Lisboa - Quanto mais condicionalismos enfrentar a estratégia de poder de João Lourenço maior será a preservação dos interesses de certos grupos do passado. O presidente poderia evitar esses mesmos condicionalismos celebrando um novo pacto político amplo e fora da estrutura do MPLA.

Fonte: JE

A governação actual de João Lourenço encontra-se marcada por um conflito entre as elites políticas e económicas do MPLA. Para entendermos essa disputa torna-se necessário compreender as relações entre as variações institucionais do Estado e societais, o pacto da elite e a conjuntura política, económica e social interna.

Importa considerar, igualmente, o conflito armado que deflagrou entre 1961 e 2002. Principalmente durante o período de guerra civil (1975-2002) assistiu-se a uma ostracização da sociedade civil devido à natureza político-militar do conflito, impossibilitando a abertura de um espaço emancipatório de liberdades sociais e de políticas na esfera social. Nesta fase, institucionalizou-se uma lógica de desregulação da ordem político-constitucional através de acções políticas promovidas pelo presidente José Eduardo dos Santos (JES), cujos poderes, na prática, extravasavam os limites previstos na Lei Constitucional de 1992.

 

Assistiu-se, pois, a uma alteração na forma de governo, do semi-presidencialismo para uma presidencialização do governo, principalmente quando JES exonerou França Van-Duném do cargo de primeiro-ministro e nomeou outra figura para o mesmo cargo, entre 1999 e 2003 – o que constituiu uma clara violação constitucional, por omissão e usurpação de competências pelo Presidente, sem nenhum pronunciamento do Supremo Tribunal.

 

O presidente JES constituiu um Estado forte e bem estruturado em matéria de capacidade coerciva, visando exclusivamente a preservação do seu poder. Para este fim, formou uma guarda pretoriana (Unidade de Segurança, Unidade de Guarda Presidencial e grupo especial Chacal) fortemente militarizada, leal e obediente. Esta estratégia enquadrou-se, perfeitamente, na perspectiva de Maquiavel, segundo a qual um Príncipe deveria deter uma guarda para a sua própria defesa. Conseguiu ainda assegurar a submissão das Forças Armadas Angolanas e instituiu um temível sistema de segurança do Estado, reunindo, assim, as condições para governar de forma ininterrupta por 38 anos.

 

O poder hegemónico de JES consolidou-se na fase de elaboração da Constituição de 2010, onde se formalizou a eliminação da figura do primeiro-ministro e a constitucionalização de um governo unipessoal. Este passou ainda a controlar os poderes executivo e legislativo, por ser sempre o líder do MPLA, o maior partido na arena parlamentar.

Pacto de regime ou de elite angolana

O nascimento de um pacto de regime ou de elite surgiu no seio do MPLA, servindo para estabelecer as regras e práticas políticas na gestão de JES. O pacto não nasceu logo em 1979, com a ascensão de JES ao poder, depois da morte do presidente Agostinho Neto. Começou, sim, a ser forjado através de uma estratégia de afirmação da autoridade política de JES no seio do MPLA, ao afastar figuras históricas das estruturas do partido e ao esvaziar o poder do Comité Central do MPLA (com o aumento do número de membros). Privilegiou, no entanto, o fortalecimento do Bureau Político como o órgão mais relevante do MPLA, onde exercia um maior controlo sobre a sua entourage e demovia os críticos da sua gestão governativa.

 

Para obter uma aceitação da sua estratégia ao nível do partido adoptou uma lógica clientelar na gestão dos recursos do Estado, distribuindo, portanto, muitas benesses pelos seus camaradas de partido. Nomeando, exclusivamente, membros do seu partido e familiares seus e da cúpula do partido para os cargos da Administração Pública, empresas públicas e órgãos do Estado. JES governava, assim, com e para os seus. Apenas incluiu membros da oposição nas estruturas do governo aquando do Governo de Unidade e Reconciliação Nacional, evidenciando, assim, que a mudança do regime de partido único, em 1992, não retirou tanta influência política ao MPLA, porque este ainda domina e controla toda a Administração Pública e o aparelho do Estado.

 

Neste sentido, quem entrava para a estrutura de topo do Estado angolano estava, portanto, a aceitar o pacto de elite, caso contrário acabaria por ser excluído de cargos relevantes.

A importância do pacto de elite e o controlo sobre a sociedade civil

O pacto de elite tornou-se vital para conter o surgimento de uma figura que pudesse ousar concorrer contra o presidente JES. Deste modo, tornou-se relevante controlar a débil sociedade civil angolana, nomeadamente os órgãos de comunicação social públicos e privados, principalmente estes últimos, cujo financiamento e gestão depende de figuras do regime angolano.

