Luanda - Há três semanas, se a memória não me atraiçoa, a Rádio Ecclesia em Cabinda deu o pontapé de saída ao programa Vox Populi (A voz do Povo) com os microfones abertos aos cidadãos. O tema em debate era exactamente o processo do combate contra a corrupção em Cabinda. Acompanhei o programa até ao fim. Os intervenientes não pouparam críticas contra os órgãos de justiça em Cabinda, sobretudo a PGR.

Fonte: Club-k.net

Os ouvintes defenderam que, contrariamente ao que se tem passado noutras partes de Angola onde as detenções por crimes de corrupção passaram a fazer parte da crónica diária dos noticiários, em Cabinda a luta contra a corrupção estava ainda na estaca zero. Alguém até ironizava que Cabinda era a única província de Angola com a ficha limpa em termos de casos de corrupção de colarinho branco. Curiosamente, passada uma semana apenas, a PGR em Cabinda emitiu vários mandados de detenção contra gestores públicos bem conhecidos em Cabinda: o Director do Gabinete do Governador Marcos Alexandre Nhunga, o Secretário Provincial da indústria, geologia e minas, o Director do gabinete jurídico do Governo da Província, o Administrador do condomínio Aldeia Olímpica e o antigo Secretário-Geral do Governo da Província; com a excepção deste último por se achar ausente da província, foram todos detidos e conduzidos às celas do SIC em Cabinda. Constou- me que estavam ainda no prelo outros mandados de detenção emitidos pela PGR, mas travados ́ ́in extremis ́ ́ por ordens ́ ́extra muros ́ ́.


Não pretendo forçar uma relação de causa e efeito entre o programa da Ecclesia e a actuação da PGR em Cabinda, mas é preciso reconhecer que a comunicação social tem uma influência determinante nas transformações sociais e políticas e que caso a contestação dos ouvintes naquele programa tivesse ajudado a sacudir a letargia da PGR em Cabinda, a estação radiofónica diocesana teria apenas prestado um bom serviço público. Entretanto, a actuação da PGR em Cabinda levantou imediatamente expectativas na opinião pública cabindense de que teria chegado a hora da justiça tão reclamada pelos cidadãos. Era a hora de todos aqueles que lesaram o interesse público com actos ilícitos serem punidos pela justiça. Todavia, essa expectativa esfumou-se em pouco tempo com a informação recebida hoje de que todos os detidos foram postos em liberdade por um magistrado do ministério publico que avocou a si posteriormente os processos contrariando o seu colega que emitira os mandados. Noutros termos, um dos magistrados mandou prender e outro mandou soltar. Ora, estes factos intrigantes continuam a pôr em causa a idoneidade e a lisura do funcionamento das nossas instituições judiciais. Permitam-me que faça aqui algumas elocubrações a propósito.


Em primeiro lugar, defendo em nome da dignidade humana, que nenhum inocente deve ir parar injustamente à cadeia. E se tal for o caso, deixo aqui uma nota de solidariedade para com todos esses cidadãos que foram privados de liberdade nem que seja por algumas horas. Neste caso, cabe a eles a decisão de promover alguma acção judicial de ressarcimento contra o Estado pelos danos causados. Mas se estão suficientemente indiciados por crimes de peculato, a pergunta que não se cala é: por que foram soltos? O que levou o Procurador Dongala Mbambi a desautorizar a decisão do seu colega Procurador José Macosso? Afinal quem é que está a servir os interesses do Estado entre ambos? Não estaremos aqui diante do jogo de interesses e de influências estranhas à justiça como nos habituaram? Em segundo lugar, pela mesma razão que não aceito inocentes presos, também não aceito criminosos à solta. Aliás não estou aqui a inventar nada: é assim que as coisas devem funcionar e é nesta direcção que apontam os discursos políticos actuais do PR João Lourenço: é preciso combater a impunidade! Este é o verdadeiro calcanhar de Aquiles da actual cruzada contra a corrupção.


