Luanda - “Os jornalistas são tratados como criados (…) São maltratados, não têm condições de trabalho, mas preferem continuar fiéis”


Fonte: Observatório da Imprensa

Agostinho Gayeta: Ainda há o caso, por exemplo, do Jornal “Folha 8” de William Tonet, que tem mais de 200 processos em Tribunal. Há o caso, por exemplo, do Jornal “Hora H”, cujo Director tem agora cerca de 3 processos sobre a tutela da justiça …
Alexandre Solombe: São sinais…São sinais…São ondas, e isto depois funciona com efeitos de choque. Para quem acompanha isso percebe que, efectivamente, a questão da liberdade é muito discutível em Angola, a liberdade de imprensa e de expressão. Não é líquido que nós temos liberdade de imprensa e de expressão em Angola. Isto é muito discutível. A propaganda diz que sim, mas não pesa todos os pesos, passo a repetição, na balança. De modos que acaba por prevalecer a opinião da propaganda e que, de certo modo, caucionada pela comunidade internacional, regozijada com este deslumbre do novo presidente que substituiu José Eduardo dos Santos, parece que é tudo novo, parece que temos novidades, quando não é verdade.


AG: A criminalizarem a actividade jornalística pela justiça, sob a capa da violação de segredo de justiça, pode ser considerado sintoma da crise da Democracia no País? Ou a democracia no país é um nado morto?
AS: Exactamente! Isto é um passo à frente e dois atrás, isto é o que nós assistimos. Terei eu falado no início da actividade do grupo Parlamentar da UNITA, que está tendo lugar na Cidade do Lubango, na Província da Huíla, que não é destaque nos jornais, na televisão, ou se é, é de maneira intermitente. Quando recentemente tivemos as jornadas parlamentares do MPLA, na região das Lundas e havia directos, havia destaques, havia presenças quase que permanentes nos telejornais. E por aí está a se ver. Quando há acontecimentos em que morrem pessoas, ou casas de cidadãos que pensam diferentes são destruídas, isso não é destaque nos telejornais. Há acontecimentos de violação de direitos fundamentais que não são e continuam a não ser destaque, portanto, nos órgãos de comunicação social públicos.
O segredo de justiça é tão-somente utilizado como meio de tentar privar as pessoas de informação sobre pessoas que têm posições de destaque no aparelho político. É esta a grande preocupação, porque não há nada que proíbe que um processo a uma dada altura seja alvo de análise jornalística ou noticiosa, seja alvo de notícia.


AG: E há ainda o chamado segredo do Estado?
AS: Sim, sim, o segredo de Estado. Isto tudo são as amarras, são os sinais que o regime passa para a sociedade, principalmente aos jornalistas. É uma maneira de os manietar para podarem as unhas, para ficar quietinhos nos seus cantinhos, porque de outra maneira tem a lei presente que os pode… Independentemente do que aconteceu com o caso Rafael Marques e o Mariano Brás, mas os sinais continuam. Não se anulam, por exemplo, os processos contra o William Tonet. Há casos a ocorrerem que ficam na penumbra e a qualquer altura são puxados para assustar os jornalistas, principalmente o Jornal “Hora H”, que é alvo de pressão.


AG: Para além do Jornal “Hora H”, há ainda informações sobre o Jornal “A República”. O que é que isto significa para a consolidação que se pretende para democracia e liberdade de expressão em último caso?
AS: O jornal “A República” também, isto é verdade. Embora também, quero aqui sublinhar e ser justo que, no exercício da profissão jornalística há duas coisas a considerar: o jornalismo também tem que evoluir do ponto de vista da abordagem, da temática, do rigor. Às vezes, falta um bocadinho de rigor e ao faltar este rigor, está a permissão na oportunidade para que as partes reclamem. É um pouco a fraqueza que advém da fraqueza da escola. Há muita gente a escrever mal, há muita gente a interpretar mal, há muita gente a ouvir mal e a interpretar pior. E isto dá azo a que as partes recorram permanentemente…E também tem a ver com a cultura democrática. Alguém que é referenciado numa notícia, o primeiro passo que deve dar é efectivamente o direito de resposta.


