Luanda - Hoje, 22 de Fevereiro de 2020, completam-se 18 anos desde a morte de Jonas Savimbi nas anharas de Lukusse, Moxico. O acontecimento que determinou o desfecho do longo conflito armado em Angola constitui também um bom pretexto para um “estudo de caso” a não ser negligenciado nos anais do jornalismo angolano. Se a morte de Savimbi, indubitavelmente um dos factos noticiosos mais importantes registados na história contemporânea do país, apanhou muito boa gente de surpresa, de forma alguma se poderá dizer o mesmo em relação ao Semanário Angolense, ainda na versão do seu predecessor, o jornal “Angolense”.

Fonte: ANGOLENSE, DE 25 DE MAIO A 01 DE JUNHO DE 2002

Reportagem de 2002 por   Severino Carlos 


Este jornal – ainda sob a condução de Graça Campos e dos principais quadros com os quais pouco depois viria a fundar o Semanário Angolense – seguiu sempre a “par e passo” os acontecimentos decisivos que ocorriam na frente de batalha, as matas do Moxico na região leste do país, onde havia sido montada uma impiedosa caça ao homem, Jonas Savimbi. De resto, na edição tirada um dia depois do expiro final do líder da UNITA, sábado, 23 de Fevereiro, o “Angolense” só não saiu com uma manchete dando conta desse facto de tamanha magnitude por contingências de ordem essencialmente técnica.


Não dispondo de gráfica própria (handicap prevalecente até aos dias de hoje), a quase generalidade das publicações privadas no país sempre se viram na contingência de fazer os fechos de edição dois dias antes da impressão, acarretando-lhes sérios problemas para o acompanhamento da actualidade, sobretudo no que diz respeito a notícias de última hora.


De facto, foi numa sexta-feira que o líder-fundador do Galo Negro foi morto, mas a edição do “Angolense” para essa semana foi fechada um dia antes, quinta-feira. Dispusesse o jornal de uma rotativa própria, seguramente no final do dia fatídico para Savimbi sempre haveria tempo para uma edição vespertina especial, trazendo os traços gerais do acontecimento. No dia seguinte, sábado, haveria então a edição normal com a narrativa completa do sucedido em Lukusse e várias outras estórias e análises.


Mesmo com os handicaps referidos, a edição que saíu a 23 de Fevereiro é demonstrativa de que no “Semanário Angolense” (ou no “Angolense, como se queira) sempre se praticou um jornalismo vivo e dinâmico, com uma matriz assente em análises e reflexões que, ainda assim, não anulavam a vertente noticiarista sempre necessária.
Com os dados disponíveis quanto aos acontecimentos vertiginosos que se davam no teatro das operações, restringidos até menos de 48 horas antes do “apagão” estrepitoso de Jonas Savimbi, essa edição já fazia “antever”, com a maior exactidão possível, que alguma coisa de extraordinária acabaria por registar-se a qualquer momento no campo de batalha.


Numa edição cuja manchete foi o escândalo em torno dos “bufos” da PIDE, houve no entanto uma pequena chamada na capa indicando que a UNITA estava a enfrentar horas de grandes e difíceis provações, com muitos dos seus principais generais mortos ou capturados. O título para a matéria desenvolvida no interior foi o seguinte:
“FAA apertam o cerco a Savimbi


A LESTE DO PAÍS HÁ MUITO DE NOVO”

 

De qualquer modo, foi um pouco antes, numa das edições do mês de Janeiro, que o “Angolense” trouxe a público uma manchete verdadeiramente premonitória sobre o desfecho do conflito em Angola. Estávamos a 5 de Janeiro de 2002, logo na primeira semana do ano, e o jornal titulava em letras garrafais:

“O FIM DA PICADA UNITA desmorona-se como castelo de areia”

Para estar em cima dos acontecimentos, o “Angolense” soube jogar com vários factores. Tirou não apenas proveito de uma sensível mudança que se havia dado em matéria da gestão estratégica da informação de carácter militar por parte das forças governamentais, como tratou sempre de cruzá-la com outras fontes no “inside” dos acontecimentos, para que caísse o menos possível nas teias da contra-informação, muito comum naquelas circunstâncias.


