Luanda - No debate livre da TVZIMBO da terça-feira (dia 17) que promoveu a discussão do tema sobre o Sistema de Justiça em Angola envolvendo a mim, o Subprocurador Africano Gamboa, a Juiza Tatiana Aço e a advogada Ana Paula Godinho, tive a oportunidade de levantar o problema da hierarquia dos tribunais superiores em Angola que acabou sendo muito mal interpretado e comentado pelos presentes por força das distorções de conceitos introduzidas pela advogada Ana Paula Godinho na sua apaixonada locução e, por causa disso, a possibilidade de esclarecermos um assunto de elevada importância acabou gorada.

Fonte: Club-k.net

Para que as paixões particulares não ofusquem a verdade científica dos factos, retomo, por isso, o mesmo tema para fins pedagógicos através de um discurso hermenêutico que privilegia os conceitos normativos da ordem jurídica angolana aproveitando a oportunidade para repor a correcta interpretação dos conceitos defendidos pela também Professora de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto.

 

Da minha argumentação sobre o problema jurídico-legal da justiça em Angola ficou claro que o Tribunal Supremo não exerce a função de tribunal de jurisdição plena no sistema judiciário angolano devido ao facto de a CRA prever uma hierarquia horizontal entre os tribunais superiores que coloca o Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas, Supremo Tribunal Militar e Tribunal Supremo no mesmo nível, o que significa que cada um destes tribunais tem a capacidade de esgotar a respectiva jurisdição sem que as suas sentenças (acórdãos) sejam recorríveis aos demais tribunais.

 

Essa curiosa organização do sistema judiciário angolano tem como consequência a falta de definição de um tribunal que assume a liderança de todos os tribunais superiores com capacidade de jurisdição plena de todos os tribunais angolanos sendo o tribunal máximo. O que quer dizer que, de acordo com a CRA, o sistema judiciário angolano é acéfalo (sem cabeça) levando a que na verdade nenhuma jurisdição seja completamente esgotada por falta de um tribunal “supremo” que surge como instância de último recurso para todas as decisões tomadas por todos e quaisquer tribunais.

 

Não é por acaso que se tem tornado impossível recorrer das decisões do plenário do Tribunal Constitucional comprometendo o sentido de justiça dos tribunais angolanos nos casos que envolvem, sobretudo os partidos políticos. Falta uma jurisdição final capaz de sacrificar o Direito nos casos em que a justiça esteja comprometida (cassação) exaltando os superiores valores da certeza e segurança jurídicas, para citar apenas um dos exemplos dessa necessidade gritante.

 

A causa desse problema vem de duas situações. Por um lado, a CRA não preveu a função plena do Tribunal Supremo definindo-o apenas como um tribunal superior, por outro, a Lei 18/88 – Sistema Unificado de Justiça que prevê essa função para o Tribunal Supremo, não foi actualizada no novo contexto jurisdicional introduzido pela CRA de 2010 (em vigor). Para essa última situação, o legislador ordinário desconfigurou o sentido e dispersou o alcance da Lei 18/88 ao introduzir leis orgânicas para regular os tribunais superiores especiais (Tribunal de Contas, Tribunal Constitucional, Supremo Tribunal Militar) e a Lei 2/15 – Lei Orgânica Sobre a Organização e Funcionamento dos Tribunais de Jurisdição Comum, para regular a jurisdição comum sem actualizar o conteúdo da Lei 18/88 definindo os novos princípios sobre os quais deve assentar o sistema judiciário angolano. O que quer dizer que, actualmente, o sistema judiciário angolano como um todo (prevendo princípios de organização e funcionamento dos tribunais comuns e especiais) não tem uma lei especifica contextualizada a CRA em vigor.

 

Infelizmente, a advogada Ana Paula Godinho confundiu os telespectadores defendendo que a Lei 2/15 revogou completamente a Lei 18/88 passando a ser a nova versão do Sistema Unificado de Justiça, essa falta de leitura correcta das normas, acabou distorcendo a percepção da grave situação em que se encontra o sistema de justiça angolano a luz da lei.