AG: Não estará aqui a faltar a cultura geral de denúncia, de reclamação, a cultura de informação, uma vez que em parte isto revela problemas ligados à própria educação sobre comunicação?
AS: Eu penso que sim, isto é um dos problemas. Estamos a vir dum contexto de guerra e as pessoas são infelizmente muito vingativas, muito rancorosas e esta cultura democrática vai faltando. Quantas às notícias, nós ouvimos na Europa e nos Estados Unidos, mesmo em Cabo Verde, em Moçambique também, diga-se, mas tudo termina com esclarecimentos, tudo se resolve. Este recurso aos Tribunais, a criminalização é típica dos regimes ditatoriais e Angola vive um pouco disto. Eu creio que, com o andar do tempo, chegaremos também a esta cultura. As pessoas começam a perceber que, ao lugar que andar aí a gastar dinheiro para pressionar os Tribunais, podem esclarecer o mal-entendido e usarem o direito de resposta e fazer vincar as suas reclamações, mais do que isso, tudo se resolve por esta via e a vida continua.
 

AG: Uma questão que se coloca sobre o desempenho do jornalista enquanto profissional é o facto de apesar destas situações adversas, os empecilhos apresentados pelo poder político, os jornalistas não reclamam. Gostava de ouvir os seus comentários, já que temos por exemplo, organizações como a UJA [União dos Jornalistas Angolanos], a Entidade Reguladora da Comunicação Social – ERCA em Angola para dar tratamento a estas situações. 
AS: Mas reclamar a forma como que é dado aos sujeitos de notícias?


AG: O tratamento que é dado, por exemplo, aos jornalistas. Quando digo que os profissionais não reclamam, doutra maneira quero referir-me ao facto de admitirem a censura e não apresentarem seja uma queixa, ou uma participação às instituições que “regulam” a actuação da imprensa no país.
AS: Eles até fogem. Em alguns casos fogem. Penso que é um pouco de iliteracia, custa crer, mas é uma certa iliteracia da parte de certos profissionais. Quando nós falamos, por exemplo, do pouco interesse que as pessoas têm para abraçar a actividade cívica, actividade associativa a nível do próprio jornalismo, estamos a falar da sociedade civil, denota efectivamente o pouco interesse que as pessoas têm hoje. Quer dizer, o pouco interesse advém de onde? Os governantes construíram a cultura do “Ché, menino, não fala política, fica no teu cantinho”. Isto continua de modo que o jornalista ao lugar de arranjar encrencas com o poder, que é muito poderoso, passo a repetição, prefere ficar no seu cantinho. Conforma-se, estando embora a ser explorado de várias maneiras. Os jornalistas são tratados como criados. Eu já disse isto muitas vezes. São maltratados, não têm condições de trabalho, mas preferem continuar fiéis.