Há que dizer ainda que o jornal tratara somente de “descodificar” e antecipar-se aos sinais que o PR angolano fizera entrever quando, em discurso pronunciado em Novembro de 2001, dera nota dos famosos três cenários iminentes para o líder da UNITA: rendição, captura ou morte em combate. A partir daí o Jornal não teve dúvidas que alguma coisa de transcendental poderia acontecer a qualquer momento no curso da guerra em Angola. E foi só correr atrás do “antum” dado por José Eduardo dos Santos.


Depois da morte de Savimbi, o jornal “Angolense” teve naquele ano uma actividade muito centrada a acompanhar as rearrumações internas da UNITA, que estava então feita numa manta de retalhos, como definira Abel Chivukuvuku – que era então um dos seus mais proeminentes líderes no pós-Savimbi.


E é um pouco para recordar esse ambiente intestino na organização do Galo Negro que fazemos questão, nesta efeméride sobre o passamento de Savimbi, de trazer uma entrevista que Alcides Simões Sakala, na altura membro da Comissão de Gestão da UNITA, concedera ao “Angolense” em Junho daquele ano. Reveja o “filme” que lhe parecerá que tudo aconteceu ontem.


==================

Alcides Sakala: “NÃO MORRI, NÃO ME RENDI NEM FUI CAPTURADO” 

Por SEVERINO CARLOS

Alcides Sakala saiu finalmente da sombra. Em longa entrevista ao “Angolense”, o secretário para as Relações Internacionais da Comissão de Gestão da UNITA mostrou que não é nada cinzento e tem os miolos no sítio. Esgrimista e prestidigitador como todos os “clones” que Savimbi deixou, ele sujeitou-se à bateria de questões sem, porém, usar do truque e da truculência que caracterizaram em vida – e se calhar o notabilizaram – o falecido líder da UNITA. Diferente de Lukamba Gato, Sakala foi mais natural, embora menos efusivo, mas nem sempre convincente, ao tentar tornear todas as questões menos cómodas com o argumento da “contra-informação”. “Isto é pura propaganda”, disse Sakala um sem número de vezes. Mas o que importa é que falou e, pelos vistos, não se saiu mal. Explicou como escapou da carnificina no Leste, defendeu com garra a memória de Savimbi, o qual, de acordo com o entrevistado, tinha um plano de tréguas para ser aplicado antes do Natal passado, e garantiu que os dinheiros dos diamantes já não existem. Ele não o disse, mas é provável que no sexto andar do Hotel Presidente “se esconda” um dos futuros ocupantes das seis embaixadas a que a UNITA tem direito no quadro de Lusaka.


ANGOLENSE – É uma surpresa vê-lo aqui em Luanda, e vivo, depois de o próprio porta-voz da Presidência da República tê-lo dado como morto no Moxico. Quer contar a história? Como é que escapou?
ALCIDES SAKALA – Eu penso que no fundo havia uma desinformação e propaganda feita a partir dos camaradas que fugiam, os desertores sobretudo. Eles tinham que “vender” algo que os pudesse credibilizar junto das próprias instituições do Estado. Agora, é uma realidade que existiam enormes dificuldades, mas sem se chegar ao ponto que as pessoas quiseram debitar. Portanto, havia uma dose muito grande de contra-informação e de propaganda sobretudo.

ANG – Mas o senhor esteve gravemente doente?
AS – Não. Não estive doente. Havia, sim, grandes problemas de alimentação e todos nós estávamos debilitados. Como sabe, durante muito tempo a nossa alimentação consistiu no mel e cogumelos. Fora disso, havia apenas a caça, quando aparecia. Esse quadro era agravado com a ausência de população na província do Moxico. Por isso, as dificuldades aumentaram. Mas que era preciso avançarmos, lá isso era preciso... O que nos animou eram as nossas fortes convicções de que era preciso ir até ao fim. Além do mais, tínhamos a certeza de que haveria uma solução política para o conflito.


ANG – De qualquer modo, já em Luanda foi obrigado a permanecer muito tempo hospitalizado.
AS – Fiquei algum tempo hospitalizado para submeter-me a um “check-up”. Penso ser algo absolutamente normal e a que as pessoas estão sujeitas num contexto onde falta tudo, desde o sal a óleo. Tudo isto tinha influência no estado de saúde normal das pessoas.


ANG – Tal como o senhor, o general Numa também foi dado como morto. Ele também está aí vivo da silva. Por este andar não veremos o Dr. Celestino Capapelo a surgir dentre os mortos?
AS – Não vai acontecer. O Dr. Capapelo faleceu mesmo. Não estive presente mas tenho informações sobre isso.

