Lisboa - As vítimas do 27 de Maio não podem mais continuar a ser esquecidas ou a ser colocadas no último patamar da cidadania como se não fossem filhos de Angola.

Fonte: Publico

"Deixem de mentir à comunidade internacional"

Novas fumaças de promessas se levantam para ofuscar as falsidades do governo de Luanda com respeito à resolução do trágico conflito do 27 de Maio. Volta e meia enchem-nos os olhos e os ouvidos com o anúncio de medidas salvíficas que, de acordo com os seus promotores, trarão o desejado alívio e conforto espiritual à sociedade angolana e a farão reconciliar-se consigo mesma depois de sucessivas tragédias e capítulos intoleráveis da história causadores de profundas divisões entre os seus filhos.

 

Vamos ser francos: o projecto de resolução de conflitos afigura-se-me de uma monumental nulidade, tal a precipitação e a vereda de embrulhadas em que se atolam os trabalhos de uma Comissão que ninguém sabe o que está a fazer; uma Comissão que, no fim de contas, mostra o artifício de intenções em que se movem os governantes. O que se sente é que as lideranças do MPLA apenas nos querem entreter com maquiavelismos e um sem-fim de vacuidades.

 

Está esgotada a energia dos meus sentimentos para com o regime do MPLA. Não vejo razão para me alegrar quando ouço ou leio as discursatas do ministro da Justiça. Estou literalmente céptico diante de tantas fraudes e sofismas. Só me resta protestar. Fazer o que fez o cônsul Marco Túlio Cícero no Senado romano no ano de 63 ao dirigir a sua fala a Lucio Catilina, um patrício dissoluto que conspirava para subverter as estruturas do Estado, destruir Roma e assassinar os cidadãos de maior estalão social. Em discurso arrebatado e incisivo, Cícero gritou para o traidor: – “Até quando abusarás da nossa paciência, Catilina?”[1].


Ao senhor ministro faço exactamente a mesma interpelação. “Até quando abusará o senhor da nossa paciência, a nós vítimas e sobreviventes do maior genocídio da história recente de Angola?” Pensar que se pode pacificar um povo ferido no seu passado por tantas brutalidades e horrores, entregando-lhe certidões de óbito ou contentando-o com um memorial e, no fim, festejar o “perdão” com odes à reconciliação, é um gesto de suprema hipocrisia e afronta. Reputo estas medidas de obscuras porque ofuscam outras mais importantes das quais nem sequer se fala ou se trata com indiferença. Sem rodeios, é-me difícil entender onde se pretende chegar com todo este espectáculo em volta do famigerado projecto de reconciliação.

Desde que comecei a puxar o fio de mentiras que perpassa pelas declarações do MPLA e dos seus governantes, tenho-me dado conta da vasta teia de afirmações subtis e de artimanhas recorrentes que a máquina de propaganda do Partido-Estado usa no propósito de adulterar a realidade. Uma dessas mentiras é sobre os “excessos” no 27 de Maio que dizem ter sido o único facto relevante que explica as mortes então acontecidas. Os seus responsáveis exclusivos teriam sido “militares que agiram desgarrados da cadeia de comando”. Nem Agostinho Neto nem qualquer outro alto responsável partidário e governamental tiveram culpa dos excessos e calamidades que se abateram sobre o país.


Nenhuma das historietas forjadas pelo MPLA se compara a esta. É uma historieta que amesquinha a sociedade e a escarnece na sua integridade por se tratar da mais despudorada e refinada mentira destinada a confundir as opiniões públicas e a dividir os sobreviventes. Outro ignominioso exercício de propaganda do regime estatal repressivo salpicado de arengas sedutoras, é proclamar que o perdão entre os desavindos do passado (entre carrascos e vítimas, entenda-se) abrirá as portas celestiais da reconciliação nacional. Uma lógica estapafúrdia e extremamente reprovável, como se pode ver, alimentada pelas chamas de uma cegueira política inaudita. Não compreende o senhor ministro que os seus desígnios e do MPLA já foram postos a descoberto? São desígnios fraudulentos que promovem o esquecimento da culpa e da responsabilidade de quem precipitou o país nos boqueirões do inferno e legitimou todo o tipo de ilegalidades e de massacres em massa no 27 de Maio; são desígnios que promovem o esquecimento sobre o que foi o banditismo institucional que assolou todo o espaço nacional com agentes do Estado, armados e fardados, que prendiam e matavam às cegas em nome de um doentio facciosismo partidário; e que, inúmeras vezes, inclusive, se serviam dos instrumentos do Estado para saciar vinganças pessoais.

