Luanda - A defesa do Estado e das instituições democráticas traduz-se por um conjunto de normas constitucionais destinadas a garantir o equilíbrio e a estabilidade da ordem constitucional. Daí estar consagrado no Título V, Capítulo II da Carta de 2010, mecanismos de tutela institucional, isto é, da Segurança Nacional, garantidores, dentre outros, da defesa do território contra quaisquer ameaças e riscos, buscando sempre proporcionar a paz e o bem-estar gerais.

Fonte: Club-k.net

Nesse sentido, a Constituição apresenta mecanismos próprios para gerir eminentes crises, quais sejam: possibilidade de decretação de estado de sítio e estado de emergência. Essas situações são caóticas, e, por isso, demandam do Estado respostas por intermédio das autoridades competentes em relação aos problemas e dificuldades verificadas, que ao não serem equacionadas, podem ensejar, numa perspectiva mais gravosa, ruptura total da ordem jurídica para instaurar outra; ou seja, o equilíbrio constitucional corre o risco de se esfacelar, pondo em risco as instituições democráticas; daí a própria Constituição prever o chamado “sistema constitucional de crises”. Os sistemas constitucionais de crises são milenares. Em Roma, por exemplo, existia a magistratura extraordinária, para funcionar em períodos conturbados.

 

O sistema constitucional de crises, mecanismo de exceção, que não é novo no nosso ordenamento jurídico (vide art. 52.o da Lei Constitucional n.o 23/92, de 16 de Setembro), norma constitucional de eficácia limitada e aplicabilidade diferida, por isso mesmo regido pela Lei n.o 17/91, de 11 de Maio, Lei Sobre o Estado de Sítio, lei essa recepcionada em parte pela CRA de 2010, e por ela reforçada, nos termos do artigo 58.o, por força do artigo 204.o n.o 2, ambos da CRA de 2010, são, pois, o conjunto ordenado de normas constitucionais que visam restabelecer a normalidade institucional.


Esses mecanismos geram um status subjectionis, permitindo acionar o poder repressivo do Estado para banir grandes males, exteriorizando-se, extactamente, por meio dos estados de defesa, de sítio e de emergência, cujo objecto é a tutela, entre outros, de situações insustentáveis, ambicionando restituir o equilíbrio e a estabilidade do Estado.

O sistema constitucional de crises rege-se, dentre outros, por três princípios essenciais, quais sejam:


a) princípio fundante da necessidade - os estados de defesa e de sítio só podem ser declarados à luz de factos que os justifiquem, v. g., conturbações de ordem pública, ameaças à paz social, instabilidades institucionais, terremotos, enchentes, calamidades públicas, como é o caso do vírus do COVID-19, etc; (vide art. 2.o als. b) e c) da Lei n.o 17/91, de 11 de Maio).


b) princípio da temporariedade - os estados de defesa, de sítio e de emergência têm prazo de duração preestabelecido. (vide art. 8.o n.o 2, podendo ser prorrogado nos termos do art. 16.o da Lei n.o 17/91, de 11 de Maio).


c) princípio da proporcionalidade - os estados de emergência e de sítio devem ser proporcionais aos factos que justificaram a sua adopção, devendo cessar imediatamente tão logo não mais se justifiquem as razões ensejadoras da sua decretação (vide art. 18.o n.os 1 e 2 da Lei n.o 17/91, de 11 de Maio).


Com efeito, a inobservância de qualquer desses princípios ocasiona ditaduras, golpes de Estado, arbítrios, inconstitucionalidades, etc. Em contrapartida, observados tais vectores, implanta-se o regime de legalidade extraordinária, que nada mais é do que, uma providência excepcional que limita e suprime, temporariamente, o gozo das liberdades públicas.


Interessante observar que o regime de legalidade extraordinária em nada fere a Lei Magna, embora os direitos e garantias fundamentais sejam afastados por certo tempo, o que não significa a total supressão das liberdades públicas. Aliás, os direitos fundamentais, não nos esqueçamos, além da imprescritibilidade, inalienabilidade e outros, comporta também a limitabilidade como uma de suas características.

Destarte, isso não significa, necessariamente, que os institutos de tutela das liberdades, tal como o habeas corpus, ou ainda o princípio da igualdade de todos perante a lei, a proibição à tortura, além de outros direitos prescritos no art. 2.o do Decreto Presidencial que regulamenta o estado de emergência, devam ser limitados, embora verifiquemos limitação dos direitos fundamentais, à semelhança do que está a ocorrer em todo o mundo, reforçando, deste modo, as medidas já tomadas pelo Presidente da República de Angola, através do Decreto Legislativo Presidencial Provisório n.o 1/20, de 18 de Março.


O instrumento de legalidade extraordinária, visa apenas impedir a instauração de um quadro caótico, exigindo por isso mesmo medidas rigorosas, mas que não se podem confundir com os instrumentos ordinários de coerção (torturas, assassinatos, confisco de bens, obtenção de provas ilícitas etc.).
Em Angola, a CRA de 2010 colocou o sistema de crises ao dispor do Presidente da Republica, que poderá acioná-lo diante de acontecimentos tormentosos (art. 204.o n.o 1 da CRA). Exemplos: guerras externas, comoções internas graves, guerrilhas, rebeliões, calamidades de grandes proporções na natureza, etc.
Como se vê, as medidas excepcionais das situações de crise: estados de emergência e de sítio, são instrumentos incumbidos de restaurar a normalidade institucional, tendo por base sérios motivos que os justificam, revestindo-se, portanto, de notória excepcionalidade. Neste contexto, os agentes públicos que porventura os invocarem, à míngua de seus pressupostos materiais e formais de admissão, sujeitam-se à responsabilidade penal, civil e política. Isso porque a não observância dessa advertência gera a morte da democracia.


