Luanda - Depois dos primeiros casos do Covid-19 que se registaram na China, na localidade de Wuhan, ninguém imaginou que este tería um impacto mundial. Contudo, três meses depois, o vírus da Covid-19 migrou para vários países onde tem provocado inúmeras consequências: mortes, medos, inseguranças, confinamentos, encerramento de fronteiras, restrição da mobilidade, proibição de viagens províncias e interprovinciais e declaração de estado de emergência. O desenvolvimento no sector dos transportes e, por conseguinte, a facilidade com que hoje se move de um sítio a outro, facilitou ao coronavírus transpor as fronteiras internas e externas de todas as nações. O vírus da Covid-19 não necessitou nem de visto, nem de laissez-passer, nem da observância do acordo de supressão de vistos e livre circulação de pessoas, bens e serviços.

Fonte: Club-k.net

Ante os danos que o vírus tem causado, pergunto-me pela situação dos migrantes e dos refugiados que se encontram no nosso país, não só em relação à resistência contra o próprio vírus, como dos efeitos sociais do mesmo: os insultos, estereótipos, prejuizos, ataques racistas e xenófobos que toda esta situação gera. O facto de viverem aglomerados e, em alguns casos em campos de assentamentos, como acontece com os refugiados, leva a que este colectivo seja ainda mais exposto ao contágio. Esta preocupação se estende também aos migrantes internos que abandonaram as suas terras de origem afim de encontrar um trabalho digno, negócios, realizar o sonho de possuir uma casa própria e, dessa maneira, melhorar as suas condições de vida, pois também estes vivem aglomerados, alugando quintais de casas e outros sítios que partilham para dormir. A esta se junta outra questão ainda mais preocupante que é a busca de um bode expiatório dos primeros casos positivos registados no país entre estes migrantes.


Cifras actuais de migrantes e refugiados no mundo e em Angola (Relatório do ACNUR 2019 e da OIM 2019) Nos dias de hoje, a população em situação de mobilidade está em constante crescimento. Actualmente, existem 271,6 milhões de migrantes internacionais, dos quais 124,8 milhões são mulheres e 36,1 milhões são crianças. A estes se somam 763 milhões que não atravessaram as fronteiras internacionais e que são considerados migrantes internos, que são os que deixaram as suas terras de origem por razões económicas, familiares e de estudos. Contrário a estes, diariamente um total de 70,8 milhões de pessoas são forçados a abandonar os seus lugares de origem por causa da guerra, violência e desatres naturais. Destes indivíduos, 25,9 milhões são refugiados, 3,5 milhões são requerentes de asilo e 41,3 milhões são deslocados. Um total de 60% dessas pessoas vive nas zonas urbanas, 85% é acolhido pelos países do Sul Global e 80% encontra-se assentada nos campos de refugiados das nações vizinhas. Em África, Sudão do Sul é o maior emissor de refugiados com 2,8 milhões e Uganda acolhe o maior número dessa população, 940.835 refugiados e 41.880 requerentes de asilo. A estas pessoas juntam-se outras: 9 milhões que abandonaram as suas terras por causa dos desastres ambientais da região da África Subsariana e 10 milhões de apátridas que existem no mundo. Isso nos leva a concluir que no mundo 1 de cada 7 pessoas é migrante. Muitos desses migrantes não chegam ao lugar de destino, pois sucumbem ao longo da viagem. Nos últimos anos, o mar Mediterrâneo tem-se convertido no maior cemitério do mundo onde, desde 2014, morreram mais de 20.000 pessoais.


Em Angola, as cifras não são tão assustadoras. Porém, não deixam de ser preocupantes.

Apesar da crise económica e financeira, o país acolhe 638.499 imigrantes e 95.600 refugiados e requerentes de asilo. A este número, deve-se acrescentar os 22.000 instalados no campo do Lóvua, na província da Lunda Norte. Trata-se do grupo que abandonou a província congolesa do Kasai e Kasai Central devido à perseguição política e étnica a que estavam sujeitos. Inicialmente, eram 35.000 mas 14.000 entretanto foram repatriados. De recordar que 40% da população migrante encontra-se em Luanda (INE, 2016). A porosidade das fronteiras, a conivência dos nacionais caracterizada pelo fácil ganha-pão e as rígidas políticas migratórias centradas em atrair ao migrante investidor (Decreto Presidencial 318/18 de 31 de Dezembro) propiciam a opção pela clandestinidade. Asssim, o país também acolhe cerca de meio milhão de imigrantes em situação irregular. Alguns dos ‘indocumentados’ encontram-se no Centro de Detenção de Estrangeiros Ilegais (CDEI) situado no Trinta (Luanda). Nesse lugar, muitos dos seus direitos são violados, sendo o mais comum a estadia excessiva, sobrelotação, falta de advogado oficioso, intérprete, sanidade, água, privacidade e alimentação adequada.

Que se pode fazer em favor dessas pessoas na era da Covid-19?


Ante uma crise, a reacção imediata é buscar um bode expiatório. Isso é algo comum em todas sociedades e por isso não somos uma excepção. Depois do boom económico registado entre 2002 e 2014, Angola mergulhou numa crise económica sem precedentes. No intuito de aventar os prováveis culpados, identificou-se os ‘marimbondos’ e seus consultores expatriados. Com a crise do coronavírus parece acontecer o mesmo cenário. Depois do anúncio dos dois primeiros casos positivos no passado dia 21 de Março, os bodes expiatórios passaram a ser os passageiros dos voos da TAAG de 17 a 19 de Março vindos de Lisboa e Porto, consequentemente, por extensão, os 150.000 imigrantes portugueses que residem em Angola, assim como os “infectados” angolanos. Juntam-se à lista os imigrantes chineses e outros que regressaram a Angola depois das férias natalícias e visita às famílias. A sensação de que são os migrantes que propagam a pandemia da Covid-19 parece ganhar força. Uma das mensagens que circulava nas redes sociais dizia:


“Este fim de semana [referência aos dias 28 e 29 de Março] se atinge o período de incubação dos primeiros 10 dias para os retornados nos dias 17, 18 e 19 e possivelmente começarão a aparecer muitas com síntomas da COVID-19 e é durante essa fase que se pode contagiar muita gente. Por isso é muito importante ficar em casa e não se relacionar com ninguém. Proteja-se ao máximo”.