AG: Algumas instituições como a UJA, o Sindicato dos jornalistas angolanos ou como a Entidade Reguladora da Comunicação Social têm feito algum trabalho. Como encara este trabalho? Pode este trabalho ser considerado como uma “interferência”?
AS: Porquê é que o Sindicato é mais feliz? O Sindicato tem uma coisa, tem uma isca que atrai todo profissional de imprensa e nós vimos nos últimos dias aquele movimento que se gerou. É muito mais fácil a questão dos salários e não é a primeira vez. Como eu disse, a questão do salário…O salário une mais as pessoas do que a própria actividade cívica, a própria actividade de luta pelos direitos. Se o Sindicato não abordasse as condições de vida, a questão salarial essencialmente, provavelmente estaria também a minguar como as outras associações, portanto, isso faz uma grande diferença, por um lado. Por outro, de um lado, há este: é comodismo que resulta da pressão política vivida no decurso do tempo da Administração de Eduardo dos Santos. E as pessoas ficaram atemorizadas, têm receio de perder os empregos, preferem não contestar, calam-se estando embora a ser exploradas e é no final do exercício da jornada profissional, quando têm a idade avançada, lá para os 60 e tal ou 70 anos de idade, que percebem que não ganharam nada com a bajulação, que não ganharam nada com a subserviência, que não ganharam nada, nem sequer respeito ganharam. Porque o patrão põe-nos no olho da rua e dispensa-os…Veja, por comparação, o respeito conquistado pelo jornalista Rafael Marques.
O Rafael Marques foi mais vezes recebido no Departamento de Estado pelo Subsecretário pelos Assuntos Africanos, no Departamento do Estado Americano, do que foi o Ministro das Relações Exteriores de Angola. Foi mais vezes recebido nos Estados Unidos, no Departamento de Estado do que foi o próprio Presidente da República. Porquê? Porque ele fez caminho pelo seu próprio caminho. O Rafael sofreu, passou por privações, o que muita gente não gosta é de passar. Estar no privado de viajar para o Dubai, para Portugal, para o Brasil, não é toda a gente que gosta de fazer…. Estar privado de viver …. Limitado a um determinado espaço, não se estender muito. Viver com cautela, não é toda a gente que faz.


AG: Esta limitação que faz o Rafael Marques, Alexandre Solombe, tem que ver com o exercício da sua actividade, o jornalismo que ele faz – investigativo -, é o tipo de jornalismo que nós estamos a precisar?
AS: Exacto, precisamos disto e não só disto, mas de um jornalismo profissional. O investigativo seria como a cereja no topo do bolo. Eu só penso profissionalismo! Que as pessoas trabalhem com as suas consciências limpas, livres de pressão, então que não admitam que o patrão maniete os seus trabalhos. Tendo ele deixado a peça preparada para ir para o ar, estou a falar a nível dos audiovisuais, que ela passe como a concebeu e se tiver havido alguma alteração que se dirijam ao editor-chefe e digam, contestem “não pode ser eu, não estou disposto a continuar a trabalhar nessas condições”. É o que acontece na maior parte dos órgãos de comunicação: o jornalista audiovisual prepara o artigo, grava, deixa preparado e o editor tem a liberdade de cortar as partes que não lhe convém, e isso acontece recorrentemente, e depois o jornalista fica calado e não vai dizer nada a ninguém. Porquê? Porque ele prefere aguentar o sofrimento e manter a barriga cheia. Prefere passar a humilhação e, é esse tipo de jornalismo, é este tipo de humilhação que não pode continuar a ter lugar na nossa realidade.


AG: O jornalista Ramiro Aleixo publicou um artigo no Portal de Notícias “Club-K” com título “Angola: Jornalismo e Cabritismo”. Neste seu artigo, Ramiro Aleixo faz duras críticas ao desempenho de alguns profissionais, com uma conduta muito questionável e gostava de ouvir o seu comentário…
AS: É de todo reprovável este tipo de prática, mas esta prática decorre das fraquezas forjadas no decurso do regime comunista. Eu sou crente, eu creio em Deus. Quando você vem à sociedade e ensina as pessoas que Deus não existe, você está a construir uma sociedade do vale tudo. Uma sociedade sem ética, sem moral, onde as pessoas usam a posição de jornalista, que dá poder, para fazer chantagem aos sujeitos de notícias, aos actores políticos, aos actores da sociedade civil. É o que nós temos. Nós só estamos a colher aquilo que plantámos durante um certo período de tempo. Deus não existe, era o que se ensinava, era o marxismo-leninismo e o resultado não poderia ser outro que estamos a acolher. É abominável o que se passa efectivamente.


