Luanda - Em homenagem a Viriato da Cruz, verdadeiro vencedor do Prémio Nacional de Cultura e Artes, publicamos a segunda parte da entrevista feita no dia 16 de Junho de 2004 a Michel Laban, professor de literatura Africana na Universidade de Paris II, muito conhecido entre nós, que partiu para eternidade no dia 25 de Novembro de 2008. Nesta tribuna gostávamos de resgatar a ofensa inqualificável de que foi alvo Viriato da Cruz por parte da ministra Rosa da Cruz e Silva e tributar de forma singela a nossa incontida homenagem a Michel Laban



Fonte: Folha8




Folha 8 - Passando para uma outra vertente da nossa conversa, recordo-me que em 1998 o Michel Laban esteve numa conferência realizada pela fundação engenheiro António de Almeida, no Centro dos Estudos Africanos da Universidade do Porto, em que participaram escritores africanos de Angola, Cabo-Verde, Moçambique, São Tomé e a Guiné Bissau, então colocou-se a questão da Angolanidade, Cabo-verdianidade e Moçambiquianidade. Acha pertinente falar-se e debater-se sobre esta questão? Terá norte na actualidade? Sente que haverá, algo de híbrido, alguma impureza na literatura dos países africanos de língua oficial portuguesa?




Michel Laban - Olhe, eu tenho duas versões sobre este tema, por um lado não me interessa nada, por exemplo, neste caso concreto, como falar de angolanidade quando a gente vê a crueza de certos problemas depois de caminhar dez minutos pelas ruas da cidade? Se fizermos um percurso mais cuidado nesta avenida central, é evidente que nas zonas periféricas vê-se tantas coisas, tantos problemas sociais, portanto onde é que está a angolanidade? Neste contexto, é naturalmente a miséria, coisas sujas, destruídas que realmente deplorámos.



CF – Angolanidade, está ligada ao nacionalismo?



F8 – Não! Por enquanto é só isso, são os meninos pedintes, como é que posso falar de angolanidade, neste contexto, é quase indecente, eu constato isso, não estou a acusar ninguém! Sei que têm pouco tempo de paz, é natural que haja prioridades! É o que eu digo, estou sempre a tentar pensar nisso, talvez uma das prioridades seja a construção de pontes para tentar ligar o sistema de vias de comunicação, talvez as pessoas tenham vontade de tentar voltar aos campos, fazer com que haja menos deslocados. Eu entendo tudo isso, mas apesar de tudo vendo esses desequilíbrios sociais, dos carros de luxo, com essa miséria ao lado, onde é que está a angolanidade? Vejo marcas americanas, ou francesas, não faz mal, ocidental ou capitalista, um capitalismo, seja americano, francês ou grego (não tem importância tão forte é) e, do outro lado, uma miséria extrema, aliás são coisas evidentes as que eu digo e não vale a pena falar mais, portanto, falar de moçanbiquianidade, ou caboverdianidade, aliás Cabo-Verde não, já tem um desenvolvimento mais acentuado, aliás vi as estatísticas aqui há uns meses, diz que o homem do povo de Cabo-Verde vive melhor do que o angolano, por razões que podemos adivinhar facilmente. Agora, por outro lado sim, angolanidade é uma coisa interessante.



Quando vi ontem numa estrada numa localidade fora de Luanda uns jovens a venderem peixe frito, um deles apareceu com uma camisola em que estava escrita a palavra  USA, aqui onde é que está angolanidade? Devorados pela miséria, sem consciência do que tinham na camisola... falo disso no contexto angolano, quando enfim, num passado que nós não podemos esquecer e no presente também, sabemos hoje que há contactos petrolífero... bom tudo isso é complicado, portanto angolanidade seria, eu não queria falar do assunto, mas já que me fez a pergunta, talvez fosse necessário tentar resistir um pouco a essas influências de fora, algumas são boas, outras são para devorar o país, não sei, se calhar para mim é muito fácil dizer, talvez seja difícil fazer o contrário, angolanidade neste contexto é difícil e o quê que você acha disto?



ML - Sim eu, também tenho o direito de fazer perguntas!



