Lisboa  - As ruas estão mais desertas, em Lisboa, em Atenas e em Oslo. Pouco importa, portanto, se a religião dominante é o catolicismo, o cristianismo ortodoxo ou o protestantismo. É indiferente se estamos no oeste, no leste, no sul ou no norte. Se o PIB per capita é baixo ou alto. A ameaça de uma doença forçou-nos a todos a um inédito isolamento social.

Fonte: JA

Habituamo-nos, lentamente, a um tempo de guerra, como vive a Itália. Em Piacenza, só no sábado, morreram 24 pessoas infectadas com o Covid-19. O medo alastra mais depressa do que o próprio vírus. Muitos países fecharam fronteiras e os que o não fizeram são instados a fazerem-no por sectores sociais que acreditam nessa forma de controlo da pandemia. Quase todos os Estados europeus decidiram suspender as aulas nas escolas e aconselhar ao isolamento voluntário. Muitos fecharam cafés, bares e restaurantes, barbeiros e centros comerciais.


Em Lisboa, as montras das pastelarias exibem bolos arrumados e mesas vazias. Nas ruas, há caminhantes que usam máscaras e, cada vez mais, luvas. Há quem saia para se exercitar. Há quem vá ao supermercado (e às farmácias, com as suas novas filas ordenadas, com um metro de distância entre cada cliente que aguarda a sua vez). Há quem decida não sair de casa.


A nova normalidade foi instaurada num ápice. Mas na quarta-feira à tarde, quando já muitos haviam decidido isolar-se, uma notícia provocou indignação: as praias perto de Lisboa estavam cheias. Com temperaturas de Verão em pleno Inverno e um futuro incerto pela frente, milhares de pessoas decidiram apanhar sol e mergulhar no Atlântico.


O veredicto encheu as redes sociais: falta de responsabilidade social; défice de cidadania. Várias imagens mostraram Carcavelos à pinha e a Praça de São Marcos em Veneza vazia e concluíram com a frase habitual nestas circunstâncias: "Só neste país..."


Esse argumento tem um problema: é falso. No sábado seguinte, depois de o Governo grego ter fechado os bares e esplanadas, com um sol convidativo sobre o Egeu, milhares de atenienses encheram as praias. Em Asteras Vouliagmeni, a sul de Atenas, que é uma praia com entrada paga, os seguranças tiveram de dispersar uma multidão que tentava entrar, furando as regras de lotação do espaço.


As redes gregas encheram-se dos mesmos dedos apontados que se viam nas portuguesas. E o Primeiro-Ministro grego (de centro-direita) disse o mesmo que a ministra da Saúde portuguesa (de centro-esquerda): "Acabei de pedir que todas as praias e resorts de esqui sejam fechados amanhã. A situação é grave e exige responsabilidade de todos. Evitamos locais públicos com muitas pessoas. Vamos todos enfrentar as circunstâncias. #estadia em casa #estadia em casa", tuitou Kyriakos Mitsotakis.


Como explicou, há muito tempo, Guilherme de Ockham, não valerá a pena encontrar teorias identitárias que expliquem por quê portugueses e gregos resolveram fugir do isolamento. Não é o sol, nem o calor, nem a vontade inata de quebrar regras, nem a "desorganização", nem a falta de civismo que explicam melhor o que se passou.


Basta ver a manchete de domingo do Aftenposten, o maior jornal de Oslo, na Noruega: "Governo proíbe as pessoas de irem para cabines fora dos seus próprios municípios." A decisão veio depois de se ter instalado um clima em tudo idêntico ao de Atenas e de Lisboa. Com as regras decretadas para aconselhar o isolamento preventivo do Covid-19, muitos noruegueses decidiram sair das cidades e rumar às montanhas, onde muitos têm pequenas cabanas de férias. Imediatamente, as redes sociais instauraram uma "vergonha da cabana" (em norueguês: hytteskam).


Os municípios de montanha têm, habitualmente, uma população residente de 21.000 habitantes. Na sexta-feira à noite, esse número crescera para 55.000, quase o triplo. Dois casos de coronavírus foram relatados num desses municípios durante o fim-de-semana, ambos referentes a pessoas que estavam em cabanas de férias. As autoridades começaram a rastrear a geolocalização, através dos cartões SIM dos telemóveis, para identificar quem decidiu sair das cidades e quebrar o isolamento.


"Teremos um colapso total do nosso sistema de preparação se houver um surto de corona aqui", disse o autarca de um município de montanha. "Eu só ia ficar na minha cabana, talvez estivessem a pensar? Mas, se tiver azar e se cortar na faca da cozinha ou partir um braço, é um dos nossos médicos que terá de gastar o seu tempo para ajudá-lo", diz o médico-chefe em Hjelmeland, um município costeiro. Mais da metade das pessoas que ligaram para os serviços de emergência no sábado eram pessoas das cidades que viajaram para as cabanas rurais. Mais: a caminho das suas cabanas, os noruegueses esvaziaram as prateleiras dos supermercados, armazenando em excesso e limitando as possibilidades de outros.


Como sempre, um tom acima do habitual numa conversa de café, as redes sociais apontaram o dedo, com pouca fleuma nórdica: "Então, eles estão a considerar enviar o Exército para mandar pessoas para casa. Esses idiotas deveriam ter as suas cabanas incendiadas depois de saírem. #hytteskam#koronavirus#egoists."


A mesma conversa, que levanta dúvidas sobre onde começa a liberdade individual e acaba a responsabilidade pública, decorre em Paris. No Parc des Buttes Chaumont havia multidões ao sol, tal como no Canal Saint Martin e no Marché d'Alligre.


A mesma pergunta surge em todos os cantos do Mundo: devem as pessoas recolher-se, fechar-se em casa, evitar a rua ou devem os Estados fechar tudo o que não seja essencial? E quais são os perigos desse poder de limitar a vida social?


Esta pode ser uma das primeiras lições que nos trouxe o isolamento forçado pelo Covid-19. É uma boa lição, que desmente facilmente as convicções de racistas e nacionalistas: nas nossas virtudes únicas, e nos nossos defeitos endémicos, somos muito mais próximos do que diferentes, tenhamos nascido em Carcavelos, numa praia do Egeu, num "arrondissmemt" de Paris ou num fiorde da Noruega.

 

* Colunista do “Diário de Notícias”