ANG – E em que circunstâncias é que isso aconteceu?
AS – Penso que foi também de doença decorrente das próprias debilidades que vivíamos. Eu separei-me do presidente Savimbi no dia 26 de Dezembro do ano passado. Segui para uma outra direcção numa missão específica de que ele me incumbiu e passados mais ou menos três semanas encontrei-me com o grupo do secretário-geral [Paulo Lukamba Gato] que vinha do Luando ao encontro do presidente [Savimbi]. Infelizmente, este encontro já não se realizou porque, entretanto, o presidente faleceu em combate. Mas do Capapelo, que ficara com o presidente, nós tivemos informações posteriores de que ele acabou também por falecer de doença.

ANG – Portanto, de doença...
AS – Sim, de doença. Já agora, para vossa informação é preciso desmistificar isso: a morte do vice-presidente António Dembo também foi de doença. Ele sofria de diabetes, o que, aliado à própria conjuntura difícil, contribuiu para o seu falecimento.


ANG – Podemos saber que missão foi essa que Jonas Savimbi lhe havia incumbido?
AS – Tratou-se de uma missão específica de manobra. Como sabe, nós estávamos em manobras. A nossa coluna não era essencialmente de combate. Era uma coluna de direção e por isso tínhamos de estar constantemente a manobrar, a fim de criarmos o mínimo de condições que nos permitissem trabalhar. Mesmo debaixo de pressão militar, conseguíamos manter contatos com os nossos comandantes e vice-versa. Foi nesse quadro que me separei da coluna principal, por forma a encontrar um espaço que me permitisse trabalhar com relativa acalmia.


ANG – Alcides Sakala, o senhor foi capturado ou apresentou-se?
AS – Não fui capturado nem me apresentei. Nós tivemos um primeiro contacto com a delegação do Governo, dirigida pelo general Implacável, no dia 18 de Março. No dia seguinte, esse contacto foi intensificado num dos afluentes do rio Lungue-Bungo, perto do Lusue. Tivemos esse contacto exploratório e logo após, no âmbito da Comissão de Gestão que na altura já estava constituída, achou-se que eu e o senhor Dachala devíamos ir para o Luena. Portanto, não houve captura nem rendição.

ANG – Para o senhor, particularmente, com largos anos de vivência na Europa, aquilo deve ter sido uma dura provação...
AS – Foi, sim senhor, mas o que nos animava eram as convicções. Acreditávamos no que estávamos a fazer. Tínhamos um programa que era preciso negociar. Até à sua morte, o Dr. Savimbi foi sempre apelando ao diálogo num quadro em que tivéssemos o Protocolo de Lusaka como base de reflexão. Foi, aliás, nesse quadro que estabelecemos vários contactos com diversas personalidades e entidades. Um dos últimos contatos que o Dr. Savimbi teve foi com D. Matteo, da Comunidade de Santo Egídio, numa tentativa de se procurar, a nível internacional, uma ampla plataforma de entendimento que não se limitasse à aproximação entre as partes.

ANG – Quando é que ocorreram tais contactos?
AS – Foi a partir de Setembro do ano passado que começámos a encetar todos os contactos.

ANG – Em Janeiro ainda houve possibilidade para algum contacto do género?
AS – Nessa altura eu já não estava ao lado do Dr. Savimbi, mas creio que sim. Aliás, antes disso, quando eu estive com ele, em princípio ou finais de Dezembro do ano passado, lembro-me que ele queria decretar não um cessar-fogo no sentido estrito do termo, mas uma paragem unilateral das hostilidades durante o período do Natal para permitir às pessoas restabelecerem contactos com os seus familiares. Digamos que se tratava de uma espécie de tréguas. Estávamos a ver quem devia anunciar essa decisão da direcção da UNITA ao Mundo e à comunidade internacional.


ANG – E o que foi que impediu a concretização desse passo?
AS – Não o fizemos por razões de conjuntura militar. Tivemos de retomar a marcha e essa ideia teve de ser adiada. O presidente teve de partir e a reflexão sobre esse princípio de declarar tréguas foi adiada.


