Luanda - A recente designação e tomada de posse do novo Presidente da Comissão Nacional Eleitoral (CNE) foi marcada por reclamações, pedido de impugnação e manifestações de protesto dentro e fora da Assembleia Nacional, em plena alva, com promessas de as mesmas prosseguirem até que sejam satisfeitas as pretensões dos reclamantes.

Fonte: Club-k.net

Polémico se tem mostrado também a concretização material do próprio princípio da separação de poderes e interdependência de funções no processo de interacção entre os poderes, conforme estabelece a nossa Constituição nos termos do artigo 105.º.

 

Um dos casos de relevo foi o impedimento da acção fiscalizadora da Assembleia Nacional sobre os actos do executivo, faculdade tragada por via do acórdão 319/13 do Tribunal Constitucional, de 9 de Outubro de 2013, que declarou inconstitucionais quatro dos artigos do Regimento Interno da Assembleia Nacional, na altura em vigor, proibindo a Assembleia Nacional de fiscalizar os actos do executivo.

 

Tudo isto conjugado, vamos neste pequeno intróito, que se almeja imparcial e objectivo, descer até aos fundamentos da doutrina e da legislação, procurando aclarar as nossas ideias e, quiça, identificarmos a melhor solução.

Do Princípio da Separação de Poderes e Interdependência de Funções

No dizeres de Moraes (2014 :14-16), a Constituição deve ser sempre interpretada segundo as caracteristicas históricas, políticas e ideológicas do momento, buscando-se sempre o melhor sentido em conformidade com a situação sócio-política e económica, a fim de se alcançar a eficácia normativa.

 

Ora, o que é que isto quer dizer em termos práticos – sem se perder de vista as delimitações da norma constitucional, a razão da sua existência, finalidade e extensão, ao interpretarmos a Constituição devemos sempre levar em consideração todas as questões presentes no texto legal, analisando princípios e diligenciando para que, de forma harmoniosa, o texto atinja as suas finalidades de acordo com a realidade.

 

O princípio da separação de poderes decorre da imperatividade da estruturação e funcionamento do Estado, surgindo pela primeira vez como teoria política pelas mãos de John Locke (1632-1704). Este designou os três poderes que seriam indispensáveis para as sociedades políticas, nomeadamente: os poderes legislativo, executivo e o federativo.

 

Para Locke, o poder legislativo teria a competência para criar e promulgar as leis com o objectivo de preservar a sociedade política e os seus membros. Para cuidar da execução das leis, segundo Locke, há necessidade, em muitos casos, de um poder executivo separado do poder legislativo. O Poder Federativo, para Locke, compreendia na altura o poder de fazer guerra e paz, o poder de firmar ligas e promover alianças e todas as relações externas.

Posteriormente, Montesquieu, inspirado na teoria de John Locke, entendeu que os Poderes Legislativo, Executivo e Judicial deviam ser atribuídos à pessoas distintas, sem, contudo, pontuar rigorosamente a separação entre as funções. Em Montesquieu, há verdadeira harmonia em busca da atribuição conjunta e indivisível de três órgãos, quer dizer, a co-soberania de três órgãos políticos.

A divisão de poderes foi consagrada como princípio formal fundamental na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão (art. 16.º), que expressa a criação de instituições independentes e autónomas cujas funções diferenciadas visam a eliminação do despotismo do antigo regime e garantir a liberdade e os direitos fundamentais dos cidadãos.

No nosso ordenamento jurídico, a separação de poderes está consagrada constitucionalmente (art. 105.º), que prevê no nº 3 o dever de respeito ante a separação e interdependência de funções entre os órgãos de soberania.

Segundo a cronologia constitucional, são órgãos de soberania o Presidente da República (Poder Executivo), a Assembleia Nacional (Poder Legislativo) e os Tribunais (Poder Judicial).

Porém, é nas suas competências e funcionamento que surgem frequentemente episódios de incompreensões e conflitos de interpretação, feita, tendencialmente, em função das pretensões dos actores políticos.