 

Não se engane mais o país e a comunidade internacional com estéticas confusas e estéreis em torno dos direitos humanos. O Estado angolano é moral e constitucionalmente obrigado a apresentar a verdade dos factos sob pena de estar a distrair a consciência cidadã dos angolanos quando declara que o sistema institucional do país se funda no Estado de Direito e no respeito às normas e aos direitos fundamentais. Uma pura irrisão, o governo já provou de sobejo ter dos fundamentos do Estado Democrático de Direito um entendimento mais que suspeito e obscuro. A toda a hora mente ao país.


Se a gangrena política do 27 de Maio cortou os direitos do povo e o privou de todas as garantias de liberdade e de segurança individual, ainda hoje volvidas tantas décadas o país continua estrangulado no direito de gozar de todas as suas garantias jurídicas. A lei excepcional e despótica decretada por Agostinho Neto para suspender os preceitos fundamentais de cidadania, sobretudo o direito de saber quem foram os assassinos que brandiram punhais e desferiram tiros em pessoas indefesas (aos milhares), é uma lei que fatidicamente permanece actuante, qual um aguilhão que pesa sobre a consciência da sociedade angolana. Não haverá paz social e muito menos paz política enquanto a mão repugnante dos assassinos não for revelada, enquanto o governo e o MPLA não fizerem um esforço verdadeiro para se saber a identidade dos criminosos. O que se vê são discursos capciosos desfraldados a coberto de tintas radiosas, ao mesmo tempo que se finge estar preocupado com o cumprimento da Carta das Nações Unidas sobre o respeito aos direitos humanos.


Execução dos Defensores de Madrid, 3 de Maio de 1808, detalhe. Francisco Goya, 1814.
Faltam provas de seriedade no reino do MPLA que me façam acreditar estarem os seus barões realmente empenhados em trazer à luz o nome dos assassinos e a revelar as fossas clandestinas onde se depositaram os mortos. A Justiça em Angola permanece pertinaz na sua senda de leviandades, ensaia todo o tipo de embustes para nos enganar a todos. Não tenhamos ilusões: os donos do poder querem virar comodamente a página dos grandes crimes e ocultar nas criptas do silêncio, do anonimato e da impunidade os próceres da tirania, como Agostinho Neto e todo o seu exército de carrascos e pistoleiros. É uma postura medonha, abjecta e reaccionária, típica de quem não tem nenhum respeito pela memória das pessoas trucidadas no vendaval do despotismo netista.


Se os anjos existissem, tremeriam de ouvir tantas patranhas. A verdade da história incessantemente é voltada de cabeça para baixo pelo MPLA. O tardo netismo existente evidencia a fronteira porosa que se levanta entre o terrorismo de Estado do passado e o regime de excepção dos dias actuais que se limita a fazer algumas promessas de sentido opaco, mas sem um roteiro sério de clarificação dos problemas de fundo sobre a sangrenta repressão do 27 de Maio. Declarar de forma reiterada, como o faz a cada passo o senhor ministro da Justiça, que o governo está na disposição de emitir certidões de óbito e erigir um memorial às vítimas, como se isso fosse suficiente, é mais um jogo de máscaras já conhecido no MPLA.

É visível no senhor ministro o constrangimento de ter que dar explicações que lhe são determinadas pela cúpula do poder político, razão por que tenho dúvidas se ele próprio acredita no que está a fazer. O Bureau Político do MPLA não quer que se apurem responsabilidades no tocante à loucura dos massacres e assassinatos do 27 de Maio. A primeira responsabilidade da culpa recai evidentemente sobre as costas de Agostinho Neto e dos homens da sua Távola Redonda. Só os mal-intencionados e perversos ousam afirmar o contrário.

Quanto ao senhor ministro, ele vai fazendo o que pode, subtrai o fogo do seu coração e comporta-se qual um comediante que expressa os interesses do Estado e do Partido e repete o discurso ditado pelo seu Príncipe, o general João Lourenço. Faltam-lhe, no entanto, as virtudes e o talento necessários para ser um comediante por excelência, capaz de realizar o lance teatral natural e verdadeiro, o lance pleno de cenas eloquentes, de que fala Denis Diderot, pensador do Iluminismo; lance que causa “sensação e efeito” e toca até os corações mais empedernidos: pois “as entranhas comovem-se, solta-se um grito, a cabeça perde-se e as lágrimas correm”[2]. Este, sim, é o grande comediante. Reconhecidamente o ministro não possui estas qualidades que lhe permitiriam dissimular um hábito enraizado na personalidade do regime político do MPLA: a predisposição para burlar todas as expectativas, em especial as que têm a ver com a memória e a história do país. O ministro, a bem dizer, só está bem no papel que desempenha se o analisarmos pelo avesso. Ou seja, pelos truques que realiza para enganar a realidade. Cada vez que fala sentimos sempre no ar a trajectória de um punhal a cravar-se-nos na alma e a destruir-nos a esperança de que algum dia os atrozes acontecimentos do 27 de Maio venham efectivamente a esclarecer-se.

