Luanda - Estive atentamente a acompanhar o ponto de situação (balanço do dia) relativo a evolução do Covid-19 em Angola e no resto do mundo (dia 30.03), fornecido pela TV Zimbo, onde habitualmente tem sido presença assídua da Ministra da Saúde, mas desta vez esteve a cargo do Secretário de Estado para saúde pública Franco Mufinda e um representante da Policia Nacional.

Fonte: Club-k.net

O que efetivamente não passou despercebido foi o posicionamento do representante da Policia Nacional, onde o mesmo afirmou que a instituição que representa irá actuar de forma pedagógica e se for necessário o recurso a força, pois está legitimada pelo Decreto Presidencial n.º 82/20 de 26 de Março.

O que não consigo perceber é o âmbito e o alcance que o mesmo refere no caso de houver excesso do uso da força a Policia Nacional esta LEGITIMADA a agir nesta conformidade.

Esta legitimidade a meu ver, nada mais é que um subterfúgio da policia nacional justificar os casos de excesso do uso da força pelos seus operativos (aliás a atuação do uso excessivo da força por parte da Policia Nacional não é de boa memória).

Para tentarmos perceber esta legitimidade urge a necessidade de analisarmos ainda que seja de forma telegráfica dois diplomas (Constituição da República de Angola e Decreto Presidencial n.º 82/20 de 26 de Março, propositadamente deixo de lado a Lei n.º17/91 de 11 de Maio ), que penso ser fundamental para esta falsa legitimidade aludida pelo representante da Policia Nacional.

Desde logo, apresenta-se de máxima importância destacar que a medida decretada pelo Presidente da República resulta de facto de uma legitimidade constitucional previsto na secção II mais concretamente no artigo n.º 58 da CRA com a epigrafe (Limitação ou suspensão dos direitos, liberdades e garantias).

O exercício dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos apenas pode ser limitados ou suspensos em caso de estado de guerra, estado de sítio ou de estado de emergência nos termos da CRA e da lei. A alínea p) do artigo n.º 119 diz que compete ao Presidente da República declarar o estado de emergência ouvida a Assembleia Nacional, e por força da alínea h) do artigo n.º 161 compete a Assembleia pronunciar-se sobre a possibilidade de declaração pelo Presidente da República de estado de sítio ou estado de emergência.

Ora, da conjugação destes artigos percebe-se claramente que o Presidente da República é o ente que possui de facto legitimidade com reserva constitucional de praticar àquele acto (decretou estado de emergência) cumprindo o formalismo de ser ouvido pela Assembleia Nacional.

O estado de emergência constitucional que constitui uma novidade na nossa “banda” resulta efetivamente, quando haja receio fundado de o país estar perante uma calamidade pública (como é o caso da propagação do Covid-19) que se exija uma declaração de estado de emergência com base no artigo n.º 204 da CRA.

A nossa lei fundamental constitucionalizou as situações de excepção constitucional, com o objetivo de submeter o Estado aos princípios, regras e normas constitucionais de tal sorte, que às medidas e meios que forem utilizados estejam subordinados a lei mãe do país. As situações de excepção constitucional conferem ao Estado um direito de necessidade estadual de recurso a meios excepcionais para se afastarem os perigos ou as situações de crise que ameaçam a ordem constitucional.

Mas esses actos estaduais (direito de necessidade estadual) devem ser praticados no estrito cumprimento dos preceitos constitucionais, impedindo-se que se tomam medidas que ponham em causa o Estado Democrático de Direito e o principio da dignidade da pessoa humana.

Por esta razão e caso haja necessidade de se fazer a limitação dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos ela só pode ser feita nos casos e com os limites expressamente previsto na Constituição, aliás como afirma e bem o Professor Gomes Canotilho: “o direito de necessidade constitucional não é um direito fora da constituição, mas um direito normativo constitucionalmente conformado. O regime das situações de excepção não significa suspensão da constituição, mas sim um regime extraordinário incorporado na Constituição e válido para situações de anormalidade constitucional”.

Relativamente ao Decreto Presidencial observa-se o seguinte:

O Estado de emergência foi decretado pelo Presidente da República por via do Decreto Presidencial n.º 81/20 de 25 de Março, e por força substantiva deste o Presidente aprovou o Decreto Presidencial n.º 82/20 de 26 de Março, na qual determina MEDIDAS DE EXCEPÇÃO E TEMPORÁRIAS PARA O PREVENÇÃO E O CONTROLO DA PROPAGAÇÃO DA PANDEMIA COVID-19.

Este diploma define o modo claro das medidas concretas de excepção a observar durante a vigência do estado de emergência, as quais se consideram necessárias e proporcionais considerando o contexto, incidindo entre outros sobre a circulação de pessoas.

Ora, este diploma nos seus aspectos essenciais, relativo a garantia das medidas tomadas para seu cumprimento especifico, determina que os órgãos de segurança e ordem pública devem efectivamente munir-se de um conjunto de medidas para a observância dos cidadãos no cumprimento destas medidas.

Na interpretação que se retira dos 48 artigos deste diploma, não confere nenhuma legitimidade para num primeiro plano de actuação a Policia Nacional fazer-se recurso a força, em alguns casos de forma violenta, sena vejamos:

O artigo n.º 210 da CRA, diz que a Policia Nacional é a instituição nacional policial, permanente, regular e apartidária, organizada na base da hierarquia e da disciplina, incumbida da proteção e asseguramento policial do país, e tem o objetivo da defesa da segurança e tranquilidade públicas, o asseguramento e proteção das instituições, dos cidadãos, os respectivos bens e dos seus direitos e liberdades fundamentais…

A actuação da Policia Nacional (no estado de emergência) relativamente a obediência nos parâmetros definidos pelas instituições é de facto uma actuação pedagógica e não necessariamente o uso primário do recurso a força contra os cidadãos.

O artigo n.º 4 do Decreto Presidencial n.º 82/20, sobre a epígrafe (Desobediência) diz o seguinte:

1. Em caso de violação aos órgãos competente da ordem pública (Policia Nacional) devem orientar (não declara recurso a força) ao cidadão o regresso ao seu domicilio.

2. O desrespeito a ordem referida acima constitui crime de desobediência puníveis nos termos da lei penal podendo dar lugar a detenção imediata.

O que se retira da interpretação da redação deste artigo, o legislador ordinário dá sustentabilidade no cumprimento escrupuloso das várias medidas a adotar no sentido de evitar a propagação do Covid-19, mas também vem dar proteção no sentido de se salvaguardar um conjunto de direitos fundamentais, evitando a adopção de medidas excessivas e desproporcionais, a regra de actuar da Policia Nacional deve ser sempre PEDAGÓGICA sendo uma medida de ultima rácio.

Já dizia um velho sábio “ não se matam moscas com tiros de canhão, esta é base da actuação dos órgãos de segurança públicas em qualquer sociedade denominada como estado democrático e de direito. A proporcionalidade é a proibição do excesso, ou seja, os meios têm que se adequar aos fins”

E mais não digo!!!


António Cassua

Jurista, Pós-graduado em Politicas Públicas e Governação Local