As competências do titular do poder executivo são as previstas nos artigos 119.º a 123.º. Dentre elas, as competências como Chefe de Estado, que compreende:

- a convocação das eleições gerais e autárquicas (al. a) art. 119.º);

- dirigir mensagens à AN (al. b) art. 119.º);

- promover junto do TC a fiscalização preventiva e sucessiva da constitucionalidade de actos normativos e tratados internacionais (al. c) art. 119.º);

- nomear e exonerar Ministros de Estado, Secretários de Estado e outros membros do executivo (al. d) art. 119.º)

As suas competências enquanto titular do Poder Executivo (art. 120.º), consistem fundamentalmente na definição e orientação da política governativa do País. Seguem as competências nas relações internacionais (art. 121.º), as competências como Comandante em Chefe (122.º), as competências em matéria de segurança nacional (art. 123.º) e as competências legislativas (art.124.º), todos da CRA.

Formalmente, não se inscreve na esfera de competências do titular Poder Executivo a faculdade de alterar unilateralmente as decisões dos poderes, quer legislativo, quer judicial, sob pena de comprometer o princípio da segurança jurídica e o normal funcionamento das instituições.

O Poder Legislativo pertence à Assembleia Nacional (art. 141.º CRA), sendo um órgão unicameral representativo de todos angolanos, que exprime a vontade soberana do povo e exerce o poder legislativo do Estado. Trata-se de um órgão legislativo por excelência.

O Poder Judicial, a quem compete a função jurisdicional, cabe aos Tribunais que são o órgão de soberania com competência de administrar a justiça em nome do povo (art. 174.º).

O Conselho Superior da Magistratura Judicial (art. 184.º) é o órgão superior do Poder Judicial a quem compete a gestão e disciplina da magistratura judicial, absorvendo, entre outras responsabilidades, a de apreciar o mérito profissional e exercer a acção disciplinar sobre os juizes, bem como realizar o concurso curricular para o provimento de juizes.

A interdependência de funções pressupõe, não a interferência, mas a dependência mútua ou o encadeamento de actos e funções dos distintos poderes ou órgãos de soberania, que actuam de forma livre e independente, sem influências entre si.

No caso sub judice, o concurso publico conducente à selecção e designação do Presidente da CNE, compete ao Conselho Superior da Magistratura Judicial ( al. a) do nº 1 do art. 7.º da Lei nº12/12, de 13 de Abril – Lei Orgânica sobre a Organização e Funcionamento da Comissão Nacional Eleitoral). À Assembleia Nacional compete apenas conferir eficácia ao acto através da tomada de posse.

Da Designação e Tomada de Posse do Presidente da CNE

O Presidente da CNE é escolhido na base de concurso público curricular e designado pelo Conselho Superior da Magistratura Judicial, o qual deve suspender as funções judiciais após a sua designação (nº 1 do art. 7.º da Lei nº12/12).

Além do Presidente da CNE, compõem a Comissão Nacional Eleitoral dezasseis cidadãos desigandos pela Assembleia Nacional, por maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções, sob proposta dos partidos políticos e coligações de partidos políticos com assento parlamentar, obedecendo aos princípios da maioria e do respeito pelas minorias parlamentares (al. b) do art. 7.º da Lei nº12/12)

Porém, estranhamente, esta lei impõe como critérios para a designação dos dezasseis cidadãos a CNE, entre outros, a idoneidade cívica e moral, probidade e competência técnica (nº 2 do art. 7,º), sendo a este respeito omissa em relação à escolha e designação do Presidente da CNE, o que, salvo melhor opinião, pressupõe dizer-se que para a escolha e designação do Presidente da CNE não se aplicam os critérios da idoneidade cívica e moral, probidade e a competência técnica. Facto com o qual descordo por completo, havendo, por isso, necessidade de se rever a lei para a correcção desta falha, em homenagem a transparência e lisura dos nossos processos eleitorais.

Entendo que, talvez, o legislador tenha partido do princípio de que tratando-se de um magistrado judicial é suposto ser, em princípio, um elemento insuspeito relativamente aos critérios da idoneidade cívica e moral, probidade e competência técnica. Todavia, por se tratar de lei especial, devemos revê-la e corrigir.

Por Simão Pedro, Me

Jurista&Politólogo

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