AG: Há aqui ainda um problema com a ética e a legalidade a nível do jornalismo angolano. Quer comentar sobre isso, muito particularmente sobre as incompatibilidades no exercício da actividade jornalística?
AS: Este é um problema que é justificado. Eu não estou aqui para fazer a defesa…Não estou aqui para fazer de advogado do diabo, mas é, segundo os praticantes, pela insignificância do salário auferido. As pessoas encontram nestas assessorias, nestes serviços que prestam, para além de que são no caso incompatíveis, encontram nisso a oportunidade para completar os orçamentos domésticos. Isto chama a necessidade para os jornalistas terem que ganhar bem. Ganhar bem, quando eu falo ganhar bem estou a falar de mínimos equivalentes a mil dólares. Este é o mínimo que deveria ser pago a um jornalista estagiário, atendendo a nossa realidade, porque se formos para realidade de outros países, como Brasil por exemplo, eles pagam o dobro, dois mil dólares o equivalente. Mas atendendo à nossa situação, podemos aceitar que se pague mil dólares, porque é uma maneira de proteger os jornalistas de se verem tentados a praticar o cabritismo. Embora o cabritismo decorra da crise de moral das pessoas. As pessoas com dignidade, com formação moral nas casas, no berço, as pessoas pobres embora, mas temendo a Deus, normalmente dão um bom jornalista.


AG: A carteira de ética e deontologia profissional resolveria estes problemas?
AS: Não, de todo. Estamos a falar em relação às incompatibilidades, pois mais difícil vai ser recensear ou descobrir que os indivíduos que se infiltram nas redacções com missões específicas, e que hoje têm o estatuto de jornalista. Estes vão continuar a fazer o seu trabalho de pressão, uma pressão ligeira, eles vão continuar a fazer. Decantar isso é que vai ser …Portanto, como se diz em informática, “os dados vão ter mesmo barulho”.


AG: Como é que se explica a presença de indivíduos infiltrados nas redacções como agentes dos serviços secretos passando-se por jornalistas?
AS: Foram colocados. Exactamente. Estão lá muitos e que têm esta missão. Eles vão continuar a interferir. O que vai acontecer agora é uma espécie de legitimação destes indivíduos que estão lá, e uma vez agentes secretos, agentes secretos sempre. Eles não vão conseguir despir-se, porque eles têm essa missão, porque foram colocados lá inicialmente para observar, depois os admitidos em regimes de full-time, então eles sentem-se muito gratos pelo Governo que os colocou lá, não têm mérito. Mas, enfim, este processo vai permitir que ao longo do tempo nós vamos colher resultados positivos. Daqui a alguns anos, não é agora, porque esta gente vai passar, vão para reforma e há de entrar outra geração de profissionais, eventualmente mais comprometidos com a causa jornalística ao lugar de estarem ali como informadores. Portanto, é o que se pretende, que haja um princípio, que haja um começo e os resultados virão. Se não for a curto, a médio ou longo prazo.
Agostinho Gayeta: Também tem estado a preocupar a classe jornalística o facto de haver escutas telefónicas. Recentemente houve uma situação da qual resultou a obrigatoriedade o registo dos números de telemóveis e, depois começou-se a especular a existência de escutas telefónicas. Contudo, do ponto de vista legal, não é permitido que se façam escutas telefónicas. Como é que olha para esta situação?
Alexandre Solombe: Bom, eu acho que a escuta deve ser regulada. Eu não sei se existe algum decreto, ou despacho, ou uma lei que faça com que estas escutas sejam permitidas a um dado momento, para um específico fim, que é assim que tem que ser. Porque, do ponto de vista prático, não é possível escutar milhões de utentes de telefones…. Agora, para casos específicos, eventualmente isto pode ser feito.


Agostinho Gayeta: Desde que seja regulado?
AS: Desde que regulado para um propósito específico, isso pode ser autorizado, por exemplo pela PGR, havendo necessidade para o fazer e\ou neste caso específico, regulado por uma lei, por um decreto, de preferência por uma lei que pode resultar de contribuições do espectro político representado na Assembleia Nacional.