ANG – Com tudo isso, está a querer dizer que discorda da ideia de que Jonas Savimbi os tenha arrastado para uma aventura ou mesmo para o que se pode considerar um suicídio colectivo?
AS – Não foi isso. Eram convicções. Lutámos por um ideal que era a democracia no país. E eu penso que conseguimos atingir isso. Nós defendíamos o diálogo e é o que estamos a fazer hoje. Estamos a dar corpo às ideias que o próprio presidente [Savimbi] definiu antes da sua morte. Era preciso haver uma solução política, uma vez que não havia solução militar para o conflito armado. Que o bom senso prevalecesse. Foi o que nós fizemos.

ANG – Mas vocês estavam numa situação de estágio terminal mesmo do ponto de vista militar...
AS – Penso que não. Estávamos em guerra, tínhamos confiança das dificuldades extremas por que passávamos, os combates eram violentos, gerando muitas mortes, mas não era apenas a UNITA que sofria com essa situação. O próprio Governo também. E tudo isso concorreu para a solução deste problema.

ANG – Está a querer dizer que a UNITA tinha alguma condição de resistir lá na região do Moxico, com a direcção toda sitiada e após a morte de Savimbi?
AS – Era uma questão de opção. Primeiro, para se resistir é preciso aceitar, evidentemente, que isso assenta em determinada estratégia. Mas poderíamos ter continuado com esse espírito. Agora, se prosseguíssemos o que é que iríamos obter? A rendição é que nunca. Talvez lutássemos até ao fim. Sabe-se que as guerrilhas não têm por objectivo tomar conta do poder, em parte nenhuma do mundo, mas lutam para que se criem condições que conduzam a uma solução negociada. Portanto, nós resistimos na perspectiva de que haveria certamente uma solução política da questão.

ANG – Se Jonas Savimbi ainda estivesse vivo acha que o curso dos acontecimentos teria sido o que se tem verificado hoje no país?
AS – Fica difícil agora fazermos uma aproximação, porque ele já não está presente. Mas garanto que os seus esforços conduziam para essa direcção, porque eu acompanhei-o nos contactos que foram feitos. Depois, havia três elementos fundamentais em torno disso. Um era o papel da sociedade civil; segundo, o papel das próprias igrejas e dos partidos da oposição. Eram factores fundamentais que concorreram para a aproximação do problema de Angola numa base já ideal.

ANG – Jonas Savimbi que, segundo as suas declarações, estava a preparar-se para as negociações, de modo algum admitia a rendição?
AS – Nunca. Por isso é que mesmo tendo tido possibilidades de ir para fora do país, o Dr. Savimbi jamais o fez...

ANG – Diz que Jonas Savimbi teve possibilidades de ir para o estrangeiro?
AS – Sim, se ele quisesse, tê-lo-ia feito...

ANG – Mas quando? Nos últimos tempos ele estava acossado e cercado, e nem mesmo para a Zâmbia, ao que se sabe, ele podia ir...
AS – Não é verdade isso. Ele tinha plena consciência das consequências, mas morreu por um ideal, pelas suas convicções. Ele morreu de arma na mão, e isso é um ponto de honra.

ANG – Mas, para todos os efeitos, a verdade é que a sua morte acelerou o processo de paz. Foi um mal necessário?
AS – Não. O que é importante referir aqui é que nós temos um projecto social: o Projecto de Muangai. Milhões de angolanos se revêem neste programa político. O Dr. Savimbi empenhou-se na procura de uma solução política para o benefício de Angola. Morreu naquelas circunstâncias. Assim, neste momento, o que nós estamos a fazer é dar corpo às suas ideias.

ANG – Como é que leu os resultados da pesquisa “Angolense/Consulteste” publicada há duas semanas? Eles dizem que a maioria esmagadora dos habitantes de Luanda concordam com a morte de Jonas Savimbi...
AS – É normal. Sabe que a maior parte da população de Luanda é do MPLA. Não podíamos esperar uma posição diferente dos militantes do MPLA de uma forma geral.

ANG – Acha que a diferença teria sido muito grande se a pesquisa fosse feita no Huambo, Bié ou em Benguela, por exemplo?
AS – Tudo depende do espectro da sociedade alvo da sondagem.

ANG – Que imagem é que guarda de Jonas Savimbi?
AS – A de um homem de coragem, um homem de princípios, fiel às suas convicções. Dou-lhe um exemplo: não há muita gente que aceita morrer pelas suas convicções.

ANG – Em síntese, aponte duas qualidades de Jonas Savimbi...
AS – Era um intelectual, gostava de ler, um homem que se informava mas que também gostava de ensinar.