F8 - Bom, gostava de voltar outra vez a Viriato da Cruz, sabemos pela entrevista que fez ao Mário Pinto de Andrade que este falava do Viriato com muito respeito, carinho e sobretudo admiração, sabemos que o Viriato, quando saiu de Angola  para Portugal e depois para Paris, contou com apoio de alguns companheiros, entre eles Mário Clington, e o casal Baivier, teve algum contacto, directo ou indirecto com esses dados?



ML – Não, infelizmente não, se tivesse tido acesso de certeza que teria publicado tudo, eu publiquei todo o material que consegui recolher, tudo o que tinha sobre o Mário Pinto de Andrade, ele abriu-me uma caixa, havia nessa caixa poemas de Neto, havia a versão do poema Renúncia Impossível, eu peguei nesse poema, e, porque esse poema tinha sido publicado em Luanda nos anos de 1980, encontrei uma versão do poema completa, tinha o texto que foi publicado em Angola mais duas páginas que era a segunda parte do poema, porque lendo o poema agora como está publicado não se entende bem o significado da Renúncia Impossível, na versão que eu encontrei é que aparece o significado, porque é necessário resistir à ideia de renúncia e isso foi publicado. Publiquei-o com um comentário no livro que foi dedicado a Mário Pinto de Andrade, com vários estudos, pediram-me uma colaboração e fiz um comentário sobre o poema Renúncia Impossível. Não, os documentos que tenho já  foram publicados, eu não tenho nada nas minhas gavetas, se tivesse já os teria publicado.



F8  – Viriato da Cruz é um nome que não se vai apagar da história contemporânea angolana, mas acontece porém que mesmo com um percurso singular, há uma tendência de se diminuir o seu nome, que apreciação faz deste cenário?



ML – É evidente isso, e, as razões devem-se ao facto de o Mário Pinto de Andrade ter preferido, no momento da crise, afastar-se e não entrar em confronto tão forte, havia um confronto, mas não foi tão forte, Mário Pinto de Andrade, depois do MPLA, continuou a ocupar-se do CONCP, o que é particular no Viriato da Cruz, é que tenha enfrentado completamente Agostinho Neto, e que também tenha tentado encontrar uma solução passando para o lado da FNLA, que abandonou depois. Portanto, é essa a diferença, e o Viriato da Cruz foi considerado, espero que o livro mostre agora, como sendo traidor, ora ele nunca foi traidor, tentou outra opção e foi isso, no contexto das lutas entre partidos é natural e justo, não é? Ele entrou e foi considerado como um instrumento dentro dessas lutas entre a UNITA e o MPLA. E, não estou a dizer nada de novo, espero que com este material publicado que se reencontre o respeito devido à sua pureza de ideias porque ele era um homem que reflectia sem parar e não se fechava sozinho, porque uma pessoa pode reflectir sozinho lá isolado, do outro lado da terra e tornar-se completamente esquizofrénico, ou tornar-se totalmente louco, mas ele tentava confrontar as suas ideias com a realidade. Vê-se nas cartas que ele quer ter informações, ele analisa o que se passa no Japão, em Cuba, na União Soviética etc. Quer dizer, não é uma pessoa que se fecha e constrói um mundo totalmente abstraído do resto do mundo, e isto é que é importante, não é? Foi um homem que lutou com as ideias, explicando-as à Monique, tentava explicar, dar-lhe de certa maneira lições de marxismo. Esses cadernos políticos tinham uma função didáctica, cada um, para mim também serviu, li também com interesse porque, claro, depois do “descalabro” do chamado socialismo da União Soviética, que sabemos que era uma mentira durante muito tempo, um socialismo totalmente falso, mas lendo estes textos dos cadernos políticos foi uma coisa interessante para relembrar certos aspectos que já estavam esquecidos, porque ler Marx, já não está na moda neste momento, mas é bom reler, digo-lhe francamente eu tive prazer em reler, e dizer puxa há coisas que vão ficar, queiramos ou não, há ai coisas que são grandes verdades.



F8 - Ao ler este livro teve, por algum instante, a sensação de estar a ler o autor do slogan ” Vamos Descobrir Angola!”?