AG: Isto não põe em causa a liberdade de expressão? Até então se diz que a lei autoriza, mas, com o mandato de um Juíz. Não havendo a orientação legal de um Juíz, não constitui isto uma ameaça para a liberdade de expressão?
AS: Exactamente, claro que constitui. Quantas pessoas não aceitam falar ao telefone? Olha que vou citar o caso do escritor Pepetela, que para mim é o mais paradigmático. O Pepetela não usa telefone ou telemóvel e, como ele, há várias outras pessoas que recusam usar telemóvel, prescindiram do uso do telemóvel e então, enfim é uma ameaça. Diz-se ao alto que as escutas telefónicas não ocorrem no volume que julgamos, às vezes é uma maneira de coagir as pessoas psicologicamente a absterem-se de falar tudo por via do telefone. Não é toda a gente que aceita fazê-lo, por precaução sabe que escuta existe; eu quase que diria que a escuta não existe, mas ela existe, de fontes fidedignas que existe. Vou citar empresas constituídas, israelitas que prestam estes serviços, uma vez subcontratadas pelo poder político, elas prestam estes serviços. Portanto, já tivemos casos que não eram coincidência, as pessoas aperceberem-se de que aquilo que tinham falado ao telefone, tinha sido abortado por intervenção de um poder qualquer.


AG: Está a falar da convocação das manifestações por via telefónica e das redes sociais?
AS: E não só isto. Há casos mais íntimos que nos foram reportados. Da namorada que avisa o namorado, ela consegue ter a acesso à ficha do namorado percebendo a partir de que sítio ele estava a falar numa dada altura. E isto é, claramente, a denotação de que as nossas conversas não estão livres de escuta.
É uma maneira de passar a mensagem à sociedade: “Ei, portem-se bem, porque nós estamos a vos acompanhar”.  Podem não o fazer sempre, mas é uma maneira de manter isso e nunca houve desmentidos neste sentido. Portanto, convém às pessoas que fazem a utilização das escutas, que esta pressão, que este bichinho, que esta purga na orelha, continua ali atrás para as pessoas se comportarem bem.


AG: A nossa conversa com Alexandre Neto Solombe está já a chegar ao fim, perto de 50 minutos depois. Entretanto, não gostava de terminá-la sem que falasse sobre três questões fundamentais: um olhar sobre o jornalismo científico, jornalismo comunitário e de investigação, este último já aqui abordado. De forma resumida, como é que olha para o jornalismo de investigação em Angola?
AS: É muito manietado. Quer um, como o outro, muito manietado. Isto reflecte um pouco o nosso nível de iliteracia ou o estado da iliteracia em Angola, ou se quisermos falar de forma positiva, o estado da literacia em Angola. Quando nós temos unidades orgânicas de uma Universidade que dispensam professores do calibre do Dr. Paulo Faria, estou a falar da Faculdade de Ciências.


AG: E do Dr. Nelson Domingos, que na mesma situação e circunstância foi despedido da universidade.
AS: E isso é protagonizado normalmente por antigos estudantes das escolas de países comunistas. Portanto, são essas pessoas que tomam decisões contra mentes que brilham. Mentes sãs, mentes com a capacidade de produzir conhecimento. Quando nós vemos um Ministério do Ensino Superior ou uma Reitoria da Universidade olhar isso com passividade, não podemos ter esperança.


AG: Não podemos ter um jornalismo mais científico, mais elaborado?
AS: Infelizmente, não. Nós vemos uma academia acolhendo militantes de esquerda, porque quase todos os estudantes estudaram nestes países da antiga União Soviética, Cuba, Checoslováquia. Boa parte deles, aqueles que não se esforçaram para se actualizar, depois que as coisas mudaram e tomaram outro rumo. Naquela altura, enquanto estudantes, eram potenciais militantes de esquerda, e enquanto militantes de esquerda, tendo entrado para militância de esquerda, eles tornaram-se adeptos. Portanto, são amantes da casa de Sócrates citada por Platão, defendem muito aquilo que é deles. São militantes de esquerda, e este tipo de gente está a dirigir as instituições em Angola. E este tipo de indivíduos têm limitações do ponto de vista intelectual, de tal maneira que quando aparecem pessoas a falar com propriedade, a criar, a produzir obras, fazem guerra. É o que estamos a assistir ao nível da Universidade. Infelizmente, vamos continuar a ter antigos militantes de esquerda a dirigirem as cátedras as Universidades e, neste contexto, não se produz conhecimento comparativamente com os países aqui da nossa região - estou a falar da Namíbia, África do Sul, onde a ciência é ciência e as pessoas não misturam partidarismo-político, política partidária com ciência. São coisas completamente…E isto depois tem um impacto muito grande na produção eficiente dos conteúdos científicos, aqui ao nível da nossa praça.
Aquilo que é produzido na África do Sul, o que é produzido num país onde as liberdades são melhor exercitadas, não pode ter comparação com aquilo que é produzir num país onde as liberdades são manietadas. Estou a falar de um país onde as liberdades criativas, onde a criatividade é à partida manietada, a criatividade precisa de liberdade para ela se entender, para ela fluir e fruir também. É o que não acontece na nossa realidade.


