acesso é restrito e onde há duas taxas de câmbio, sendo a paralela muito mais onerosa. Na diferença já reside uma alta margem de benefícios, inclusive porque permite colocar no paralelo parte das divisas obtidas e não remetidas ao exterior. Grandes transferências de moeda convertível foram de facto feitas através das vias legais do BNA, representando privilégio reservado a uns poucos, em momentos de muita necessidade de divisas para projetos de desenvolvimento interno ou dificuldades na obtenção de fundos modestos, destinados a tratamentos médicos ou apoio a estudos.

Assim, nos últimos anos da guerra, parcerias foram-se formalizando entre investidores nacionais e estrangeiros – muita incidência em portugueses até pela facilidade da língua – e ficou patente que o exterior era o objetivo maior dos novos ricos angolanos, uns para investir, outros para depositar fundos, outros para compras de luxo. No caso dos depósitos, aliás, era prática antiga, tendo apenas crescido exponencialmente os montantes.

Em 2017, ano da eleição de João Lourenço, Angola possuía 320 multimilionários, segundo o New World Wealth, tendo os milionários registado uma subida de 82% nos 10 anos precedentes, segundo relatório daquele grupo. Os dados evoluíram muito em relação à lista de O Angolense cerca de vinte anos antes. Os mesmos nomes continuam presentes, mas com elevações às vezes astronómicas nos montantes, somando-se novas individualidades. O ex-Presidente, agora reforçado pelas fortunas de uma filha e um filho, manteve a liderança nas novas listas e, em preparação da sua saída da presidência, nomeou um filho, Filomeno dos Santos, para dirigir o Fundo Soberano, que deveria constituir o principal instrumento de captação financeira do país e uma filha, Isabel dos Santos para PCA da Sonangol, empresa da única grande riqueza ativa de Angola.

Mas foi mais longe e, a escassos meses de deixar o poder, atribuiu direitos de construção do porto da Barra do Dande – velha ideia alternativa ao obsoleto porto comercial de Luanda – a um consórcio onde tinha presença destacada sua filha mais velha - com direitos de exploração por trinta anos como contrapartida ao investimento. João Lourenço anularia a atribuição, considerando-a ilegal. Não tinha sido objeto de nenhum concurso nem sequer aviso público, revelando, além disso, uma evidente pressa na elaboração para aproveitar os derradeiros meses no cargo pelo ex Presidente.

A economia angolana funcionava assim com base nos recursos do petróleo e na movimentação de capitais derivados de dinheiros públicos. O empresariado desta forma constituído atuava com a mesma mentalidade dos prestadores de serviços estrangeiros: fazer lucros imediatos sem preocupação de diversificar e transferi-los para o exterior.

Na verdade, importadores locais não viam com bons olhos a diversificação, pois perderiam negócios geradores de sobrefaturações colocadas no exterior. Exemplos situam-se em produtos alimentares, farmacêuticos e petróleo refinado mais sofisticado, uma vez que uma única refinaria, em larga medida desatualizada, não cobre as necessidades do país. A suspensão das obras de uma segunda refinaria no Lobito ficou sob a suspeita de obedecer a esta estratégia.

Abaixo desta camada multimilionária, atua um segmento proprietário de médias empresas comerciais ou de serviços em áreas urbanas, completada com alguns agricultores da mesma dimensão, em número reduzido., embora exista um ou dois casos de grandes proprietários rurais com presença entre os milionários, mencionados até entre os que deveriam repatriar capital.

Uma terceira camada é composta pelos maiores operadores dos mercados informais, designação mais determinada pela sua história e localização de instalações, pois no resto quase nada os distingue do comércio formal.


Finalmente uma quarta camada, compreende pequenos agricultores, sobretudo dos arredores de Luanda, Benguela e Lubango, com excedentes suficientes para comercializar e proprietários tradicionais de gado. Os rendimentos respetivos são baixos e, no caso dos pecuaristas, orientam-se tanto quanto podem para o mercado da vizinha Namíbia, como já vimos.

Estas duas últimas camadas só muito raramente disfrutaram de acesso ao crédito ou a divisas ao câmbio oficial e, mesmo assim, em volumes sem qualquer comparação com a camada de topo. A acumulação de capital que fazem é, em maioria, insuficiente para investimento capaz de fazer subir a dimensão dos seus negócios. Não é acumulação delinquente como as dos bilionários, multimilionários e a maioria dos milionários.

Num momento em que se divulgam movimentações financeiras interbancárias de Angola com Portugal, de capitais angolanos em Portugal com Dubai e paraísos fiscais (vários deles em membros da União Europeia), seria interessante obter dados sobre o mesmo tipo de movimentação destinada a Angola. Ou seja, a repatriação de lucros para aplicar no carente mercado angolano e verificar em que sentido esta camada empresarial contribui: se para fazer de Angola importador ou exportador de capitais.

Especialista em assuntos africanos