Adoptá-las, portanto, ao arrepio da Constituição e da lei, ou em tempos de normalidade e paz institucionais, constitui verdadeiro “golpe de Estado”. Por tudo isso, é plenamente possível o Poder Judicial empreender o controle da legalidade dos estados de defesa e de sítio, reprimindo abusos, tanto por meio do mandado de segurança como mediante habeas corpus, instrumentos insuprimíveis em qualquer circunstância.

De outro lado, mesmo vigorando qualquer uma das medidas excepcionais das situações de crise, nenhum agente público poderá converter-se em tirano, a ponto de vilipendiar a Constituição da República e as leis, por um lado; por outro lado, não se admite, em nenhuma hipótese o Poder Judicial examinar a discricionariedade do acto praticado pelo titular do Poder Executivo em se tratando de estado de emergência, ou desse com o Poder Legislativo, se for estado de sítio, na medida em que o juízo de conveniência e oportunidade ensejadores da decretação das medidas excepcionais não dizem respeito à actividade Jurisdicional do Estado, haja vista o princípio da separação de Poderes (vide art. 2.o n.o 2 da CRA).


Em resumo, sendo a decretação do estado de emergência um de acto de natureza essencialmente política, o Poder Judicial não pode entrar na apreciação dos factos, que o motivaram.


O nosso ordenamento orienta, nos estados de emergência e de sítio, órgão e instituição que dela participam; serão ouvidos, sem caráter vinculativo, os membros do Conselhos da República (art. 135.o da CRA), para que o aconselhem e apresentem sugestões ao Presidente (art. 5.o al. d) do Decreto Presidencial n.o 96/11, de 19 de Maio, diploma que estabelece o regime de organização e funcionamento do Conselho da República).


Destarte, o panorama das medidas excepcionais das situações de crise estabelece como critérios a serem seguidos para a decretação do instituto, o estabelecido, com as devidas adaptações (encontra-se desajustado à realidade constitucional actual, daí dizermos que foi recepcionada em parte, na Lei, 16.o da Lei n.o 17/91, de 11 de Maio), que dentre outros estabelece que a competência para o declarar é do Presidente da república (art. 11.o), (...), mediante autorização da Assembleia Nacional ou da Comissão Permanente, tendo por base um pedido autorizatório específico, onde especificará os justificativos do estado a declarar (arts. 12.o e 13.o), obedecendo de modo estrito os critérios elencados no artigo 15.o, sem os quais a Assembleia Nacional não poderá autorizá-lo e por via de consequência não poderá ser declarado.

Importa ressaltar que na senda das restrições já enunciadas no Decreto Legislativo Presidencial Provisório no 1/20, de 18 de Março, embora ainda não se tivesse declarado o estado de emergência, várias instituições do Estado, porém, já passaram a adoptar medidas excepcionais, quer reduzindo o seu funcionamento ou outras de carácter preventivo.


Neste contexto a Assembleia Nacional, cancelou as reuniões plenárias agendadas para essa semana, funcionando apenas a Comissão Permanente que, nos termos do art. 13.o n.o 3 da Lei n.o 17/91, de 11 de Maio, e do art. 62.o al. a) da Lei 13/17, de 06 de Junho, orgânica que aprova do Regimento da Assembleia Nacional), deliberou de forma unânime sobre a autorização ao Presidente da República para a decretação do referido estado de emergência.


Essa posição, em nosso entender, fortalece sem dúvidas a nossa democracia, já que o Presidente da República não agiu em momento algum fora dos liames prescritos, quer na Constituição da República, quer na lei, carecendo apenas de ratificação dessa autorização, com ou sem emendas, na primeira sessão após a deliberação, devendo para tanto ser aprovada por maioria de 2/3 dos Deputados presentes (vide art. 14.o n.os 1 e 2 da Lei n.o 17/91, de 11 de Maio).


Em síntese, a decretação do estado de emergência com a duração de 15 (quinze) dias, iniciando-se às 00h 00 (zero) horas do dia 27 de Março de 2020 e cessando às 23h 59 (vinte e três horas e cinquenta e nove) do dia 11 de Abril de 2020, podendo ser prorrogado automaticamente nos termos da lei, é mecanismo perfeitamente legitimo consentâneo com o normal funcionamento das regras próprias de um Estado de Direto Democrático, implicando na suspensão parcial dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, sem prejuízo das respectivas garantias fundamentais, cabendo a todos os cidadãos o respeito de tal ordenança, dentro dos limites aceitáveis, isto é, racionalmente exigidos, feitas as ponderações cabíveis, para a preservação da vida, bem e patrimônio único e indistinto dado pelo Rei do Universo (Deus), a cada um de nós.

Nelson Custódio

26-03-2020
Advogado, Doutorando em Direito pela UAL - Universidade Autônoma de Lisboa