ANG – Na sua opinião, pelos vistos, ele não tinha defeitos?
AS – Todo o homem tem defeitos, mas é um bocado difícil apontar-se os defeitos do Dr. Savimbi...

ANG – O senhor, que trabalhou com ele, foi capaz algum dia de divergir dele?
AS – Não, nunca foi necessário. Num processo de trabalho há diferenças de opinião mas que não significam necessariamente divergências...

ANG – Na condição de secretário para as Relações Internacionais, a sua perspectiva estratégica coincidia sempre com a do líder?
AS – Absolutamente. Sabe que os negócios estrangeiros são domínios exclusivos da presidência. Claro que nós trocávamos impressões, mas tínhamos uma latitude para as nossas iniciativas. Muitas vezes, as nossas opiniões e decisões eram negativas, mas depois tomava-se uma decisão colectiva. Enfim, muito de negativo que se disse a respeito do Dr. Savimbi não corresponde à verdade.

ANG – Numa palavra, era um democrata?
AS – Era, sim senhor.

ANG – Humano?
AS – Absolutamente.

ANG – Mesmo não admitindo contestações?
AS – Sim, sim. A maior parte das decisões eram tomadas colectivamente. Nós discutíamos. Tínhamos um quadro próprio de funcionamento.

ANG – Olhe que do Dr. Savimbi se dizia que era cego e célere a eliminar os seus adversários. Isto também é desinformação?
AS – Não é verdade! Não é verdade! Como disse, há muita propaganda. No nosso quadro de funcionamento as decisões eram tomadas colectivamente...

ANG – E em que circunstâncias é que se deu, por exemplo, a morte do general Bock?
AS – Ele teve muitas responsabilidades nesse processo. Não entrarei em pormenores, mas o general Bock foi responsável por graves irregularidades no conflito armado em 1998. Grandes responsabilidades e omissões...


ANG – Não foi preso e depois morto?
AS – Não interessa entrar em pormenores... mas só lhe posso dizer que ele teve grandes responsabilidades no processo que nós vivemos em Outubro e Novembro de 1998.


ANG – Em Luanda escreveu-se e disse-se que o Governo foi magnânimo para com a UNITA. Não acha mesmo que se o Governo quisesse teria decapitado toda a direcção da UNITA na região leste?
AS – Podiam tê-lo feito, afinal estávamos numa guerra. Na guerra há mortes, há combates. Mas a verdade é que nós estamos aqui hoje...

ANG – Então como é que qualifica este gesto do Governo?
AS – Eu penso que o Governo também entendeu que era preciso encontrar-se uma solução política para o conflito armado. Porque se a situação no Moxico estava como estava, no resto do país não. O quadro na região centro, norte e sul, etc., era diferente. As guerrilhas estavam mais desafogadas.

ANG – Havia comunicação entre a direcção no Moxico e o resto da guerrilha noutros pontos do país e por que meios é que isso se estabelecia?
AS – Havia sim. E fazíamo-la via rádio, rádios de campanha. Era um contacto permanente entre a chefia central militar e os COP’s estratégicos e não estratégicos. Só nós no Moxico é que estávamos numa permanente pressão militar. Mas, no resto do país, a situação era, se quisermos, quase normal. Penso que do ponto de vista do Governo também pesaram prós e contras. Penso que, evidentemente, também teria prevalecido o bom senso. O que permitiu que começássemos o processo de negociações para se pôr termo ao conflito.


ANG – Como secretário para as Relações Internacionais na entourage de Savimbi, diga-nos quando é que de repente se viu sem possibilidade de efectuar deslocações?
AS – Sabe que o quadro das sanções não nos permitia efectuar deslocações para o estrangeiro. As últimas viagens foram para o Brasil e Portugal. Isso foi em 1997. A partir dessa altura vieram as sanções e deixamos de viajar para o exterior.

ANG – E o senhor não ficou sem ocupação, já que nem sequer é militar?
AS – Engana-se. Eu sou militar. Treinei-me numa academia militar da Tanzânia, em Arusha. Fiz a minha formação militar durante um ano em 75/76. Portanto, pelo contrário, tive muito que fazer. Era preciso manter os nossos representantes no exterior constantemente informados sobre a evolução do conflito, sobre o andamento da própria guerra em si. Era preciso orientar o debate e nessa altura todo o nosso esforço foi feito no sentido de procurar estabelecerem-se pontes, inclusivamente com o governo angolano, na perspectiva de uma solução política para o conflito.


