Lisboa - Os angolanos acompanharam com muito interesse a sessão parlamentar do dia 19 do corrente, na qual tomou posse o Dr. Manuel Pereira da Silva no cargo de Presidente da Comissão Nacional Eleitoral. A grande lição aprendida daquela rica sessão é que o MPLA não está disponível para combater a corrupção se tal combate colocar em perigo a sua habitual vitória eleitoral, cozinhada nos computadores da CNE.

Fonte: Club-k.net

Testemunhamos intervenções de boa qualidade técnica e política de muitos deputados que defenderam a legalidade e combateram a corrupção. Mas vimos também com espanto muitos deputados a comportarem-se na Assembleia como “marimbondos” quando cá fora já costumam posicionar-se como “combatentes da corrupção”. Importa recordar aqui que, segundo o autor do novo léxico, o Presidente João Lourenço, a vespa (“marimbondo”) não simboliza a pessoa rica ou endinheirada, mas a pessoa que resiste ao combate à corrupção. Estas mesmas pessoas que se afirmam hoje dispostas a “combater a corrupção” na execução orçamental e na gestão das finanças públicas apareceram alinhadas a fechar os olhos à corrupção eleitoral, promovida e defendida pelo MPLA e executada por juízes, para o benefício da oligarquia que capturou o Estado. A máscara caíu e todos revelaram a sua verdadeira face: marimbondos.


Logo no princípio da sessão, o Presidente da Assembleia Nacional mandou ler “um ofício” alinhado, proveniente do Tribunal Supremo, a dar conta de que as providências cautelares antes interpostas já estavam todas atendidas. Mentira! O ofício tinha número, foi redigido em papel timbrado e estava assinado. Porém, não respondia as questões de mérito levantadas nas reclamações, não continha as explicações eventualmente solicitadas e recebidas do CSMJ para sustentar a decisão do Tribunal, não explicava as razões porque o Tribunal não respondeu à UNITA com similar dignidade, ou seja, por via de ofício assinado e numerado, redigido em papel timbrado, nem explicava as razões que levaram o Tribunal a violar a sua própria jurisprudência no que refere à legitimidade da UNITA para apresentar ao Tribunal reclamações e queixas para a defesa da Lei, dos direitos dos cidadãos e do interesse geral.


Ficou claro o alinhamento entre o remetente do Ofício e a mesa do presidium da Assembleia Nacional. Porém, no decurso da discussão, foi mencionado um outro ofício, do então Presidente da CNE, que dava conta de uma auditoria efectuada pela CNE à gestão danosa de Manuel Pereira da Silva enquanto Presidente da Comissão Provincial Eleitoral de Luanda. Tal documento, que também se tornou público naquela manhã – tal como o ofício do Tribunal - não foi levado em conta pela maioria dos Deputados presentes.


Ou seja, tendo o Conselho Superior da Magistratura Judicial errado por não ter incluído na sua avaliação dos candidatos os critérios “idoneidade” e “probidade”, que são os únicos estabelecidos por lei para o provimento do cargo de Presidente da CNE, e tendo sido apresentada aos Deputados evidência de falta de idoneidade da pessoa escolhida por via de um processo já por demais corrompido, os Deputados do povo preferiram, ainda assim, fechar os olhos à evidência e violar a lei e o juramento que fizeram. Tal como o faziam no tempo de JES.


O mais curioso foi o facto de, fora da Assembleia, o Presidente da República ter alinhado com os “marimbondos”, pronunciando-se a favor da ilegalidade e contra o combate à corrupção com argumentos que não colhem.


O objecto da discussão dos deputados não era o mérito ou desmérito da Resolução do CSMJ que designou o candidato. Os deputados discutiram o seu próprio projecto de Resolução, lido ali, que lhes permitiria conferir ou não posse à pessoa em causa. Se tal Resolução não fosse

aprovada, Manuel Pereira da Silva, apesar de já estar designado pelo CSMJ, não teria tomado posse. Só tomou posse porque os deputados do MPLA, com o beneplácito do seu Presidente, decidiram todos eles agir como marimbondos, resistindo ao combate à corrupção.


Esteve mal, portanto, o Presidente João Lourenço ao afirmar ou insinuar, no dia da discussão do tema por um outro órgão de soberania, que o CSMJ era o único órgão a quem a Lei confere competência para designar o Presidente da CNE, e que, exercida tal competência, bem ou mal, a Assembleia Nacional não podia fazer mais nada senão conferir posse. Não parece ser este o caso, Senhor Presidente. Por três razões:


1) O desígnio geral do Estado constitucional é que nenhum poder e nenhuma competência podem existir sem os correspondentes mecanismos de controlo e limitação. Por esta razão, o legislador constituinte atribuiu à Assembleia Nacional a competência de velar, controlar e fiscalizar o cumprimento da lei por outros órgãos do Estado.

2) Ao obrigar que a pessoa escolhida pelo CSMJ tome posse perante o órgão de soberania representativo de todos os angolanos, que exprime a vontade soberana do povo, o legislador quis que a Assembleia Nacional exercesse de certo modo os poderes que a Constituição lhe confere para “velar pela boa execução das leis”. No caso, a tomada de posse não era um dado adquirido, uma mera formalidade. A tomada de posse resultaria de um acto deliberativo da Assembleia Nacional, que foi condicionado pelos resultados de uma discussão para a aprovação ou rejeição de um projecto de resolução que, em certa medida, confirmaria ou não a decisão do CSMJ. Assim, segundo a teoria dos poderes implícitos, a decisão do Plenário da Assembleia Nacional de conferir ou não posse ao ente designado pelo CSMJ constitui um acto de controlo político ligado a uma matéria da qual somente a Assembleia Nacional tem reserva absoluta de competência legislativa, as eleições. Ademais, é ela que elege e confere posse aos demais 16 membros que compõem o órgão máximo da CNE, o Plenário, e é a ela que a CNE deve prestar contas, remetendo-lhe anualmente o seu relatório de actividades.


3) Não tendo sido eleito na base dos critérios “idoneidade cívica e moral” e “probidade”, fixados por Lei, a legitimidade e validade do acto administrativo do CSMJ torna-se discutível. Por outro lado, não tendo o CSMJ avaliado o facto de a idoneidade e a probidade do empossando terem sido alvo de contestação da parte de seu superior hierárquico em documento tornado público na sequência dos resultados de uma auditoria a seus actos de gestão, factos que só se tornaram públicos após a designação mas antes da tomada de posse, a Assembleia Nacional, no exercício implícito da sua competência de controlo, poderia decidir não conferir posse.


Enfim! Numa altura em que o Estado angolano procura afirmar-se como decididamente comprometido com o combate à corrupção institucionalizada, aceitar como legítimo um processo corrompido só consolidará a ideia de que o mediatizado combate à corrupção angolana não é estrutural nem sistémico. É seletivo e casuístico. E não visa a mudança efectiva da cultura política prevalecente nem a defesa da legalidade, do Estado de direito e da moralidade pública. Pelo contrário: o Partido no poder revelou ao País, em plena sessão da Assembleia Nacional, que vai continuar a fazer recurso da corrupção para se manter no poder.