Foi a impunidade que levou a corrupção a tomar as proporções hercúleas e alarmantes que hoje estão a causar pasmo e indignação popular. A cultura dos intocáveis está bem enraizada no seio do stablishment e o PR João Lourenço tem consciência disso, mas não está claro se os seus correligionários estão a remar na mesma direcção do líder. Infelizmente, como ele próprio já o reconheceu, as principais forças de bloqueio estão acoitadas no partido governista em todas as suas teias institucionais. São os próprios dirigentes do MPLA que de várias formas estão a sabotar a luta contra a impunidade. Tenhamos a hombridade de dizer que a corrupção em Cabinda tem nomes, rostos e endereços. Mas a impunidade está sendo promovida ́ ́selectivamente ́ ́ pelo próprio MPLA em Cabinda. Infelizmente a PGR não está isenta do dirigismo do poder político e alguns magistrados não estão ainda vacinados contra as tentações de vantagens materiais e carreiristas, pelo que mesmo em plena guerra contra a corrupção, não se coibem dos aliciamentos para sonegar processos ou matá-los pura e simplesmente com os ditos arquivamentos. Se em Cabinda os títulares dos cargos públicos não devem ir à cadeia por serem do partido governista, mesmo com fortes indícios de cometimento de ilícitos, com o argumento de que não há risco de fuga, porquê então não teve igual tratamento o antigo administrador e primeiro secretário do MPLA no Belize, Ndimba Tati? Provavelmente deve ter sido um ́ ́patinho feio ́ ́ sem padrinhos dentro do seu próprio partido.


Diante desse cenário, é bom trazer aqui também à liça o contexto político-social de Cabinda caracterizado por uma cultura revindicativa muito arreigada na mentalidade insular de que os cabindendes se tornaram emblemáticos. Noutros termos, se durante 45 anos de (des)governação do MPLA, os cabindenses reclamaram pelo abandono, pela pilhagem das suas riquezas sem quaisquer reflexos de desenvolvimento local, faz sentido soar hoje aos nossos ouvidos de que o dinheiro destinado para o bem-estar das populações fora desviado pelos próprios cabindenses? Faz sentido que todos esses que nos (des)governaram nesse período todo viessem a terreiro dizer que a Cidade Alta não mandava dinheiro para acudir as necessidades das populações quando afinal se ́ ́enriqueceram ́ ́ com o tal dinheiro que não havia? Essas questões fazem-me defender uma abordagem transversal da luta contra a corrupção para não resvalar num puro justicialismo inusitado cujo resultado não passaria duma simples punição dos prevaricadores, deixando escapar a dimensão restaurativa tão importante para cimentar uma nova mentalidade de respeito pelo bem público e de moralização das instituições republicanas.


Para terminar, quero aqui deixar um apelo a todos os operadores da justiça em Cabinda (SIC, PGR, Tribunais, etc) para que assumam com mais seriedade o trabalho que lhes foi confiado pelo Estado e procurem em todas as circunstâncias salvaguardar a justiça, mesmo que tenham que se opor ao direito quando este conflitua com a justiça: devemos sempre seguir o direito, mas quando este fere a justiça, devemos optar pela justiça (summum ius, summa iniuria = o máximo do direito, o máximo da injustiça ou seja o excesso de direito pode redundar numa injustiça). Aliás, o direito é transitório, mas a justiça é perene! Mas quero também deixar aqui uma palavra a todos aqueles que estão neste momento a atrapalhar o trabalho da justiça em Cabinda com pressões e aliciamentos aos magistrados e agentes do SIC, para que os deixem fazer o seu trabalho na base da Constituição e da lei, seguindo sempre a sua consciência. Mas acima de tudo, deixo aqui para todos, indepentemente da sua condição, este adágio latino: ́ ́hodie mihi, cras tibi ́ ́(hoje sou eu, amanhã serás tu).