 

Na verdade, a revogação da Lei 2/15 sobre a Lei 18/88 é parcial, trata-se de uma revogação que abrange apenas a jurisdição comum e não o sistema judiciário unificado. Entretanto, apesar da revogação parcial, a Lei 18/88 só não é aplicável por força da inconstitucionalidade gerada pela entrada em vigor da CRA de 2010 e não por qualquer outra possível revogação. Razão pela qual, o sistema de justiça angolano é hoje distorcido e mal definido a luz da lei.

 

É compreensível a dificuldade que teve a advogada em inferir o sentido e alcance da Lei 2/15 em que, curiosamente, participou na sua elaboração. O problema está na falta de ciência sobre a função cimeira de um Tribunal Supremo que, na verdade, sobrevive em parte no seu estatuto orgânico ao arrepio das normas constitucionais. É supremo o tribunal que se coloca no vértice da pirâmide judicial de qualquer país sendo a última instância de recurso, ou seja, só é supremo o tribunal que está acima de todos os tribunais superiores. Os sistema anglófonos, com destaque aos EUA e Reino Unido, são mais esclarecedores quando definem os tribunais superiores (High Courts) como instâncias subalternas do tribunal supremo (Supreme Court).

 

Em Angola, a condição de “Tribunal Supremo” é distorcidamente assumida pelo Tribunal Constitucional cujas decisões “(...) são de natureza obrigatória para todas as entidades públicas ou privadas e prevalecem sobre as dos restantes tribunais e de quaisquer autoridades, incluindo do Tribunal Supremo” como se lê na sua lei orgânica (art.º 6º da Lei 2/08 de 17 de Junho – Lei Orgânica do Tribunal Constitucional). Ora, quando o Tribunal Constitucional toma uma decisão inalterável ela torna-se na última instância judiciária. Entretanto, faltam-lhe os recursos extraordinários com funções uniformizadoras das decisões de todos os outros tribunais como é o recurso de uniformização de sentenças (ou recurso de uniformização de jurisprudência, como diz a lei) capaz de harmonizar todas as decisões dos tribunais superiores. Todavia, a luz da lei, o conhecimento dessa espécie de recurso é da competência do Plenário do Tribunal Supremo, aqui evidencia-se a função cimeira do Tribunal Supremo, uma função entretanto, posta em causa pela CRA de 2010.

 

A Lei 2/15 veio a regular o sistema de jurisdição comum, ou seja, a nova ordem dos tribunais comuns. Essa ordem compreende os tribunais de comarca na base, os tribunais de relação na zona intermédia e o Tribunal Supremo no topo da hierarquia afastando a ordem jurisdicional comum prevista na Lei 18/88. Aqui, dá-se a revogação parcial de que fizemos nota acima e a lei é coerente com a CRA ao apresentar o Tribunal Supremo apenas como um tribunal superior. Pois, é superior em relação a jurisdição comum do sistema judiciário angolano. Entretanto, não é apresentado como um tribunal de jurisdição plena do sistema de justiça angolano. E não pode apresenta-lo nessa condição, pois a lei destina-se a jurisdição comum e não ao sistema de justiça. Daí a falta que faz uma nova reformulação da Lei 18/88.

 

O que seria então o Tribunal Supremo na arquitectura judiciária angolana? Para que a função cimeira do Tribunal Supremo seja recuparada urge actualizar a Lei 18/88 revigorando os princípios do novo sistema de justiça. Para além disso, a CRA deve ser alterada definindo a função cimeira do Tribunal Supremo. Nesse processo de reposição da função jurisdicional plena do Tribunal Supremo há notas importantes a tomar.