AG: Não acontece também é o jornalismo investigativo?
AS: Este é feito por um, dois, três profissionais. Claramente o Rafael Marques a tomar a dianteira com todos os sacrifícios que isso representa e representou. Eu o conheço, falo com propriedade da vida do Rafael, não a vida íntima, mas profissional. Tive a oportunidade de trabalhar com ele, fizemos jornalismo, aliás, o Rafael para além de investigador, é um bom professor e a mim ele ralhava. Eu já senti os ralhetes dele por imagens não produzidas, não recolhidas. Fora este, o Rafael que é o ícone, não vejo outras pessoas a fazerem jornalismo investigativo. Alguns tentam, mas não tem aquela, ficam pelo caminho. Se houvesse bons decisores políticos, para mim o Rafael, aqueles trabalhos que ele produziu, e estão lá no “Maka Angola”, são de uma autoridade social muito grande.


AG: É uma iniciativa que deve ser multiplicada?
AS: Deve ser multiplicada, e sobretudo financiada. Deve ser financiada, o Estado ganha com aquele tipo de jornalismo, porque desencoraja que corruptores tenham um “brind ground”, um ninho onde se reproduzam, que é o que nós temos aqui. Um ninho com as condições todas para a corrupção prosperar.


AG: Este ganho tem a ver com a descoberta do facto de o Hotel de Convenções de Talatona foi construído com fundos do Estado?
AS: Por exemplo, as pessoas politicamente expostas que detém o controlo do mercado, do monopólio dos bancos… Os bancos fazem muito dinheiro. Estamos em crise, mas os bancos continuam a fazer lucros. Quando nós olhamos para relatórios, percebemos que o negócio bancário [é] muito rentável.
É rentável, porque aqui há uma espécie de cartelização a um controlo por pessoas ligadas ao partido no poder que detém o controlo do negócio, fazem negócio com o Estado; porque os bancos preferem emprestar dinheiro ao Estado ao lugar de emprestar dinheiro às empresas que querem investir no mercado, preferem emprestar ao Estado. O Estado, que vai ao mercado financiar-se por causa dos défices orçamentais. O Estado quer desenvolver, quer investir, então vai buscar o dinheiro aos bancos, mas se tu fores pedir dinheiro ao banco, eles não te vão dizer que não têm dinheiro, vão dizer que têm sim dinheiro mas a taxa de juros é esta.


