Luanda - O espaço público foi tomado por questionamentos sobre as medidas no âmbito do estado de emergência – questionamentos, diga-se, sempre legítimos no quadro do exercício da cidadania.

Fonte: Club-k.net

Questiona-se, por exemplo, se um Juiz (que se alega ser titular de um órgão de soberania) pode estar sujeito à restrição do direito de livre circulação. A resposta parece simples: O estado de emergência é para todos; e a restrição à liberdade de circulação também é para todos, nos exactos termos definidos pela declaração ou renovação do estado de emergência. Como veremos, a liberdade de circulação não é um dos direitos protegidos pela Constituição da República de Angola (CRA, doravante).

 

Questiona-se também a exposição pública (vexatória, alega-se) dos nomes e demais elementos de identificação (funções actuais ou passadas) de pessoas que terão violado as normas do estado de emergência, nomeadamente do cerco sanitário a Luanda. Compara-se tal divulgação com ocorrências passadas em que os nomes e demais elementos de identificação foram omitidos ou deram lugar a inquérito administrativo por, a título de exemplo, ter vazada a informação sobre os nomes dos pacientes 1 e 2 (da COVID-19). Aqui a resposta já não é simples.

 

O nosso País sempre se debateu com o dilema de publicar ou não (sobretudo na televisão e nos jornais) os rostos e nomes de pessoas detidas em flagrante delito ou detidas no âmbito duma investigação criminal. Tanto quanto sabemos, a PGR tem-se batido pela não divulgação dos rostos e demais elementos de identificação. As estações de televisão ora mostram, ora omitem (desfocando a imagem dos rostos).

 

O grande argumento usado para defender a não divulgação dos dados é a necessidade de preservação do direito à imagem e do direito ao bom-nome e reputação (art. 32º, nº 1, CRA) dos supeitos, numa circunstância em que as pessoas estão igualmente protegidas por um terceiro direito fundamental: Presunção de inocência (art. 67º, nº 2, CRA). A divulgação dos dados de supostos infractores (nome, rosto, etc.) sempre foi, portanto, um tema difícil.

 

Entretanto, desde o dia 27 de Abril de 2020 vigora em Angola uma situação extraordinária: Foi declarado o estado de emergência e já houve prorrogação. O País vive uma situação de estado de necessidade constitucional. Todos aqueles direitos fundamentais atrás citados não estão protegidos pela Constituição (art- 58º, nº 5), podendo por isso estar sujeitos à restrição num contexto de estado de emergência.

 

Não pretendemos tomar posição sobre o debate público. Queremos apenas alertar que os termos da análise devem fundar-se e ser enquadradas no actual contexto de estado de necessidade constitucional, mais concretamente do estado de emergência. O objectivo é chamar atenção para o melindre e a complexidade do estado de emergência, quer enquanto realidade política, jurídica e sociológica, quer enquanto conceito político e jurídico-constitucional.

O Professor Doutor José Joaquim Gomes Canotilho ensina que “O direito de necessidade constitucional não é um direito fora da Constituição, mas sim um direito normativo-constitucionalmente conformado. O regime das ‘situações de excepção’ não significa ‘suspensão da Constituição’ ou ‘exclusão da Constituição (excepção da Constituição), mas sim um ‘regime extraordinário’ incorporado na Constituição e válido para situações de anormalidade constitucional.”

 

O estado de necessidade constitucional representa uma restrição aos direitos fundamentais (não suspensão, mas sim restrição). Que direitos fundamentais o Estado pode, afinal, restringir? O Estado pode restringir todos os direitos fundamentais, salvo aqueles enumerados no nº 5, do art. 58º, CRA.

 

O Estado não pode restringir os fundamentais enumerados no nº 5, do art. 58º, CRA, nomeadamente:


a) A aplicação das regras constitucionais relativas à competência e funcionamento dos órgãos de soberania;
b) Os direitos e imunidades dos membros dos órgãos de soberania;
c) O direito à vida, à integridade pessoal e à identidade pessoal;
d) A capacidade civil e a cidadania;
e) A não retroactividade da lei penal;
f) O direito de defesa dos arguidos;
g) A liberdade de consciência e de religião.

Com excepção dos direitos fundamentais acima enumerados, todos os restantes direitos fundamentais estão sujeitos à restrição. Qual a densidade ou a intensidade das limitações? Depende da modalidade de estado de necessidade constitucional que, como sabemos todos, assume três tipos, modalidades ou variantes, nomeadamente estado de emergência, estado de sítio e estado de guerra.

 

Manda a Constituição que na opção por uma ou outra modalidade (estado de emergência, estado de sítio e estado de guerra), as medidas “devem sempre limitar-se às acções necessárias e adequadas à manutenção da ordem pública, à protecção do interesse geral, ao respeito do princípio da proporcionalidade e limitar-se (...) ao estritamente necessário ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional” (art. 58º, nº 3, CRA). Está aqui consagrado o tão valioso princípio da proporcionalidade que deve guiar a actuação do Estado-Administração em contexto de necessidade constitucional.

 

A Constituição (art. 58º, nº 4) diz também: “A declaração do estado de guerra, do estado de sítio ou do estado de emergência confere às autoridades competências para tomarem as providências necessárias e adequadas ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional.” Quais são os limites? Este tema fica para outro debate.

 

*António Paulo é Professor da cadeira de Ciência Política e Direito Constitucional (Universidade Agostinho Neto)