ML— Há, sim isso é claro que sim, Mas infelizmente essas cartas não falam dos aspectos culturais, mas mostram que o homem do fim dos anos quarenta que fez o slogan não lançou só palavras para o ar, não é, porque ele mostrou e foi até ao fim da sua proposta, pois esse “Vamos Descobrir Angola!” teria sido o que o terá levado a Pequim. Parece contraditório que para se descobrir Angola foi preciso sair e, não é só o caso dele, muitos tiveram que sair também de Angola naquela época e encontrar forças a partir de fora para lutar cá dentro. Quantos não terão passado por Paris, Argel e outras cidades? Ora, um dos caminhos que ele tentou encontrar rapidamente e, foi logo o que o decepcionou, foi o da China, não é?, porque ele participou no principio numa actividade com Moo TseTung, como convidado de honra, depois de ter sido convidado a acompanhar uma delegação chinesa para a África e, no final dessa visita, pediram-lhe um relatório, pesando que ele havia de dizer nesse relatório que a África está á espera do comunismo chinês. E ele não quis fazer esse relatório, sabia que a situação não estava ainda madura para que o povo clamasse o comunismo, porque as elites não funcionavam, já havia muita corrupção, enfim, não quis falsear a verdade e a partir dai foi afastado e a determinado momento retiram-no até do emprego que já lhe tinham dado, quer dizer passou os últimos anos da sua vida sem fazer nada, situação muito boa para destruir um homem de acção como ele, e porque muita gente sabia que tinha tido conflitos no seio do MPLA, podia ser um homem perigoso, imagine o seu sofrimento... Neste contexto, sozinho, apesar de tudo continuou a escrever, aliás nas cartas dele, e como dizia a Christine, não se queixava, de vez em quando é que fazia uma pequena alusão porque tinha à filha e à esposa, tinha essa responsabilidade, porque se estivesse sozinho, talvez fosse diferente, mas não. Assumiu e podemos imaginar o sofrimento dele, sobretudo na condição de prisioneiro, apesar de não ser bem uma cadeia, mas a impossibilidade de sair torna-se numa cadeia, embora saibamos que existem outras cadeias piores não é, e foi trágico, e já que falou no “Vamos Descobrir Angola!” para um homem como ele que aspirava a tanto oxigénio para a sua terra, à falta de abertura a necessidade de virar-se para o campo para descobrir a verdadeira Angola, naturalmente, isso leva-o a ficar do outro lado da terra e morrer ai, é trágico morrer dessa maneira.



F8 - Uma das coisas que alguns autores vão dizendo, e que fez com que o Viriato se sentisse reduzido e anquilosado, pelo menos no que toca a sua disputa politica com Agostinho Neto, era o facto de ele não ter podido ter estudos superiores, acha que este seria um motivo válido para este caso?



ML— Não, não pelo que vi e conheço das cartas escrita ao José Carlos Horta, e do que vi noutros textos não vejo nada que indique isso, agora não posso dizer... só dizer a partir dos documentos, agora que tenha sofrido por não ter dado continuidade aos seus estudos, é possível, por que não? É lógico com a inspiração que ele tinha, toda sua vida foi baseada em estudos, sei que foi hospitalizado aqui em Luanda e mesmo no hospital fazia o resumo de Marx, escrevia sempre, portanto foi um homem que passou a vida inteira a estudar. Os cadernos políticos são provas disso, gostaria que mostrasse algum outro líder político que tivesse feito uma coisa parecida, eu nunca vi ninguém com essa trajectória.



Bom, ele passou a vida inteira a estudar, não há nenhuma marca de ciúmes em relação aos outros que estudaram, eu não vejo, não é!?... Não quer dizer que não tenha havido mas pelo menos marcas palpáveis não as vejo.



F8 – É, evidente que o gesto da Chá de Caxinde é louvável, será que já é a homenagem merecida ao homem que foi Viriato da Cruz?



ML— Não, mas já é o primeiro passo, o que importa muitas vezes é dar o primeiro passo, agora já é muito fácil dar o segundo e o terceiro, mas foi dado o primeiro passo, é nesta perspectiva que estou satisfeito por ter participado nesse primeiro passo, sobretudo porque foi uma iniciativa angolana. (A seguir)