ANG – Todos estes contactos eram feitos via telefone? E eram mesmo genuínos? Sabe que alguns comunicados supostamente emitidos do interior suscitaram fortes suspeitas de que eram na verdade artificialmente expedidos, em nome da direcção, por uma “task force “ no exterior?
AS – Isto não é verdade. Nós tínhamos um telefone satélite que funcionava normalmente. Também tínhamos a internet, que facilitava imenso os nossos trabalhos. As nossas placas solares funcionavam lindamente, sem problemas. Montámos uma estrutura que era constantemente movimentada. Conseguimos manter esse contacto com o exterior numa base diária. Portanto, tudo quanto se disse à volta disso, nesta perspectiva também me pareceu um exercício de desinformação.

ANG – Como interpreta as declarações recentes do general Numa acerca das circunstâncias que rodearam a morte de Jonas Savimbi? Naquelas condições de aperto alguém poderia ter “cabeça” para ouvir um relato de futebol?
AS – Havia, sim senhor. Sabe, nós tínhamos consciência de que estávamos em tempo de guerra. E era mesmo nesse contexto que tínhamos de fazer o melhor a fim de se criar as condições que nos permitissem, enfim, viver a nossa vida com normalidade. O Dr. Savimbi, por exemplo, lia muito, penso inclusive que muitas obras da sua colecção foram capturadas: biografias, autobiografias, temas de estratégia, política, etc. Nós tínhamos todas estas condições. E o Numa gostava muito de seguir o desporto, sobretudo o futebol. Tínhamos de estar informados para sabermos o que se passava no mundo. Portanto, fazíamos uma vida que podia considerar-se normal, mas dentro de em quadro de pressão militar.


ANG – O que é que lhe diz a expressão “Angola profunda”?
AS – Existem várias acepções. Mas, neste processo que vivemos actualmente, podemos falar da questão do tribalismo, por exemplo, da questão da própria raça, das minorias. Uma série de questões que precisam de ser abordadas com frontalidade. Procedendo assim, isso permitiria que a paz se consolide definitivamente neste país.


ANG – E quem, por exemplo, é tribalista? Os angolanos de um modo geral, o MPLA ou a UNITA?
AS – Estamos num processo de pacificação do país e há temas que devem ser abordados com toda a responsabilidade, para não cairmos em demagogias nem ferirmos susceptibilidades. Mas há de chegar o momento em que será preciso, no quadro da agenda da paz e da reconciliação nacional, termos de abordar questões de fundo, questões que durante muito tempo nos dividiram. Os angolanos deverão preparar-se para esse debate. Um debate frontal, um debate democrático se quisermos, mas um debate responsável.


ANG – Já agora, o problema dos assalariados de Jonas Savimbi é quanto a si uma questão extemporânea?
AS – Não existia nenhuma lista por parte do Dr. Savimbi. Em relação aos seus quadros, é natural que o partido tivesse que sustentá-los. Agora, que exista uma lista de assalariados na perspectiva que se está a colocar a questão, não. Isto é apenas desinformação, é pura propaganda, se quisermos.


============================
DIPLOMATA E MILITAR
Alcides Simões Sakala nasceu no Bailundo em 1953. Passou os últimos 25 anos da sua vida inteirinhos a servir a organização que Jonas Savimbi criou. Fez treinos militares numa academia em Arusha, Tanzânia, entre 1975 e 1976. Depois foi uma correria pelo mato, tendo chegado a comissário político e membro do Comando da Frente-Sul, chefiado por um histórico do Galo Negro, Samuel Chiwale. Foi ferido em duas ocasiões, uma delas em recontro com tropas cubanas. Mas, em 1980, por decisão de Savimbi, despiu o camuflado e passou a usar fato e gravata, tornando-se num dos mais importantes diplomatas da organização. Esteve dois anos nos Estados Unidos, três na Alemanha, cinco em Portugal e outros cinco na Bélgica. Em 1995, juntou-se ao “séquito” de Savimbi, no Bailundo, para assumir o pelouro das Relações Internacionais do Galo Negro. Ou os “Negócios Estrangeiros”, como prefere dizer.