 

Assistiu-se ainda à criação de uma espécie de movimento social que apenas visava a aproximação do Presidente aos títulos de “arquitecto da paz” e de “grande líder”, gerando um fenómeno de “idolatria” mediática e de “bajulação” social. Também alguns dos clubes desportivos foram criados por figuras ligadas ao regime angolano, cuja missão consistia, sobretudo, em travar o crescimento do nível de descontentamento social da juventude angolana. Socialmente, instituíram-se as festas de rua (as famosas maratonas) onde se comercializavam a preços muito baixos (e por vezes distribuíam gratuitamente) bebidas alcoólicas.

O controlo sobre a sociedade civil e a pressão da conjuntura interna e externa

O controlo social e político da sociedade civil frágil através de um forte escrutínio do sistema dos serviços de segurança de Estado, principalmente dos críticos da gestão eduardista, nunca foi uma garantia suficiente para JES colocar à prova a sua “suposta” popularidade em eleições directas e claras, talvez receoso da experiência de 1992. Então não conseguiu obter maioria absoluta na primeira volta, tendo, assim, que disputar a segunda volta contra Jonas Savimbi, a qual não chegou a ser realizada por causa da guerra. JES só aceitou concorrer às eleições dez anos depois do fim da guerra e no quadro da Constituição de 2010, onde o sistema eleitoral presidencial não é tão evidente.

 

A governação de JES foi bastante marcada pela guerra civil que contribuiu para a desestruturação da sociedade civil e impediu a fiscalização da actuação dos responsáveis políticos. Por exemplo, a imprensa esteve fortemente condicionada nas críticas ao Governo, por causa do risco de vida dos jornalistas (o jornalista Ricardo de Mello foi assassinado em 1995) e de associação à UNITA. Os efeitos da guerra influíram, ainda, sobre a distribuição dos recursos do Orçamento Geral de Estado (OGE) a favor do sector de defesa e de segurança, aspecto que se manteve no pós-guerra civil.

 

A despesa total prevista no OGE para estes sectores passou de 10%, em 2002, para uma média de 15,5%, entre 2010 e 2016. Por sua vez, entre 2010 a 2016, em média, as despesas nos sectores da educação e da saúde representaram apenas 7% e 5%, respectivamente. Estes valores contrariam o sentido expectável de um país que precisava de distribuir de uma forma mais equitativa os ganhos da paz e as receitas associadas à exploração dos seus recursos naturais, visando erguer as bases para o desenvolvimento sustentável do país, segundo o relatório do Centro de Estudos e Investigação Científica -CEIC.

 

A alocação de avultados recursos aos sectores de defesa e de segurança pode ser explicada pela necessidade de preservar a elevada capacidade coerciva do Estado e sustentar um pacto de elite através de uma distribuição clientelar dos recursos públicos. Afectando, negativamente, a conjuntura social e política do país que se tornava cada vez mais tensa e com um potencial explosivo, pelo facto de a população jovem começar a ansiar por uma melhor qualidade de vida.

O sistema político angolano: a disputa entre João Lourenço e José Eduardo dos Santos

A saída do presidente JES, depois de um forte desgaste da sua imagem associado à corrupção sistémica, possibilitou a afirmação de João Lourenço. O terceiro presidente angolano trouxe consigo uma elevada expectativa política, bem como a necessidade imperiosa de primar por uma governação diferente do passado recente do país, com a tónica no combate à corrupção que afectaria, necessariamente, figuras da anterior gestão, como Isabel dos Santos. Por isso, JES não estava disposto a ceder a totalidade do poder a João Lourenço, provocando, deste modo e numa fase inicial, uma situação política de bicefalia de poder. A presidência do MPLA estava com JES que, desta forma, comandava o poder legislativo, mas João Lourenço detinha o poder executivo, sem liderar o partido, não exercendo uma influência directa sobre os deputados do MPLA.

A disputa política e o impacto no pacto de elite

A disputa política colocava em causa a autoridade política de João Lourenço, servindo, igualmente, para impossibilitar o estabelecimento de um novo pacto de elites em torno do novo presidente. Este novo pacto representaria o fim da dominação dos recursos do Estado por parte da elite eduardista, provocando, necessariamente um processo de substituição da elite eduardista pelos lourencistas. Contudo, sem a presidência do partido, João Lourenço não tinha as condições políticas para renovar o pacto e criar novas lealdades políticas, visto que o pacto de regime é sempre articulado no seio do MPLA.

 

Por um ano, a elite eduardista manteve a sua influência na nova gestão do país. Por isso, o vice-presidente da República, Bornito de Sousa, no discurso de apresentação de cumprimentos ao Presidente João Lourenço, no final do ano de 2017, avisou que: “para uns, acelerado demais; para outros, distante demais das directivas; outros há que o colocam na fronteira da quebra da unidade, motivo de mal-entendidos e naturais desconfortos. O que importa assinalar é que a acção do presidente da República assenta nas premissas eleitorais constantes da Estratégia do Líder e no Programa de Governo do MPLA para o período 2017-2022”.