Uma encenação dissimulada e abjecta, eis, em resumo, o que estamos a assistir. Poder-se-iam lembrar as palavras singelas e proféticas de Victor Hugo na sua obra literária mais pujante Os Miseráveis: “A nossa civilização [escreveu ele] tem momentos terríveis; são momentos em que uma sentença anuncia um naufrágio”. Agostinho Neto criou um verdadeiro naufrágio nacional ao declarar que não se iria perder tempo com julgamentos. O que faz hoje o MPLA para reparar de forma séria e arrojada tal naufrágio? Nada. Apenas se assiste a um afã persistente de ocultar o passado de torpezas e crimes que o Partido acumula como herança; e a um afã de todos quererem esquivar-se do seu destino diante do futuro e da História.

O MPLA decididamente não consegue reconciliar-se com a sociedade no seu todo, distorce os factos reais do passado, faz o impossível para proteger os velhos assassinos, dando ressonância à falsa tese da reconciliação e criando com este subterfúgio um vácuo moral em volta dos perpetradores da barbárie. A estes vilões respondo com as mesmas palavras de Cipriano Barata, o grande político liberal republicano brasileiro (1762-1838) que amargou as mais pungentes prisões decretadas pelo punho despótico e insano do imperador D. Pedro I: “É para lamentar que um tirano deste lote [ilustrado no presente caso por Agostinho Neto] despreze as leis e ultraje e derrame o sangue de um povo obediente e virtuoso, e que depois seja poupado à sombra dessas mesmas leis que ele pisou”[3].


Eu não aceito reconciliações apressadas, não me reconcilio com torcionários, não aperto a mão aos carrascos de então, não faço vista grossa, não esqueço. Que fique desde logo bem claro: eu transporto em mim um cemitério de milhares de mortos e desaparecidos. Como posso eu reconciliar-me com uma malandragem cujos rostos o governo e o MPLA teimam em esconder a pretexto de se restaurarem relações amigáveis e pacíficas entre os angolanos? Como posso eu reconciliar-me com monstros de perversidade que sequer são capazes de pedir perdão pelos actos de banditismo e terror generalizado e sistemático que praticaram? O próprio Agostinho Neto deu o exemplo: perigosamente abriu as portas a toda sorte de actos ferozes e odientos, sem nenhum respeito pela Lei, por acções combinadas entre as forças de segurança, militares, polícias e grupos paramilitares, que tiveram como clímax uma verdadeira orgia de sangue. O seu gesto despótico e perverso revelou a serpente medonha que estava a ser incubada nas entranhas do regime. Sob o seu comando, o governo e a direcção superior do MPLA orquestraram e legitimaram o sequestro, a detenção e assassinato de milhares de pessoas.


Da minha memória jamais se apagará o que os meus olhos aterrorizados viram uma tarde na penitenciária de São Paulo, em Luanda. Um preso do 27 de Maio a ser violentamente espancado por um punhado de criminosos, todos fardados, que precipitaram a vítima escada abaixo desde o primeiro andar do edifício de celas a pontapés, golpes de porrete e coronhadas. Ostentando no rosto esgares demoníacos, todos lhe batiam selvaticamente como bestas ensandecidas. Ao estatelar-se no pátio a vítima sufocava no próprio sangue, praticamente morta. Por fim o seu corpo foi arremessado para cima de uma viatura do Exército tal qual se faz com um saco de imundícies.

Está historicamente comprovado o extermínio levado a cabo pela ditadura netista e da acrescida culpa dos carrascos no 27 de Maio, mesmo considerando a ausência de julgamento e de penalidades judiciais. Os factos por si, pelos quais são acusados, estão suficientemente demonstrados pelas profundas feridas que deixaram no corpo social e podem com a maior exactidão ser atribuídos a milhares de algozes já identificados pelas suas vítimas. Não é necessário que a ciência jurídica dilucide se houve ou não prática de crimes bárbaros. Houve-os, sem a menor sombra de dúvidas, eles habitam a memória de todos os sobreviventes e das famílias que perderam os seus parentes. Eu pessoalmente posso apontar seis bestas que me infligiram vários tipos de torturas físicas. Se o Estado matou e enterrou os corpos das vítimas clandestinamente, cabe-lhe agora a precípua responsabilidade de os desenterrar. As vítimas do 27 de Maio não podem mais continuar a ser esquecidas ou a ser colocadas no último patamar da cidadania como se não fossem filhos de Angola.