Que se pode fazer para frenar essa sensação? Como podemos proteger a vida dos migrantes e refugiados que de per se se encontram numa situação de mais vulnerabilidade?
1. Angola conta com dois grandes centros de detenção de imigrantes, o de Cabinda e o de Luanda que tem a capacidade para acolher mais de quinhentas pessoas. Os aeroportos estão dotados de Centros de Instalação Temporária (CIT). Os imigrantes que se encontram nesses centros aguardam pelo repatriamento ou expulsão. A lei estabelece um período de 8 dias para a execução da ordem de expulsão dos estrangeiros residentes e 15 dos não residentes (Lei 13/19 de 23 de Maio, art. 38.3). Nesse período da Covid-19 em que o espaço aéreo está cerrado e alguns centros estão sobrelotados, como o do Trinta (ver video nas redes sociais), a vida dessas pessoas comporta riscos, porque a possibilidade de contágio é maior. Para além de facilitar as medidas de prevenção contra o coronavírus, nas línguas melhor faladas pelos imigrantes, e desse modo, acudir aos líderes das associações dos migrantes na transmissão dessas medidas, urge deter as deportações e melhorar as condições sanitárias dos centros de detenção. Na mesma ordem de ideia, poderia contemplar-se a regularização de alguns desses migrantes que o país acolhe. Existem dois exemplos históricos recentes: no dia 27 de Março, o governo português anunciou que regularizaria a situação de todos os imigrantes que estejam com processos pendentes no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) para que tenham acesso ao sistema de saúde; e no dia 1 de Abril, o governo espanhol fez saber que facilitaria a concessão de visto de trabalho e o reconhecimento dos estudos dos imigrantes médicos e enfermeiros.


2. Até ao momento o modelo de acolhimento dos refugiados aplicado pelo governo angolano consiste em ‘out of camp’ (fora do campo). Uganda perfila-se como veterano na aplicação desse paradigma. Contudo, à diferença de Angola, Uganda facilita o acesso à terra para que os refugiados possam trabalhá-la e, assim, alcançar a independência económica e financeira. Porém, muitos países preferem assentar os refugiados nos campos e Angola pretende aplicar esse método com a criação de Centros de Acolhimento de Refugiados e Requerentes de Asilo (CARRA) (Lei 10/15 de 17 de Junho, art. 13). O campo de refugiado do Lóvua acolhe 22.000 pessoas e 75% desse colectivo é constituido por mulheres e crianças. O campo clama pelos serviços básicos, atenção sanitária, higiene e alimentação adequada para as crianças. A aglomeração é outra dificuldade com que se debate o campo. Daí que se pode converter como um ‘foco’ para a propagação do vírus da Covid-19. Entre as medidas para mitigar essa situação constam: evacuação do campo, providenciar alojamentos adequados, favorecer o acesso à atenção médica e medicamentosa dos refugiados, sobretudo os mais vulneráveis.


3. Desde a entrada em vigor do Decreto Legislativo Presidencial Provisório 1/20 de 18 de Março e do Estado de Emergência (27/03) todas fronteiras do país foram cerradas, as viagens interprovíncias proibidas e a participação em cerimónias fúnebres limitadas a 50 pessoas. Existem migrantes afectados por essas medidas: uns encontram-se presos nas fronteiras e aeroportos, alguns não podem permitir-se acolher os voos autorizados por razões humanitárias cujos preços rondam entre 1.500€ e 2.300€ e outros não podem acudir aos funerais de familiares que estão a morrer de diversas enfermedades, entre elas o coronavírus. A maioria dos migrantes constituem famílias transnacionais e mantêm vivas relações com a comunidade de origem. Razão pela qual, a falta de comunicação e, ao mesmo tempo, o excesso de informação, que nem sempre permite conhecer os factos que ocorrem nas sociedades de origem, sobretudo nesta era da Covid-19, podem gerar tensão. Acções criativas que estimulem vínculos, ternura e gestos solidários são necessários, posto que ajudarão as famílias migrantes a suprir o ‘síndrome de Ulisses’. Este síndrome está associado às dificuldades de integração, adaptação, língua, cultura, solidão e desenraizamento provocados pela distância dos familiares, amigos e compatriotas.


4. Por último, ao lado de migrantes altamente qualificados, Angola acolhe cidadãos de origem estrangeira em situação precária e humilde. Trata-se de indivíduos cujo trabalho se resume nos três Ps: precário, penoso e pobre. Nessa fase em que se estão a tomar medidas extremas, é fundamental prover a estes migrantes de bens e recursos que lhes permita observar a ‘clausura’ e, por ende, prevenir contra o Covid-19. A medida de apoio às famílias vulneráveis aprovada pela Equipa económica no passado dia 26 de Março que estabelece uma pensão mensal de 8.500 AKZ deveria estender-se aos migrantes pobres. Esse clamor é avalado pela constituição (CRA) e pelo regime jurídico dos cidadãos estrangeiros. Ambos documentos decretam que os estrangeiros e apátridas gozam dos mesmos direitos, liberdades e garantias que os nacionais (CRA, art. 25 e Lei 13/19, art. 4).


Avelino Chico
Professor e investigador