AG: É um problema que muitas vezes o próprio jornalista não consegue identificar. Será que está a faltar o jornalismo de especialidade na nossa praça?
AS: Também. Isto vai-nos conduzir ao jornalismo. Ouvi o Presidente da República a falar, creio que no Congo, agora nessa sua visita que fez nesta conferência que houve lá de alguns países africanos com a China, e ele lá a dizer com lágrimas de crocodilo, a ler o discurso. “Não entendo”, dizia o Presidente, estou a parafrasear, “não entendo porquê que o investimento Chinês não vem para a África, o que é que se passa afinal com a África?”.
O senhor Presidente esquece que nós não temos um ambiente bom para investir. Angola é dos exemplos acabados de investimento e ambiental hostil ao próprio investimento. Quantos tribunais não resolvem os problemas “just in time”. O empresário que vem investir em Angola, sujeito a conflitos, decorrentes eventualmente da associação que faz, porque naquele tempo era obrigatório fazê-lo com pessoas ligadas ao partido, então há pontualidade de ocorrerem conflitos. Quando ele põe o caso no tribunal, o tribunal prolonga o prazo para 5, 10, 20 anos. O caso nunca mais é resolvido. Este é um constrangimento. É por isso que os investidores estrangeiros, cujo dinheiro nós precisamos muito, não vêm para Angola, e vês um Presidente a falar com lágrimas de crocodilo. Então tudo isso é temático para os jornalistas fazerem efectivamente o seu nome e com proficiência, e isto tem o seu valor acrescentado e é uma questão de investigar.
Eu conheço profissionais que não são licenciados, nem são mestres, mas a história registou. Nós temos aqui um jornalista, um Reginaldo Silva que faziam jornalismo de investigação, fazia bem. Um Arlindo Macedo, o mais importante é o rigor. O rigor jornalístico, a consequência, a resposta à demanda. Porque as questões que nós colocamos demandam outras questões. É preciso estarmos preparados para isso.


AG: A resposta à demanda é o que também se deve verificar no que diz respeito ao jornalismo comunitário? Deve ser o jornalismo que corresponde à demanda da comunidade. É o se verifica aqui?
AS: Nós não temos jornalismo comunitário, quase que faleceu. Jornalismo comunitário. Não sei quem é que acolhe. Há aqui alguma comunicação em Luanda que acolhe ou que o faça?


AG: Quando se conceberam as “Rádios Municipais”, conceberam-nas com este propósito, para serem rádios comunitárias.
AS: E a prática mostrou que uma rádio comunitária não pode ser a concepção do poder político. Sabe porquê? Se a rádio comunitária começar a falar de assuntos preocupantes que tocam e mexem com o poder político. Questões que afectam a comunidade, logo vem um Admistrador Municipal que vem dizer “não falem isto, evitem problemas, já temos muitos problemas”. E então, muito facilmente as rádios comunitárias, constituídas com os dinheiros e fundos púbicos, se transformaram em rádios municipais, que é uma descentralização da Rádio Nacional de Angola. Temos as emissoras provinciais da Rádio Nacional de Angola, tivemos ou temos primeiramente, tivemos e continua com as emissoras provinciais, e por fim, fechou a cadeia com as emissoras municipais.
O que temos em Angola não são rádios comunitárias. Em Angola não existe nenhuma rádio comunitária, existem descentralizações da Rádio Nacional de Angola a nível municipal. São as emissoras municipais da Rádio Nacional de Angola. As pessoas quase que não acreditam quando ouvem isso. Tentaram mentir, o Presidente no discurso: “Estamos a inaugurar as rádios comunitárias”. Mas, do ponto de vista clássico, aquilo não são rádios comunitárias. O estilo da administração, quem provê os fundos e como é que aquilo funciona, não é rádio comunitária.  A rádio comunitária é uma rádio criada pela comunidade com fins de serviço comunitário.


AG: Muito obrigado, Alexandre Neto Solombe, por esta entrevista, neste espaço, este projecto sobre liberdade de imprensa e de expressão, projecto que é encabeçado pelo Observatório de Imprensa, nesta que é mais uma edição deste espaço de entrevista. Falámos sobre várias temáticas ligadas ao exercício do jornalismo, falamos da liberdade de imprensa, a liberdade de expressão e ainda de questões conexas, a liberdade de imprensa e jornalismo que tem que ver com a democracia. Alexandre Solombe, muito obrigado.
AS: Eu é que agradeço pela oportunidade que me deram, e estamos sempre aqui disponíveis para qualquer abordagem sem limites, sempre que precisarem, estamos disponíveis.


AG: Sem limites somos nós, e colocamos aqui um ponto final, mas com a promessa de estarmos juntos numa próxima edição deste espaço, muito obrigado!