 

O discurso de Bornito de Sousa traduzia a perspectiva dos eduardistas face ao regime, segundo a qual o presidente João Lourenço encontrar-se-ia numa posição inferior, politicamente, à do presidente do partido. Assim, a única solução no sentido da sobrevivência política de João Lourenço seria assumir a disputa como um facto político, caso contrário, estaria condenado a realizar apenas um mandato devido ao funcionamento do presidencialismo de partido que obrigava João Lourenço a ser o líder do MPLA, para garantir a recandidatura às presidenciais de 2022.

 

O presidente do partido poderia forçar a apresentação de uma outra personalidade (mais fiel a si e à ala eduardista do partido) às presidenciais angolanas, porque os partidos angolanos detêm o poder exclusivo de apresentar candidatos às eleições presidenciais. Deste modo, a conquista do lugar de presidente do partido tornou-se inevitável para João Lourenço para garantir a sua recandidatura, impor a sua autoridade política e estabelecer um novo pacto e novas alianças e lealdades políticas.

 

A disputa política acabou por fragilizar o sólido pacto de regime trazido da gestão de JES, principalmente por causa das exonerações de João Lourenço. Este exonerou José Filomeno (“Zenu”) dos Santos do Fundo Soberano; Isabel dos Santos da Sonangol; rompeu com o contrato entre a Televisão Pública de Angola e a Semba Comunicações, pertencente a Welwitschia (“Tchizé”) dos Santos e Paulino dos Santos (“Coréon Dú”); e não reconduziu Manuel Hélder Vieira Dias (“Kopelipa”) como ministro de Estado e chefe da Casa de Segurança. Em suma, retirou privilégios económicos e influência política e social aos eduardistas.

 

O presidente estancava assim o grau de influência de certos rostos ligados ao eduardismo e a estabelecer a sua autoridade política no sistema político angolano. Contudo, teve de aguardar até 8 de Setembro de 2018, a data do Congresso Ordinário do MPLA, para ser aclamado líder do partido e logo neste dia tomou a decisão de reformar alguns históricos militantes do Bureau Político, estabelecendo a sua hegemonia de poder e unipolaridade.

A renovação do Pacto e o controlo sobre a sociedade civil

João Lourenço assumiu uma ruptura com as velhas elites eduardistas, cujos membros designou de marimbondos e deixou de contar com a colaboração destes para controlar a sociedade e certos segmentos sociais mais activos. Este grupo passou a utilizar os seus recursos económicos para condicionar a nova estratégia de poder de João Lourenço. Por exemplo, os órgãos de comunicação social sobre os quais exerciam influência passaram a noticiar e a escrutinar regularmente a governação do actual Executivo, que assim passou a estar sujeito a uma maior pressão política e mediática, numa altura que as taxas de crescimento são negativas, na ordem de 2,6%, 0,1% e 1,1% (entre 2016 e 2018).

 

O descontentamento social sofreu um agravamento, em particular por causa da elevada taxa de desemprego de 29%, segundo o Instituto Nacional de Estatística de Angola, pelo que se antevê, desde já, que a promessa eleitoral de criação de 500 mil novos postos de trabalho não será, em princípio, cumprida. Esta é uma das promessas eleitorais mais importantes do actual Governo, principalmente num contexto social em que a sociedade civil parece adquirir um dinamismo de protesto social e de contestação – o que poderá servir aos interesses políticos e eleitorais da oposição, que a cada acto eleitoral tem conseguido ganhar terreno ao MPLA.

A conjuntura actual e a estratégia de poder de João Lourenço

O fracasso das promessas eleitorais e a disrupção com o pacto passado, envolvendo elites fortes e capazes de interferir na gestão dos recursos do Estado, acabam mesmo por condicionar toda a estratégia de poder de João Lourenço. Isto porque, se, por um lado, a sociedade civil almeja um maior bem-estar e justiça social, por outro, as elites, com potencial para participar de forma mais activa na dinamização e alavancagem da economia, evitam utilizar os seus recursos para estes fins. Quanto mais condicionalismos enfrentar a estratégia de poder de João Lourenço maior será a preservação dos interesses de certos grupos do passado.

 

O presidente poderia, pois, evitar os referidos condicionalismos ao celebrar um novo pacto político amplo e fora da estrutura do MPLA, o que significaria a introdução na esfera de governação de figuras externas ao seu partido e a implementação de uma nova dinâmica social e política. Esta opção conduziria a um redimensionamento da geometria de poderes do presidente e à transformação da Assembleia Nacional numa plataforma de consensos políticos. Sem a introdução de uma nova dinâmica e promoção de uma estratégia inclusiva da sociedade civil tornar-se-á impossível evitar futuros condicionamentos políticos das velhas elites e melhorar a actual conjuntura política. Para este desiderato importa acabar com uma governação para ou com os seus, como no passado.