 

Como temos vindo a evidenciar, actualmente, o Tribunal Supremo é apenas um tribunal superior de jurisdição comum por força da inconstitucionalidade material do seu estatuto orgânico. Para ser efectivamente “Supremo”, prevendo a plena jurisdição sobre os tribunais superiores tem que ser reorganizado na sua estrutura interna. Isso quer dizer que tem que combinar em si, a função de um tribunal superior para jurisdição comum e a função de um tribunal supremo para a jurisdição plena do sistema judiciário angolano. Para essa última função, o tribunal precisa deixar de ser um tribunal de dupla jurisdição e passar a tripla jurisdição. O que significa que para a jurisdição comum, o Tribunal Supremo deve prever dois níveis de jurisdição, um, primeiro, correspondente a primeira instância e outro, segundo, correspondente ao plenário para cada uma das câmaras.

 

No primeiro nível de jurisdição, a câmara conhece das matérias que são apreciáveis em primeira instância pelo Tribunal Supremo como são os casos julgados em função da qualidade do sujeito (Presidente da República, Ministros, etc.), as decisões tomadas nesse nível sujeitam-se a recurso ao plenário da respectiva câmara. Então, o plenário da câmara esgota a jurisdição comum em matérias de crime, cível e outras próprias de cada uma das câmara cujas decisões seriam passíveis apenas de recurso extraordinário para o Plenário do Tribunal Supremo, como terceira jurisdição do próprio tribunal e última jurisdição de todo o sistema judiciário angolano.

 

Portanto, o plenário da câmara identifica a qualidade de órgão de jurisdição superior plena do Tribunal Supremo em matéria de jurisdição comum colocando-o no mesmo nível que os restantes tribunais superiores. Ou seja, as decisões tomadas pelo plenário de cada uma das câmaras do Tribunal Supremo teriam a mesma força jurisdicional dos restantes tribunais superiores e a sua anulação ou confirmação seria competência única e exclusiva do Plenário do Tribunal Supremo, enquanto órgão de jurisdição suprema (ou plena) do sistema judiciário angolano anulando ou confirmando as decisões de todos e quaisquer tribunais superiores, incluindo o Tribunal Constitucional, através dos Recursos de Cassação, de Revisão de Sentenças e de Uniformização de Jurisprudência que são os únicos recursos a serem apreciados nesse último nível de jurisdição.

 

Assim, dar-se-ia sentido ao recursos extraordinário de Cassação, cuja função é atacar qualquer decisão tomada por um qualquer tribunal superior que, embora em cumprimento da lei, venha a evidenciar uma injustiça grosseira. Pense-se num acórdão do Tribunal Constitucional que decida aplicar um dispositivo constitucional que atente gravemente contra a dignidade da pessoa humana. Um recurso que serve para atacar as decisões do Plenário do Supremo Tribunal Militar enquanto tribunal superior cujas decisões jamais deviam ser examinadas pelo Tribunal Supremo enquanto tribunal de jurisdição comum por lhe faltar competências em razão da matéria, pois os tribunais comuns não apreciam crimes militares.

 

Dar-se-ia ainda sentido ao recurso extraordinário de revisão de sentenças que serve para reavaliar, num último nível de jurisdição, as decisões tomadas pelos tribunais superiores, incluindo as decisões do plenário de cada uma das câmaras do Tribunal Supremo. Por fim, e o mais importante, dar-se-ia sentido ao recurso extraordinário de uniformização de jurisprudência levando a que todas as decisões com trânsito em julgado fossem semântica e logicamente unidas num sentido conferido pelo plenário do Tribunal Supremo a bem da harmonia do sistema jurídico de base jurisprudencial.

 

Com a construção piramidal do sistema de justiça angolano que propomos, corrige-se os erros de hierarquização dos tribunais superiores na CRA e repõe-se a função suprema dos recursos extraordinários ao Tribunal Supremo. O que a advogada Ana Paula Godinho, e muitos juristas que participaram da reforma da Lei 2/15, parecem desconhecer é que os recursos extraordinários ao Tribunal Supremo servem para recorrer de quaisquer sentenças (acórdãos) proferidos pelos tribunais superiores sobre quaisquer recursos ordinários interpostos nos respectivos plenários. A falta grosseira desse conhecimento é causa da péssima formulação do actual sistema de justiça angolano. Dixit.