Lisboa - A miséria em que viviam os trabalhadores locais e os maus tratos aplicados pela COTONANG, empresa que explorava o algodão em Angola, foram descritos em fevereiro de 1961 num relatório emanado do quartel de Malanje, com caráter secreto.

Fonte: Lusa

Numa cópia da "parte que interessa", como se lê na missiva partilhada com outras estruturas militares, refere-se que a sublevação indígena era motivada pela miséria e pelos maus tratos infligidos aos trabalhadores pelos funcionários da empresa, práticas apoiadas, "em geral", pelas autoridades administrativas.

 

"Desta aliança perniciosa resulta que o indígena não sabe nem pode fazer a distinção entre COTONANG e Estado", lê-se no documento, do qual se conserva uma cópia no Arquivo Histórico da Marinha, entre milhares de documentos que a instituição tem vindo a desclassificar e que a Lusa consultou.

 

O relatório foi assinado e datilografado pelo comandante, o major Camilo Augusto de Miranda Rebocho Vaz, que viria mais tarde a exercer funções de governador-geral no território.

 

"Os próprios cipaios [polícias africanos] contribuem para a exploração do indígena, fazendo chantagem, visto que por vezes se dirigem às sanzalas procurando quaisquer indígenas que, segundo eles, foram mandados chamar ao chefe do Posto", relata o oficial, explicando que o trabalhador, "apavorado", começava então a oferecer dinheiro ao guarda para que o deixasse fugir.

 

Após negociações, "o cipaio lá se vai embora com os haveres do indígena, em troca da ´libertação´ deste".

 

A exploração dos trabalhadores tornava-se "ainda mais rigorosa" quando havia inundações que destruíam a sementeira do algodão. Eram obrigados a "semear duas e três vezes", trabalho que ninguém lhes pagava. No final, só recebiam pela colheita existente.

 

"Deste modo, sentindo-se constantemente ludibriado, quer negar-se a cultivar o algodão, que, em geral, lhe não dá qualquer vantagem, porque esta atitude, que é legal, só os conduz a castigos corporais, sem o devido respeito pela pessoa humana", advertia o responsável.

 

Era neste ambiente "enegrecido ainda pela atividade gananciosa de certos comerciantes", que crescia "a semente da rebelião", sendo o trabalhador incitado a "não pagar imposto" e a não cultivar o algodão, além de algumas culturas que lhe assegurassem "o indispensável alimento".

 

No relatório, assume-se que esta atitude seria reprimida, dando então lugar à entrada em cena dos feiticeiros, que - "fazendo umas feitiçarias" - tornariam "o indígena" imune "às balas dos brancos".

 

"E é mais uma exploração, visto que, para obterem a proteção terão de pagar", contava o relator.

 

Face ao exposto, o comando assumia que a operação Cassange, em curso, seria de efeito efémero, caso não fosse acompanhada de "uma eficaz proteção ao indígena", sendo de exigir à COTONANG, no mínimo, "o cumprimento" da legislação existente sobre o algodão.

 

O documento foi recebido no quartel general de Luanda, onde o chefe da 2.ª repartição, o major Manuel dos Santos Moreira, atestou que estava "conforme" e manifestou "inteira concordância" com a parte final.

 

Pareceu-lhe "inteiramente justo e humano" que se acabasse desde logo "com os abusos" sobre "os indígenas da Baixa de Cassange", sob pena de um recrudescimento da "sublevação das populações".

 

Entre as preocupações das chefias militares estava também a ação do Partido Socialista Angolano naquela zona: "Não cessará, impondo-se captar as populações para não serem arrastadas de vez por aquela propaganda".

 

Do relatório, foram enviadas cópias a diversas entidades, entre elas o Governo Geral, o Estado Maior do Exército e a Armada.

 

No Comando Militar de Angola (quartel-general, em Luanda), o relatório foi recebido sem surpresa, com o general Monteiro Libório a afirmar que o "estado de espírito das populações indígenas" da Baixa de Cassange foi "habilmente aproveitado para uma finalidade política" que as levou à sublevação.

 

O oficial manifestava esperança numa rápida atuação do governador-geral para pôr cobro ao "lamentável e condenável estado das coisas".

 

Esta troca de informação e opinião ocorreu entre 11 e 22 de fevereiro. A 15 de março deflagrou uma guerra que durou 13 anos (1961-1974) e que culminou com a independência de Angola (1975) e das restantes províncias ultramarinas, em África, como eram designados os territórios sob administração portuguesa.

 

O MPLA considera que a guerra teve inicio em 04 de fevereiro, com o assalto a vários edifícios públicos em Luanda, entre os quais a cadeia, dia que ficou consagrado como feridado em Angola. No entanto, tanto Portugal como a UPA/FNLA consideram a data de 15 de março, quando ocorreu um massacre no Norte de Angola perpetrado pelas forças de Holden Roberto, com a consequente resposta das forças coloniais.