==========================
De Manuvakola a Chivukuvuku e Samakuva
O TABU DOS (POTENCIAIS) CANDIDATOS


Bluff ou não, Alcides Sakala reafirmou ao “Angolense” o que outros dirigentes da Comissão de Gestão têm dito acerca do futuro líder da UNITA. Ou seja, nenhum membro do núcleo duro desse órgão se vai candidatar à sucessão de Jonas Savimbi, o que significa, para já, que homens como Paulo Lukamba Gato e Marcial Dachala são cartas fora do baralho.


Há, porém, uma ressalva. De acordo com Alcides Sakala, a Comissão de Gestão vai escolher um candidato fora do seu núcleo cujo nome será, a seu tempo, anunciado.


Ainda assim, “Angolense” tentou que, a título pessoal, Alcides Sakala avançasse uma escolha, ao que este se escusou. Desafiado a escolher um de três nomes – Abel Chivukuvuku, Eugénio Manuvakola ou Isaías Samakuva? –, o secretário para as Relações Internacionais da Comissão de Gestão fez o papel do bom esgrimista: “Bem, fala-se deles como candidatos. Se eles quiserem se candidatar são bem-vindos. Cada um tem uma aproximação diferente do outro, relativamente aos grandes problemas nacionais. Terão, evidentemente, as suas moções estratégicas e, em função disso, nós iremos ver quem apresentará o melhor programa”.


Relativamente a Abel Chivukuvuku, Alcides Sakala esclareceu que ele é membro do executivo da Comissão de Gestão, ocupando-se do pelouro das Relações Interparlamentares. Um dado que elucida a disposição para uma rápida caminhada para a junção dos retalhos da manta, pois a Comissão de Gestão é, para todos os efeitos, uma emanação doutrinária de Jonas Savimbi. E entre o falecido líder do Galo Negro e o jovem turco Abel, nos últimos tempos, a corrente deixara de passar. Questionado, aliás, se ele também não “entendia a linguagem” de Chivukuvuku, Sakala disse que isso era coisa do passado. “Tratava-se de uma conjuntura diferente, de guerra e conflito. E há declarações feitas num determinado contexto que tinham outras repercussões. Claro que nós fazíamos a devida aproximação. Mas isso pertence ao passado. Se quiser, é preciso que a amnistia seja também interna.”


En passant, Sakala desmentiu que haja no interior da própria Comissão de Gestão animosidades entre alguns dos seus membros. Nos mentideiros consta que há “chispas” entre os generais Kamorteiro e Numa, que supostamente mantêm uma espécie de conflito de gerações. “Não é verdade. O clima não é de chispas nem de cotoveladas. Até porque ambos já trabalham juntos desde há muito tempo”, assegurou Sakala.


Esta semana previa-se a chegada a Luanda de Isaías Samakuva, vindo de Paris. Alcides Sakala confirmou a sua condição de membro da Comissão de Gestão. Caso chegue, a perspectiva é a de que Samakuva se ocupe da actual Comissão Conjunta, funções que ele conhece muito bem.


=================================
Finanças da UNITA
A SITUAÇÃO É MESMO AFLITIVA?


ANGOLENSE – É mesmo aflitiva a situação financeira da UNITA ou se trata de bluff?
Alcides Sakala – Nós temos imensas dificuldades financeiras. Estamos sem dinheiro...

ANG – Como assim? Vocês não tinham dinheiro vivo e diamantes?
AS – Tudo que tínhamos e que pudesse dar dinheiro foi capturado, diamantes, etc.

ANG – Diamantes no valor de quanto?
AS – É difícil estimar isso...


ANG – Mas dizem que o Dr, Savimbi andava permantemente com uma bilha de diamantes...
AS – Não é verdade. Também não era assim tanto diamante...


ANG – USD 200 milhões. A UNITA não teria em “cash” esse valor?
AS – Não chegava a tanto...

ANG – Mas, então, se vocês não têm dinheiro, como é que pretendem falar em modernização do partido? Como é que vão tornear esse handicap? Vivendo apenas do que o Estado vos der?
AS – Estamos a reflectir seriamente à volta destas questões e vamos encontrar soluções num quadro legal e transparente. Também podemos viver das quotizações, como os demais partidos. Aliás temos de nos transformar num partido civil...

ANG – Mas a UNITA, ao longo destes anos, não fez qualquer investimento no exterior? Limitou-se a vender diamantes e a comprar armas e víveres?
AS – Não fizemos investimentos nenhuns. Aliás, desde 1998 que os nossos representantes no exterior têm passado por dificuldades financeiras enormes. E isso exactamente por não termos dinheiro no exterior.

ANG – Então, há de convir que se cometeu um grande erro?
AS – Admitimos que cometemos erros no passado.
============================


MODERNIZAÇÃO DA UNITA É A PRÓXIMA BATALHA


Alcides Sakala acha que o próximo congresso da UNITA será o mais democrático da História de Angola. Ele que é um dos membros da Comissão de Gestão, com o pelouro das Relações Internacionais, faz neste trecho da sua extensa entrevista ao “Angolense” uma radiografia das atividades dessa ala da organização do Galo Negro, que diz ser transitória. Ou seja que vai existir apenas até ao próximo congresso, evento que se espera venha a juntar todos os retalhos da organização, além de escolher o sucessor definitivo de Jonas Savimbi. Para já, bluff ou não, Sakala reafirma que nenhum dirigente da Comissão de Gestão se vai candidatar à liderança do partido. A síntese das suas declarações.


OBJECTIVOS – Temos vários objectivos. O primeiro é a consolidação do próprio processo de paz. Significa consolidarmos o cessar-fogo, algo que penso que já foi conseguido. Em segundo lugar, trabalharmos para a reunificação do partido; também já estamos a dar passos encorajadores neste sentido. Começamos com discussões para acertos internos do partido, que neste momento vão já bastante avançados. Estamos optimistas em podermos conseguir uma solução que permita vivermos este período de transição até ao próximo congresso já debaixo de uma estrutura unificada. Outro dos objectivos era o levantamento das sanções migratórias. Nós sugerimos que caso não fosse possível o seu levantamento que fossem pelo menos suspensas. Penso que o Conselho de Segurança tomou nota das nossas declarações perante o próprio empenho da direção do partido neste processo de paz.


DEMOCRACIA – A Comissão de Gestão, no fundo, constitui a drecção do partido. É um corpo transitório que surge num quadro de crise, mas que tem a responsabilidade de levar o partido até à realização do próximo congresso. Será o congresso mais democrático da História de Angola. Concorrerão vários candidatos, que irão apresentar as suas moções de estratégia, e o candidato que for eleito será ele a dirigir o partido.


AGENDA INTERNACIONAL – Um dos objetivos prioritários é reafirmarmos à comunidade internacional o nosso empenho na paz. A UNITA considera que a guerra pertence ao passado. O machado da guerra está enterrado para sempre neste país. Mas para isso é necessário que tenhamos contactos directos com os governos com quem já tínhamos contatos no passado, no quadro do Protocolo de Lusaka, para reafirmarmos e reiterarmos este nosso empenho na paz e pedir à comunidade internacional para ajudar este processo, que tem dificuldades materiais. Mas se houver uma comunhão de esforços da comunidade internacional em apoio aos esforços do próprio Governo, penso que iremos ultrapassar alguns obstáculos que ainda possam criar algumas dificuldades no processo.


REUNIFICAÇÃO – O importante é termos já chegado ao princípio de que é preciso reunificarmos o partido. Isto é um dado adquirido. É importante agira estudarmos os mecanismos que nos permitam chegarmos até lá. Eu estou optimista de que poderemos ultrapassar as dificuldades e, a partir de uma só voz, vivermos esta fase transitória até ao congresso. Antes do congresso realizaremos uma conferência de quadros. Trata-se de reunir os nossos quadros para fazermos o ponto da situação do processo e explicarmos a perspectiva existente, sobretudo agora com a suspensão das sanções migratórias.


MODERNIZAÇÃO – É nosso objetivo que o partido se modernize e que se prepare para fazer face aos grandes desafios que a própria democratização implica. Esta é a nossa aposta. O próprio processo de seleção dos quadros dirigentes já se insere nesta perspectiva de democratização. Pela primeira vez, em Angola, um partido terá vários candidatos com as respectivas moções. Isto em si já é um dos passos para a democratização interna do partido e para a sua modernização. Não creio que algum partido em Angola já o fizesse alguma vez, nos seus processos internos, na selecção dos quadros de direcção. Nós seremos pioneiros. É preciso que se crie um clima que permita este debate fluído interno. É normal que haja diferenças de pontos de vista, mas quem tiver um programa melhor e se for eleito, este dirigirá o partido por um determinado tempo.